CRENÇA, DESCRENÇA E FÉ CRISTÃ (2)
Bento Domingues

 

6. Não pretendo que se faça, só por este fragmento, um juízo acerca da obra, "De correctione rusticorum", escrita a seguir a dois concílios bracarenses. Martinho de Dume introduziu um modelo de vida cenobítica na Galécia.

Promoveu a conversão do povo suevo, conseguiu um ambiente de paz para poder reorganizar e doutrinar a sua Igreja e transmitir aos seus clérigos normas de vida exemplares. Preocupou-se também em fornecer a sua Igreja de textos fundamentais, nomeadamente de textos conciliares da Igreja Oriental. Cuidou sobretudo de uma pastoral directa, atenta às situações, como se pode ver pelo resto do livro "De correctione rusticorum".


7 .A recolha e a classificação de alguns usos e costumes tradicionais que chegaram até aos nossos dias, vistos pela Igreja Católica como ligados a superstição, foi realizada, ao longo de todo o país, por Benedita Araújo {Cf "Superstições Populares Portuguesas", Lisboa, Colibri, 1997).

 

8. O mundo retractado por S. Martinho de Dume, na oscilação entre paganismo e fé cristã, está situado dentro de um quadro religioso. Não entre crença e descrença. Seria, no entanto, errado supor que a oposição - crença/descrença - seja apenas uma questão do mundo moderno. Não sem provocações recíprocas, crença e descrença têm andado muitas vezes juntas {há quem diga, sempre juntas), embora raramente nas mesmas proporções.

 

9. Como observa Georges Minois - numa obra que veio a ajudar a preencher uma grande lacuna historiográfica {Cf "Histoire de I'athéísme", Fayard, 1998) - diz-se que Deus morreu no século XIX, mas já no séc. IV antes da nossa era, Teodoro, o Ateu, proclamou que Deus não existia. E vai mais longe: talvez que desde as origens da humanidade, o ateísmo tenha sido uma das maneiras de ver o mundo, um mundo em que o homem está só em face de si mesmo. Note-se que para G. Minois, a história do ateísmo não se reduz a
negação das crenças religiosas. Para ele, são ateus todos os cépticos, livre-pensadores, libertinos, deístas, agnósticos, materialistas: todos os que ousaram dar um sentido à sua vida fora de qualquer fé religiosa. A partir desta opção, pode dizer-se: assim como a religião, também o ateísmo é plural. Assumiu, através dos séculos, formas diferentes, sucessivas e simultâneas, por vezes antagónicas: ateísmo de revolta contra a existência do mal, contra os interditos morais ou contra a limitação da liberdade humana; ateísmo especulativo nos períodos de crise dos valores; ateísmo confiante de Marx; ateísmo voluntarista de Nietzsche; ateísmo pessimista e desesperado de Shopenhauer; ateísmo ambiente da nossa época onde a fronteira entre crentes e descrentes parece cada vez mais fluida.

 

10. Começa este historiador das mentalidades com um capítulo interrogativo: fé ou descrença? Passa depois aos ateísmos greco-romanos - uma colheita significativa -, descortina nos finais da Idade Média uma certa viragem ateia pelo recurso à astrologia. Depois do ateísmo subversivo da Renascença, surge o ateísmo crítico do século XVI (1500-1600). Convém observar, no entanto, que nesta obra de 650 páginas, só gasta 176 na apresentação e caracterização do percurso do ateísmo até ao séc. XVI... Será porque antes não era fácil ser ateu ou porque os ateus, de facto, eram muito raros?

 

11 .É com os cépticos libertinos (1600-1640) que surge a primeira crise da consciência europeia. A historiografia religiosa do século XVII em França fala de 5. Vicente de Paulo, de Pascal, de Bossuet, de Margarida Maria, do dourado barroco e das missões dos jesuítas, do "Grande Século das almas" (Daniel-Rops). Mas foi também o século das aparências, do desfasamento entre cultura e religião, época em que se preparava o assalto à Igreja e às suas crenças.

Com o reverso do "Grande Século" (1640-1690), a fé passa a defensiva e vive-se a hesitação entre fé e ateísmo, "numa certa impossibilidade de acreditar e na impossibilidade de não acreditar em Deus"! É tempo da angústia das grandes questões sem resposta.

 

12. Entre 1690 e 1730 desenvolve-se a época da segunda crise da consciência europeia, tempo de viragem e de uma apologética incapaz de suster as pretensões de uma razão que parece atraída pelo ateísmo. Não era só uma questão com os intelectuais. Desde a metade do século XVII, a incredulidade começa a manifestar-se em camadas sociais que antes se consideravam muito fiéis.

O séc. XVIII ficou conhecido como o século das Luzes, o século dos incrédulos e, sobretudo, dos cépticos. Embora ainda de maneira semi-clandestina, trouxe consigo as primeiras afirmações do ateísmo integral, o materialismo ateu desde Meslier a Holbach.

Através do deísmo fazia-se uma espécie de vítima tentativa para salvar a Deus! Dizia-se que os deístas recusavam dar o passo decisivo da negação de Deus pelas razões mais diversas: medo do nada, medo do caos social, recusa da morte total, sentimento autêntico do divino através da natureza, etc.. Começaram também a ser postos em causa os próprios fundamentos de fé cristã. Johann Friedrích Ríchter (1763-1825), numa cena impressionante do romance "Síbenkãs", apresenta Cristo num cemitério, pressionado pelos mortos e aos quais tem de revelar uma notícia terrível, em forma de pergunta-resposta: "Mas Cristo não é Deus? - Não, não é". Jesus, desfeito em lágrimas, depois de ter percorrido o universo, tem de se render à evidência: "Somos todos órfãos. Nem vós nem eu temos Pai!"

É o século das hesitações, da apologética entre ateus, deístas e crentes. Estavam todos unidos no pessimismo.

 


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