Qual o contributo que se pode esperar das ciências? Organizam um país. Porquê? Porque se opõem ao ócio e à desordem. Porque defendem o método e os hábitos de trabalho. O exercício intelectual por meio das ciências pressupõe leis e impõe regras. Em suma, o rigor científico serve para organizar, controlar, gerir, capitalizar as exigências requeridas pelas Luzes.
Na sua globalidade, esta época acordou um lugar especial ao
conceito de ordem. Na verdade, as figuras (filosóficas, científicas,
artísticas) que emergem estão sempre associadas a ideias relacionadas com marcha ou combinatória, dado que: há necessidade de
expressar a sucessão, o encadeamento e as hierarquias entre dados
sensoriais ou imagens; é preciso exprimir o sistema, a subordinação
e a classe entre seres vivos. Por isso, os enciclopedistas dão a
conhecer as cadeias entre acontecimentos passados e os mecanismos perceptivos que condicionam o nosso relacionamento com o
mundo exterior. Por isso, os Naturalistas enchem as suas descrições
e análises com frequentes pormenores, visando estabelecer
dependências entre estruturas lógicas e processos de conhecimento,
no interior dos Três Reinos da História Natural.
Neste contexto, o primado da Metafísica dos factos e relações
materiais (Bacon, Locke, Condillac) sobre a Metafísica do espirito e
causas últimas (Descartes, Leibniz), por um lado, e o primado da
Gnosiologia sensualista e empirista em desfavor do essencialismo e
racionalismo, por outro, condicionam uma configuração sistema
epistémica, onde a representação inclui regularidades precisas entre
a ordem do conhecer (observação) e a ordem do ser (fenómeno),
entre a ordem do sentir (sensação) e a ordem do pensar (indução).
Em seguida, aparecem condições para um novo palco, com
cenários propulsionados por uma modernidade que não permite nenhuma identidade entre o passado mais próximo e o dinamismo
futuro. Combinatória de possíveis, esta nova lógica autodefine uma
área de limites e proibições, logo implica inexoravelmente uma
interface de escolhas e impossibilidades, com repercussões a nível
das crenças, contestadas ou diminuídas. Lógica essa bem afastada
da precedente: a configuração epistémica do ouvir-ler não inviabilizou o olhar-ver, e permitiu-Ihe o advento, por transformação; por
seu turno, o observar-experimentar nunca poderia ter emergido sem
uma revolução no pensar. Os adquiridos vão preparar-se para
ser consagrados como operatividades promissoras, socorridos pela
precisão instrumental.
Pertencendo ao conjunto do conhecimento empírico, passivo e
reactivo por essência, o ouvir e o ver opõem-se ao observar e ao
experimentar, partes do universo teórico-experimental.
Lembre-se, a propósito, quanto a crítica dos idola proposta por
Francis Bacon e quanto a dúvida metódica defendida por René
Descartes foram importantes como exercícios preambulares requeridos
pela atitude científica, ao arrepio das ilusões, erros e devaneios
sensoriais. Na verdade, os primeiros acontecem numa sequência
habitual, como mera expressão vital da normalidade psíquica, ao
passo que os segundos implicam um processo articulado com
momentos e fases. Além disso, recorde-se, as hipóteses representam
instâncias onde actuam categorias de natureza intelectual, montadas
muitas vezes na contracorrente do puro sentir.
Do abismo entre sistemas em confronto, da luta que divide
gerações, vai resultar um empirismo extremo, um diálogo de
surdos com a tradição especulativa e religiosa, a ponto de alguns
abundarem em contrasensos, por confusão entre teoria e retórica:
por esta ser combatida, o lugar daquela não é devidamente valorizado, no contexto de trabalhos cheios de descrições e sem rigor
conceptual. O conhecimento científico da época associa dois
grandes vectores em torno do observar: o nomear-classificar
(ciências naturais e médicas); e o calcular-experimentar (ciências
matemáticas e ciências físicas). Disso resulta uma detecção cuidada de semelhanças e diferenças. A ordem e a mathesis primam sobre o
demais.
A par disso, verifica-se um outro movimento desdobrado: a
preocupação sistemática em desenvolver a capacidade das vias
sensitivas, através de equipamento e de lugares singulares
(termómetros, telescópios, balanças); a necessidade de construir
condições privilegiadas para potencializar, avaliar e testar as
informações espontâneas obtidas pelos sentidos, mediante espaços
individualizados para a produção (Observatórios Astronómicos,
Museus de História Natural, Gabinetes de Física, Laboratórios de
Química). Todo este conjunto de actividades demonstra quanto o
senso-comum, entendido como obstáculo epistemológico, está
afastado na sua expressão de um olhar = fitar com os olhos, ou de
um ver = conhecer e perceber pelo sentido da vista. Os gestos de
repúdio serão imperativos e servidos pela normatividade soberana:
o direito de abolir e de proibir. Assim sendo, os jesuítas são culpados
do que fizeram, porque fizeram, e do que omitiram, porque omitiram. Assim sendo, o pensamento cartesiano aparece como entrave
à divulgação das teses newtonianas, na medida em que se deve
abandonar a Física dedutiva em favor de uma área prometedora e
predominante, como é a área da Física matemática: os problemas
da extensão e do movimento cedem perante a aquidade de outras
prioridades; a investigação quantitativa dos fenómenos físicos sai
dominante e vencedora.
Entretanto, os governos começam a perceber como é lucrativo
intervir na concentração dos conhecimentos e na optimização dos
recursos científicos, ao que as Academias correspondem
perfeitamente. A par disso, a política do crescimento económico, o
impacto dos ciclos de emigração e o investimento proveitoso nas
missões feitas por naturalistas através do Novo Mundo ajudam a
definir um projecto com repercussões nas ciências. Apesar de muitos
destes aspectos, no todo ou na parte, terem merecido, de há muito,
a atenção de inconformistas, face ao estado vigente, não resta
dúvida que este discurso, dominador e até parcial, foi importante, para que os anseios de uns tantos e os desejos de uma minoria
esclarecida pudessem deixar o impossível para ocuparem o factual.
Dentro dessas impossibilidades, porque a lógica do ouvir orientava a
configuração preponderante nos espaços académicos existentes, será
de incluir a impraticabilidade de algo semelhante a uma Royal Society
ou de uma Académie Royale des Sciences de Paris, antes de se
imporem as regras do observar, anulando a prepotência das normas
anteriores. Geram-se, então, efectivamente as condições essenciais
para a ciência moderna. Na verdade, usar-se a palavra anteriormente não significava, por si, entendê-Ia como sinónima do universo
teórico-experimental que Copérnico e Galileu ajudaram a definir e
que Newton consagrou. Uma coisa são os vocábulos-ideias, outra
coisa os conteúdos (compreensão e extensão) atribuídos. Além
disso, urge ainda integrar o texto no contexto, havendo casos
onde as reservas prevaleciam sobre os entusiasmos, ou onde se
exorcizavam contactos com a modernidade científica; todavia, isso
não permite afirmar que a mesma não se encontrava mesclada,
amalgamada e obscurecida entre contradições de retórica e muitos
panejamentos de pura erudição.
O conjunto destas constatações indica que as elites avançadas
da Inglaterra, França, Itália, Rússia, etc. começam a estar
preparadas para o movimento geral tendente a acolher o
pensamento e a ciência de Newton, nos seus quadros institucionais.