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Heidegger mostra que a pretensão de Hegglin (a exigência de prova das relações psique-soma) é uma pretensão insustentável. De facto, Hegglin pretende que as ligações psique-soma possam ser provadas cientificamente. Ora, uma prova científica das ligações psique-soma só poderia ser feita a partir da consideração dos fenómenos somáticos, pois só estes são mensuráveis e a prova exige essa mensurabilidade (só o que é mensurável pode ser provado cientificamente). Como Heidegger afirma: “Aquilo que corresponde à exigência de conhecimento válido do cientista natural deve ser provável e provado pela mensuração. O autor [Hegglin] exige, pois, que a relação entre soma e psique seja mensurável. Mas isto é uma exigência injustificada, pois não provém da relação dos factos em questão, mas sim da exigência e do dogma cientifíco-natural: só seria real o que fosse mensurável.” Em relação a este problema-do-corpo , Heidegger começa por determinar em que consiste o problemático do problema-do-corpo . O problemático reside na questão o que é o corpo: é algo somático? É psíquico? É psicossomático? Ou nenhum dos dois? A questão pode, em termos muito heideggerianos aliás, ser colocada assim: neste momento em que eu me dedico de “corpo e alma” ao estudo de Heidegger, onde é que está o meu corpo? Se a pergunta considera o corpo como corpo material, dir-se-ia que o meu corpo está sentado na cadeira, com o antebraço esquerdo apoiado sobre a mesa, com as duas mãos tocando no teclado e os olhos concentrados no ecrã do computador. Mas na verdade, quem está sentado na cadeira sou eu e não o meu corpo (como se eu o visse de fora). Imediatamente a resposta à pergunta (onde é que está o meu corpo neste momento em que eu me dedico de “corpo e alma” ao estudo de Heidegger?) não aparece, mas por outro lado, podia-se questionar, igualmente, onde está o “estudo de Heidegger”? Qualquer identificação material ou espacial (está neste livro, ou está nesta sala, como se pudesse aprisionar o estudo) seria desprovida de sentido. Eu posso dizer que, neste momento, “só tenho olhos” para o estudo de Heidegger, e com isso estou a identificar que o olhar (o ver, o ler, o estudar) é um modo de corporar o estudo de Heidegger. È por essa corporização do estudo que eu tenho de ficar sentado na cadeira (se eu corresse pela sala não poderia estudar ou, pelo menos, não o faria tão bem). Estar “de corpo e alma” no estudo significa que o meu corpo pertence aqui, mas o estar-aqui do corpo (estar sentado na cadeira, ter o braço apoiado na mesa etc.) É, por essência, um estar-lá, junto de algo. Por exemplo, o meu estar-aqui, significa escrever e ler o texto no ali do ecrâ do computador. R. Hegglin, falando na relação entre o psíquico e o somático afirma: “O luto não pode ser medido, mas, em virtude das relações psicossomáticas, as lágrimas formadas pela tristeza podem ser examinadas numericamente de várias maneiras.” Heidegger comenta esta passagem do seguinte modo: “Na verdade, porém, as lágrimas nunca podem ser medidas. Quando se mede, medem-se na melhor das hipóteses um líquido e as suas gotas, mas não lágrimas. As lágrimas só podem ser vistas directamente. Qual é o lugar das lágrimas? São elas algo de somático ou algo psíquico? Nem uma coisa nem outra.” Analisemos um outro fenómeno: uma pessoa que enrubesce de vergonha. Também aqui o enrubescimento não pode ser medido, o que é mensurável é a vermelhidão, por exemplo, pela medida do fornecimento de sangue. O enrubescimento é algo somático ou psíquico? Nem um, nem outro. Fenomenologicamente, o enrubescimento da face provocado pela vergonha pode ser diferenciado do enrubescimento provocado, por exemplo, pela febre, ou pela diferença de temperatura quando entramos numa case aquecida vindos do frio da noite. Todos estes tipos de enrubescimento acontecem na face, embora sejam diferentes e diferenciáveis. De facto, “vemos” no rosto de alguém se ele está, por exemplo, constrangido ou febril. Tomemos em consideração este outro exemplo: enquanto escrevo ao computador, eu tenho à minha frente, sobre a mesa uma série de objectos (o tapete do rato, o rato, a impressora, o telemóvel, o candeeiro, um copo com água), mais à frente tenho a janela que me permite olhar para uma série de determinações que estavam “ausentes” enquanto escrevia e das quais tenho notícia agora que olho pela janela (a própria janela, o puxador, as cortinas, o telhado das casas, chaminés, pombas, antenas, o hotel Tivoli mais ao fundo). Eu posso relacionar-me de modo diferentes com as coisas que estão diante de mim . Posso, por exemplo, olhar o puxador da janela e agarrar o copo de água com a minha mão direita. O tipo de relação que eu tenho com o puxador é evidentemente diferente do que o que eu tenho com o copo (o puxador não está no meu olho, assim como o copo está na minha mão). No entanto a determinação da diferença do tipo de relação é mais complexa do que a constatação da diferença. De facto, quer o olho, quer a mão, pertencem ao meu corpo; por outro lado, se eu digo que o copo está na minha mão, também posso dizer que a imagem do puxador, fixada pela retina, está no meu olho. A diferença está na diferente subjeicção , isto é, na diferente relação sujeito/objecto que se estabelece entre mim e o copo e entre mim e o puxador da janela, esta diferente subjeicção é determinada pela constituição de sensações duplas: quando eu pego no copo de água com a minha mão eu vejo-me a agarrar o copo, posso, inclusivamente, agarrar com a minha mão esquerda a minha mão direita enquanto esta agarra o copo, ao contrário eu não posso ver o meu olho, nem o meu ver e muito menos pegar neles. A diferença é claramente uma diferença de propriocepção: quanto eu agarro o copo eu sinto o copo e sinto a mão, isto é, a chamada sensação dupla, o sentir do que é tocado e o sentir da minha mão (o que toca). Ora, ao ver, eu não sinto o meu olho desta maneira, eu posso sentir os olhos quando movo o olhar (quando desvio o olhar do ecrã do computador para o puxador da porta), mas esta sensação não pode ser classificada de sensação dupla, pois eu não sinto o puxador da janela, que vejo quando desvio o olhar para ele. O que Heidegger procura mostrar são diferentes modos de relação com a realidade estabelecidos a partir do corpo, isto é, para sermos rigorosos, do modo como o corpo se relaciona com o espaço e como nessa relação torna presentes as coisas, a realidade (este copo, aquela janela etc.). À medida que eu vou movendo a cabeça vou vendo objectos que me aparecem : o computador, a impressora, o copo de água, o livro, as chaves dão-se em estado de presença . Quando algo me aparece - aquelas chaves, por exemplo - eu tomo conhecimento de algo. “Aparecer” parece querer significar, antes de mais, o momento em que se actualiza o reconhecimento de uma coisa por alguém, o seu estar de facto em presença hic et nunc perante um sujeito empírico. Ou seja, o aparecer, não é um acontecimento da coisa - das chaves, que evidentemente já existiam, já estavam lá, antes de me aparecerem - mas um acontecimento meu. A aparição é, neste sentido, a forma mínima de toda a posição, comum a tudo o que podemos reconhecer como coisa, representação, fenómeno. Porém, a fenomenalidade não é um adjectivo extrínseco das coisas, não as classifica numa hierarquia ontológica, nem aponta para uma forma secundária de acontecimento. Das coisas - destas chaves, deste copo - sabemos que são fenómenos, aparecem, constituem-se desse modo. A representação constitui, assim, o mínimo denominador comum de tudo o que há, a condição de acesso ao mundo, se se quiser. A este respeito, a grande viragem ocidental, que Kant promove e que vai até Heidegger, via Husserl, está na intencionalidade da representação. Quando Kant fala em consciência pura , designa aquele saber que não se refere já aos objectos empiricamente perceptíveis - estas chaves ou este copo - mas sim aquilo que possibilita a experiencialidade dos objectos, ou seja, a sua objectividade. A objectividade dos objectos é a consciência. Em Bretano e em Husserl quando se fala em intencionalidade (em intencionalidade corpórea, por exemplo) diz-se que toda a consciência é consciência de algo, é orientada para algo, ou seja, não se tem uma representação, mas sim representa-se: a aparição das chaves não é um acontecimento delas, mas um acontecimento meu. |
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