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Mas como proceder nessa elaboração? Haverá outro caminho possível além da cultura do nosso tempo? Os cristãos viveram sempre inseridos na cultura do seu tempo, foram marcados pelo seu ethos, o que faz deste diálogo algo de tão natural como inevitável. Mas um diálogo tem as suas exigências: deve ser baseado no respeito, excluindo – do diálogo, não do respeito - somente aqueles que se opõem à busca de um sentido, à formulação de critérios de discernimento. Numa palavra, o diálogo não parece possível com quem adopte neste campo uma postura anárquica, fazendo da liberdade de comportamentos um absoluto. O diálogo também não deve ser, para os cristãos, a demissão do seu sentido crítico. Nos nossos dias, parece haver, ao lado de um exagero crítico, nomeadamente nas “condenações sem justificações” das chamadas posições oficiais, uma certa demissão da reserva crítica ou, pelo menos, grande diminuição do inconformismo face à mentalidade dominante, por parte de muitos leigos e não só. “Não vos conformeis com este século, mas reformai-vos com o renovamento do vosso espírito... (1)”. Segundo a perspectiva da Gaudium et Spes, na base de uma solidariedade com “as alegrias e as esperanças” de todos, impõe-se que, fiéis à esperança cristã e às suas exigências, os cristãos saibam pôr tudo e todos em questão, corrigindo, purificando, libertando. Mas dialogar não é só exigir que nos escutem. É também escutar, com interesse sincero, até para que possamos ser escutados. No Concílio, a Igreja reconheceu, com aplauso, como característica da cultura do nosso tempo, o aparecimento de “um novo humanismo”, construído em torno da autonomia e da responsabilidade (2). Foi igualmente ao ponto de integrar na regra de toda a actividade humana o permitir ao ser humano realizar-se, na plenitude da sua vocação (3). O antropocentrismo e a sua componente inevitável, o culto da liberdade, são, pois, o grande desafio em matéria de diálogo. Será a Igreja alguma vez capaz de dialogar com este mundo? No centro do diálogo possível, está, com a filantropia divina de que falaram os Padres, o reconhecimento, aberto e franco, da paixão pela liberdade. Como já vimos, essa questão deve ser, por respeito pela verdade, reequilibrada pela reintrodução da prioridade da felicidade. E, aqui, os cristãos poderão ter coisas originais a dizer, em nome da sua fé e da experiência de todos. Como, por exemplo, que “há mais felicidade em dar do que em receber” (4) e que o verdadeiro êxito de uma vida paradoxalmente só se alcança quando se vive para uma grande causa, quando essa vida “se perde”, se entrega em serviço (5). O que não poderá deixar de matizar, e muito, a exaltação unilateral da liberdade que, para muitos, é alma deste tempo. Repita-se, no entanto, que este tipo de linguagem, por parte dos cristãos, só poderá ser ouvido, no quadro de uma sincera e comum devoção à causa da liberdade, na perspectiva, ainda aqui, aberta pelo Concílio, ao afirmar que “o homem só pode orientar-se para o bem, mediante o uso da liberdade, que os nossos contemporâneos têm em tão grande apreço e procuram ardorosamente. E com razão” (6). Uma outra condição de um diálogo frutífero é a aceitação incondicional dos dados das ciências, particularmente das ciências humanas. Não se pode continuar a falar, como se os últimos séculos nada de novo tivessem introduzido, na consideração da sexualidade humana. Duas grandes contribuições se nos impõem, penso. A sexualidade humana não é exclusivamente reprodutiva, será a primeira . No quadro de um gigantesco “desperdício” biológico que perpassa ao que parece por toda a natureza, dos vegetais aos mamíferos, em que as virtualidades reprodutoras só em pequena escala conduzem efectivamente à reprodução, a sexualidade humana, além disso, apresenta a característica de estar presente, em termos de atracção, muito para lá dos períodos genésicos. Mesmo se esta última afirmação carece de algumas precisões, e as coisas não são contrastadas de forma tão absoluta, como, dir-se-ia, a preto e branco, há que reconhecer uma continuidade descontínua da sexualidade humana em relação à sexualidade animal: sendo também uma sexualidade, a humana transborda, ultrapassa, a animal, vive-se noutra dimensão . Como não evocar aqui aquela indeterminação, aquela insegurança do instinto nos seres humanos, que constitui o vão que a ética é chamada a preencher? (7). A segunda grande contribuição tem a ver com o carácter omnipresente e evolutivo da sexualidade humana, que não só transborda os chamados períodos genésicos, mas, de forma não facultativa, é omnipresente: é, com efeito, como homem ou como mulher, com tudo o que isso significa de próprio e distinto, que toda a nossa vida, mesmo aos níveis da oração e do testemunho, se realiza. Impõe-se aceitar o facto, e assumi-lo, com naturalidade, não ceder em nada à ilusão de angelismo. Mas não é só isso. A sua presença em toda a vida humana tem sido descrita como uma pulsão, forte e complexa, que tendencialmente evolui da dispersão para a integração dos seus vários elementos (afectivo, procriador, erótico, etc.). Poder-se-á daí concluir que a verdadeira noção a ter em conta – enquanto critério seguro e firme para a elaboração de uma ética sexual - é a desta sexualidade integrada do adulto? Há algo de sedutor nesta perspectiva, particularmente se esta integração estiver, por sua vez, aberta ao serviço de um ideal de realização humana mais amplo que lhe dê sentido e a tudo o mais. Reprovável seria, assim, não a vivência da sexualidade em toda a sua riqueza humana, biológica, erótica e afectiva, mas as suas contrafacções, imaturidades, fixações parciais e exclusivas. Há seguramente uma parte de verdade nisso, mas, receio, também, um pouco de simplismo. Não seria isso, aliás, esvaziar o seu perturbante enigma? Cada etapa desta longa evolução a partir do auto-erotismo da infância (8), ultrapassado pela escolha de um objecto, pela integração das pulsões parciais para a plena integração da sexualidade adulta, pode tornar-se um ponto de fixação, cada novo arranjo desta combinação complicada pode dar lugar a uma dissociação da pulsão sexual. Para tanto contribuem factores como a constituição e a hereditariedade, assim como outros vindo de fontes externas, sem esquecer, visto que não estamos perante um puro determinismo, o jogo das liberdades pessoais. Tudo leva a crer que, ao lado dos autênticos fracassos (os perversos e os neuróticos, que são os que recalcam a sua perversão) há todos os outros, mais ou menos conseguidos, talvez a grande maioria, aqueles em quem um retrocesso é sempre possível. Como valorizar todas estas situações e actuações? Sabe-se bem que a resposta da teologia moral tradicional na Igreja Católica foi a de as encarar todas negativamente. E de lhes apor a nota de matéria grave. Mas as suas razões já não convencem. Há que admitir, por um lado, penso, alguma responsabilidade possível enquanto se não chega à fase adulta, integrada e madura, assim como nos fenómenos de regressão. Parece difícil que afirmar que tudo aquilo que, no quadro da noção evolutiva e integradora da sexualidade humana, é considerado “anormal” exclua toda e qualquer responsabilidade. Por outro lado, se o que é visto como moralmente positivo é a hipotética fase da plena integração, cabe perguntar se o processo, que a prepara, que a ela conduz, globalmente considerado, não terá também ele algum sentido positivo, e o mesmo se diga de cada uma das suas fases. Como saber, aliás, a propósito de cada acto, se ele contribui para a maturação sexual ou se opõe a ela? Em guisa de conclusão, diria apenas que, assim como não foi útil à ética sexual a utilização não criticada dos dados de uma ciência, hoje completamente ultrapassada, assim também não parece possível extrair dos dados das ciências humanas, mesmo se, por ora, esses dados são consensuais, as regras de comportamento. Será necessário tê-los em consideração, sem dúvida, mas mais como integrantes da formulação de um problema do que como a resposta, ou a chave da resposta, desse problema. A ética não se elabora na base da ciência, ou como apêndice de uma ciência, mas, na dependência de um ideal de autenticidade humana, para as pessoas e para as comunidades, como a formulação das vias de acesso a essa realização plena. |
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(1) Rm 12:2. (2) GS 55. (3) GS 35, §2º. (4) Act 20: 35 . (5) Mc 8:35. (6) GS 17. (7) Há, de facto, uma grande diferença mesmo entre mamíferos superiores e seres humanos, quanto aos períodos genésicos, embora nem naqueles o instinto reprodutor seja tudo, como as suas dificuldades de reprodução em cativeiro demonstram. (8) Freud (“Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”) vai ao ponto de dizer: “.. a criança é um perverso políformo, multiforme”, isto é, tem tendência à perversão, a qualquer perversão. Já Aristóteles dizia que a intemperança é um vício infantil, não tanto como característico dos jovens, mas como uma infantilidade, um infantilismo, uma imaturidade). |
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