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Parece-me haver hoje um grande consenso em situar a sexualidade humana, no quadro da afectividade humana, como justificação, como expressão e reforço do amor. Sem excluir o desejo da descendência. Daí decorreria obviamente um critério ético: o dom de si no amor deveria ser encarado como moralmente correcto, ao passo que a busca egoísta do prazer mereceria reprovação.
Nem o consenso em torno da sexualidade como linguagem amorosa, nem o critério ético apontado, são, só por si, evidentes. De facto, o que é o amor? Haverá conceito mais ambíguo? Não haverá aqui também matizes a reconhecer, para além do sim e não? Pensar-se, além disso, que o uso da sexualidade se justifica apenas quando preexiste o amor, mas nesse caso de forma indiscutível e incondicional, é, com um certo risco de irrealismo a-social, ceder em excesso às “evidências” do romantismo: com efeito, é bem sabido que, durante muitas gerações, quando o casamento era de iniciativa e por conveniência familiares, muitos casais vieram pelo casamento ao amor e não vice-versa. Mas, apesar disso, creio que qualquer outra abordagem seria, neste tempo, incompreensível, e que só, aceitando este quadro, será possível o diálogo. Inclusivamente aqueles correctivos que a nós cristãos nos parecem necessários, porque desfazem equívocos e abrem a outras dimensões, só nesta base. Por isso, o amor é também a nossa última – e, no fundo, única - palavra nesta simples busca de uma resposta ética ao enigma da sexualidade. Para já, impõe-se que se trate de uma autêntica relação afectiva, no sentido da amizade, da filía grega, sem excluir, aceitando até e procurando, o prazer, mas sem fazer disso um absoluto, isto é, de forma enquadrada. Por outras palavras, quando se aceita o amor como a referência necessária para a sexualidade humana, não nos referimos ao amor exclusivamente erótico, que, sendo mais amor do amor do que amor de alguém, não só tem qualquer coisa de tautológico, como não vai no sentido da abertura, e, portanto, da personalização. Difícil será dizer, na riqueza e perturbação que é o amor, o que comanda e o que é comandado, o que exprime e o que é expresso, pois nem será sempre o mesmo, mas a presença dos dois, a convivência de desejo e amizade são, creio, a marca de uma sexualidade vivida de forma autenticamente humana. Nesse quadro se deveria ainda inserir a influência da ágape, já antes referida. Esta associa-se mais frequentemente ao dom e ao serviço exercidos, no contexto das relações amplas, que acompanham a vocação ao celibato, mas nada justifica, antes pelo contrário, que se exclua dessa abertura, desse suplemento de orientação e sentido, a relação curta e intensa que é a relação amorosa. Não seria de evocar aqui a lógica da encarnação e a dimensão eminentemente sacramental de todo o criado, pela qual a própria carne, sem deixar de o ser, torna presente o divino? Aplicar-se-á o que ficou dito a qualquer relação afectiva, nomeadamente à relação homossexual? Não me parece possível, à partida, recusar totalmente essa possibilidade - o que para alguns será a prova acabada de que esta abordagem não é válida - , mas o que parece de longe mais frequente é o contrário: a busca do prazer acima dos laços afectivos na multiplicidade das relações, sucessivas e até simultâneas, infidelidades, pouco ou nenhum verdadeiro envolvimento afectivo, o que, por falta de filía, fará que Eros não seja aberto a dimensões mais humanas, em ágape . Porque será? Não sei, como não sei se realmente assim é. A reivindicação de liberdade desta tendência, parece ilustrar o que dizia antes: em si mesma aceitável e indiscutível, como em todos os outros casos, não é tudo. A realização do sexo pelo só prazer, sem mais, é capaz de ser uma defraudação da própria ânsia de felicidade, um logro. Toda a questão é de saber se, dessa forma, são mais felizes, se são mais livres. Fundamentalmente, a adopção, franca mas crítica, do critério decorrente da afectividade poderia ajudar à substituição de uma tabela de “proibições sem justificações”, de um código exterior, tão desacreditado aliás, o qual, a partir da pretensão de tudo saber, - a negação do mencionado enigma, se não mesmo a negação da própria sexualidade tal como é vivida pelos seres humanos - ; permitiria avaliar os comportamentos por um ideal concreto de vida, completado pelo esforço de conduzir a existência em coerência. Relativamente a esse ideal de vida, há que admitir a diversidade dos carismas e das vocações. E, sobretudo, que cada um é responsável perante Deus e os irmãos e, no caso de envolvimento sexual, responsável perante o outro pólo dessa relação, pelos seus actos, pela condução da sua vida. O papel da comunidade eclesial deveria ser esclarecer esse ideal e as suas implicações e ajudar a perseverar, perdoando, quando necessário, animando sempre. Para terminar estas já longas considerações, atrevo-me a colocar uma outra questão: poderá transpor-se esta perspectiva, claramente confessional e cristã, para uma versão humanística, em vista do diálogo com não-cristãos? A versão do código, da tabela, isolou os cristãos; poderá esse isolamento ser ultrapassado em relação aos homens de boa vontade? Quando os não cristãos aceitam para a vida um ideal e um sentido, alguma forma de transcendência, assim como uma busca, que inclua o sentido da dignidade humana e o da comunhão entre humanos, na justiça, nada pode impedir o diálogo e o entendimento. |
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Mateus Cardoso Peres |
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