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CRENÇA, DESCRENÇA E FÉ CRISTÃ (fim)
Bento Domingues
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13. O séc. XIX é conhecido como a era da morte de Deus. Na França, com a Revolução, em dez anos (1790-1800), as
relações de força entre crença e descrença mudaram, de forma
brutal. E foram enormes as repercussões que a Revolução Francesa
teve em toda a Europa.
A irrupção de uma descrença ou incredulidade agressiva e conquistadora na vida pública, por vezes com o apoio do Estado, é um
dos fenómenos importantes da história contemporânea. Começou
por adoptar a forma de anticlericalismo. Foi um movimento que,
sob o termo genérico de "descristianização revolucionária", se
tornou o catalisador de todas as energias anti-religiosas apostadas em eliminar o cristianismo. Vários ex-padres, padres renegados,
entraram nessa missionação ateia.
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A descristianização foi sobretudo a manifestação de uma crise
latente da própria fé em algumas camadas populares e que a
liberdade religiosa apenas ajudou a revelar.
No entanto, o séc. XIX, dividido e oscilando entre a fé cristã e o
ateísmo materialista, vai encontrar muita gente a procurar fórmulas
de compromisso entre os que rejeitavam o dogmatismo estreito da
Igreja Católica e os que não aceitavam as filosofias da morte de
Deus. Mesmo no interior da Maçonaria desenvolveu-se um debate
entre aqueles que desejavam impor a crença no Grande Arquitecto
do Universo e os que defendiam a total liberdade de consciência.
Na confusão dos credos nasceram novas igrejas, até igrejas
ateias.
Reacendeu-se a nostalgia de Deus e desenvolveu-se o
panteísmo. A religião alojava-se cada vez mais no sentimento. Os
românticos, que têm um grande sentido religioso, recusavam
aderir aos dogmas secos das Igrejas, mas desenvolveram uma
espiritualidade multiforme.
A Igreja Católica, por seu lado, reafirmou os seus dogmas e
ainda os aumentou. Retomou e desenvolveu a religiosidade
popular: procissões, coloridas celebrações, confrarias, aparições,
milagres, peregrinações.
A restauração de algumas ordens religiosas, o surgimento de
novas congregações e o despertar de alguns movimentos de leigos
criaram novas aberturas.
A teologia, em declínio desde o séc. XVIII, está quase
imobilizada no séc. XIX. E vai levar muito tempo a compreender a
"alternativa" de Kíerkegaard...
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14. O progresso da descrença na sociedade europeia vem
dar lugar a diversas formas de ateísmo sistemático: o ateísmo
antropológico (Feuerbach); o socio-económico (Marx); o psicológico
(Schopenhauer) até se chegar à morte de Deus (Nietzsche). Nietzsche, no entanto, é muito subtil e cheio de contrastes,
mesmo nas suas afirmações mais rotundas: "O crepúsculo da fé no
Deus do cristianismo e o triunfo do ateísmo científico constituem um
acontecimento que diz respeito ao conjunto da Europa e no qual
todas as raças devem participar com mérito e honra. Pelo contrário,
deve-se pôr na conta dos alemães - dos alemães contemporâneos
de Schopenhauer - o facto de terem retardado esta vitória do
ateísmo da maneira mais prolongada e mais perigosa. Hegel, em
particular, foi o agente por excelência deste atraso pela tentativa
grandiosa que fez de nos persuadir do carácter divino da existência,
apelando, em último recurso, para o nosso sexto sentido, o "sentido
histórico" (Cit. por G. Minois, O.cit. p.510).
Deu-se conta, por um lado, que mesmo quando toda a gente
sabe que "um teólogo, um padre, um papa mentem, isso não
adianta grande coisa, confessara no Anti-Cristo: "os valores morais e
metafísicos, ligados ao cristianismo, subsistem". E, para ele, "passou
a não ter sentido que alguém se pusesse a imaginar que estava a
escolher livremente a sua existência ou a sua maneira de ser". Sabia
que o niilismo e as dúvidas o levavam à loucura.
E chegamos assim a uma situação paradoxal: enquanto que
Freud tentava mostrar a origem mórbida da religião, Nietzsche
denunciará o "último homem" como uma doença mortal.
No séc. XIX aumentou a descrença em todas as suas formas
práticas e teóricas; recuou a prática religiosa em todas as categorias
sociais, a elaboração de vastas sínteses ateias. A filosofia, a ciência,
a história, a sociologia, a medicina, a psicologia, a psicanálise
proclamam, pela boca dos seus representantes mais autorizados,
a morte de Deus, mesmo se subiste a consciência de que o seu
enterro vai ser difícil.
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15. 0 séc. XX, de que nos estam os a despedir, depois do
século da morte de Deus, é o século da morte das certezas, em
detrimento da fé e do ateísmo. 0 ateísmo de Estado dos países
comunistas e a religião de Estado caíram em descrédito. Em nome
da ciência ninguém é crente nem descrente.
André Godin lembra algo de essencial que pode servir de
síntese ao rapidíssimo percurso histórico evocado nesta conferência:
"Uma certa apologética cristã gosta de sublinhar a universalidade
geográfica e temporal da crença no divino e a adesão unânime
(mais ou menos consciente) a um pensamento teísta. Por razões de
bom método, uma tal afirmação deveria ser completada por esta: a
universalidade igualmente impressionante de um certo ateísmo, a
presença (mais ou menos socialmente admitida) de um pensamento,
segundo o qual não há nenhuma divindade na origem do mundo.
"A coexistência destas duas tendências, que se podem encontrar
tanto entre os filósofos da Grécia antiga como nas culturas mais
tradicionais - em certos adultos que deixaram de acreditar nos mitos
e nos ritos antigos -, sugere a ideia da permanência, na humanidade, de um conflito ou de uma antinomia psicológica cuja resolução
se prosseguirá quer na linha da crença religiosa, quer na descrença" (Cit. por Georges Minois, O. cit., p. 587).
Neste sentido, não deixa de ser sintomático que um inquérito
feito em 1989 aos responsáveis por unidades de investigação do
CNRS (França), no departamento de ciências exactas tenha dado o
seguinte resultado: 110 investigadores declararam-se crentes; 106
não crentes e 23 agnósticos. 70 por cento desses investigadores
pensam que a ciência nunca poderá excluir ou provar a existência
de Deus. Calculou-se, em 1993, que no ano 2000 haverá 1071 milhões
de agnósticos e 262 milhões de ateus.
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16. Não sei se o séc. XXI será crente, descrente ou cristão. A
história continua aberta.
Não sei se haverá um interesse decisivo e 'acabar com a espécie
humana. A manipulação genética pode fazer dela outra coisa.
A espécie que conhecemos concebeu a crença, a descrença e
acolheu a fé cristã como uma graça.
A fé cristã é a convicção, testemunhada por Jesus de Nazaré,
de que todos os seres humanos estão inscritos no coração de Deus. Salvam-se, como seres humanos e filhos de Deus, quando consentem na graça de receber os outros no seu próprio coração.
Este é o universalismo cristão, isto é, aquele que nos foi proposto
pelas atitudes e pela palavras de Jesus Cristo. Estas foram-nos
entregues pela Igreja através dos textos do Novo Testamento e
dizem: Deus ou é para todos, sem se impor a ninguém, ou não é o
Deus de Jesus Cristo. O cristão, ou aceita a graça de acolher todos
os seres humanos, mesmo os inimigos, ou deixa de ser cristão.
Esta fé assenta na força de uma debilidade radical (2 Cor 12,
10), na adesão à Ressurreição de um Cristo crucificado, um
escândalo para a religião e uma loucura para a razão (lCor 1-2).
A característica peculiar da mensagem do cristianismo concentra-se precisamente na afirmação de que este Jesus histórico, morto
sob Pôncio Pilatos, não é nada menos do que o Cristo, o Filho de
Deus, a testemunha e o portador do Amor absoluto. Não em forma
de monopólio, mas de dom partilhado. Jesus Cristo é único,
precisamente porque remete para o Deus de todos, crentes e não
crentes, e para todos os seres humanos, sem excepção.
Acreditar nisto, como revelação divina, como palavra de vida
eterna, é pura graça de Deus (Jo 6,60-71). A fé cristã não tem o seu
terminal nas crenças, nos enunciados, nos credos, mas no
Emmnanuel.
A ruptura de Jesus com as concepções de João Baptista é um
acontecimento de máxima importância para analisar a originalidade
da proposta atribuída a Jesus e a originalidade da fé cristã: Lc 3,
20-22; 8,28; 10,20; 16,16; Jo 1,16-18).
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17. Nota final para ler no começo (Cf B.E Suarez, ponto 2 e
ponto 4).
O termo "crenças - que se impôs na actual investigação da
sociologia e da psicologia da religião - acaba por prestar-se a
bastantes confusões, sobretudo no caso do cristianismo. As crenças
são sistemas de referência e interpretações - mais ou menos
implícitas - da realidade. Vão muito para além do âmbito religioso.
O cristianismo tem crenças, mas não se reduz às crenças. Contam-se entre as componentes de uma atitude religiosa. É difícil tentar
isolá-las de outras dimensões da religião que, por sua vez, também
não se reduz às crenças.
A religião como atitude e vivência pessoal da religiosidade é
integrada por várias dimensões, entre si relacionadas, em maior ou
menor grau. Na vida de cada pessoa até podem acontecer de forma
separada. Glock e Star classificaram as diferentes manifestações da
religião pessoal em cinco categorias:
- A dimensão ideológica indica o compromisso com as crenças
especificamente religiosas. Exprime o grau de adesão ou de assentimento aos conteúdos e às representações de uma religião ou de
uma determinada fé. O que conta é a intensidade da convicção.
O termo escolhido por razões de neutralidade científica - ideológica - é infeliz e talvez fosse melhor abandoná-lo.
- A dimensão intelectual refere-se ao conteúdo das crenças. Fala-se, por isso, de conhecimento, de compreensão. Conhecer uma
doutrina religiosa é normalmente a condição para a aceitar. Não
basta, porém, o conhecimento para uma adesão crente.
- A dimensão ritual inclui os diferentes actos que uma pessoa
executa por causa e como expressão da sua religiosidade: devoção
privada - oração pessoal, meditação, contemplação - e pública
estatuída pela igreja, denominação ou confissão: prática sacramental, assistência aos actos de culto.
- A dimensão experiência refere-se aos sentimentos, percepções
e sensações que afectam um sujeito ou que são definidas por
um grupo religioso como algo que implica uma determinada
comunicação, por mais ténue que seja, com uma realidade divina,
com Deus, com uma autoridade transcendente. É este elemento -
uma determinada sensação de contacto com uma instância
sobrenatural - que caracteriza uma experiência religiosa e que a
distingue de qualquer outra experiência humana.
A experiência religiosa participa da apreensão imediata de toda a
experiência-vivência e, apesar da sua grande diversidade, supõe
sempre uma implicação da pessoa toda.
Esta condição envolvente abre a porta ao afectivo e compreende-se o duplo efeito de atracção e de suspeita que geralmente
acompanha as experiências religiosas intensas.
- A dimensão das consequências situa-nos diante dos efeitos da
religiosidade, das repercussões morais e práticas da fé. Aquilo que
as pessoas fazem em razão da sua fé.
- Embora este modelo aspire a descrever qualquer tipo de
religiosidade, é no âmbito da cultura cristã que esta perspectiva se
mantém relativamente válida. Na discussão que esta descrição
provocou, uma coisa ficou clara: o essencial na religião na relação é
o empenhamento-compromisso com a transcendência e só em
segundo plano incluí outros elementos: conhecimentos, práticas,
repercussões morais, afectos.
Por outro lado, neste modelo, dito multidimensional, as crenças
são o que há de mais nuclear.
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