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Toda a consciência é, portanto, consciência de si. Não há consciência sem consciência de si e o si não se torna necessariamente temático. Esta é a estrutura mais geral da representação ou, no sentido de Husserl, da consciência de algo. Como escreve Heidegger, “Também quando eu imagino [einbilde] uma montanha de ouro, que não existe, eu tenho de construi-la [bilden] para mim mesmo.” Sobretudo no seminário de 11 de Maio de 1965, Heidegger desenvolve o que, em Ser e Tempo , se identifica como “o Dasein na sua corporeidade”. Assim no §23 de Sein und Zeit é dito: “Da mesma maneira que os seus distanciamentos, o Da-sein também traz permanentemente consigo as direcções (esquerda-direita, em cima-em baixo, em frente-atrás). A espacialização do Dasein na sua corporeidade, a qual obriga em si a uma problemática especial, que não será tratada aqui, acha-se também marcada por essas direcções”. Esta problemática que Heidegger identifica, mas não desenvolve, em Sein und Zeit procura, então, desenvolver nos seminários de Zollikon, sobretudo através da teoria do corporar do corpo (Leiben des Leibes) enquanto modo do Dasein. A este respeito escreve Heidegger: “Se o corpo como corpo é o meu corpo em cada caso, então este modo-de-ser é o meu e, portanto, o corporar é co-determinado pelo meu ser-homem no sentido da permanência ek-stática no meio do ente iluminado. O limite do corporar (o corpo só é corpo uma vez que ele corpora) é o horizonte-do-ser no qual eu permaneço.”. Este horizonte-do-ser é o espaço-do-corpo, é o spatium , como lhe chamamos anteriormente. Para que eu diga, ao tocar, por exemplo, com as mãos no meu peito, “este é o meu corpo”, foi necessário transferir o corpo material para o espaço interior (o que se deu por ocasião na minha estada nesta sala, enquanto estava sentado nesta cadeira, trabalhando em frente ao computador etc.). É esta transferência que me permite sentir não o corpo, mas sentir-me, por isso posso dizer, enquanto toco com as mãos no meu peito, “este sou eu”. Tomemos um outro exemplo: eu digo “o computador está em cima da mesa”. O que eu digo com esta afirmação remete para uma circunstância determinada. O meu corpo está, naturalmente, envolvido nessa circunstância, ele está envolvido no ouvir, no ver e no tocar. Ora é evidente que não é o corpo que ouve, vê ou toca, mas sou eu - sou eu que ouço, eu que vejo, eu que toco. Mas para este ouvir, ver, tocar, são necessários os meus ouvidos, os meus olhos, os meus dedos e, portanto, o corpo. O Corpo nunca vê o computador, mas, como é óbvio, para que eu diga “o computador está em cima da mesa”, é necessário que o meu corpo esteja suficientemente próximo do computador para que eu o consiga ver. Ou seja, a minha afirmação - “o computador está em cima da mesa” - é uma afirmação sobre a relação espacial entre mim e o computador. O computador foi corporado no meu espaço. Eu estou no meu espaço . Isto é, o estar [Befinden] do homem acontece no Spatium , isto é, num espaço interior não localizável materialmente. Quando perguntamos a alguém “ Como está?” Estamos a questionar esse espaço interior e não a perguntar objectivamente pela localização do corpo de alguém num espaço físico, daí a resposta ser sempre qualitativa - “estou bem”, “estou mal” - e numa factual - “estou aqui”-. Na Física Aristóteles desenvolve a essência do topoz (topos), no Livro IV, cap. IV é dito que “o espaço parece ser algo grande, importante e difícil de determinar”. O espaço é o aberto, ou, mais correctamente, é o horizonte (grande, importante, difícil de determinar) que possibilita operações de abertura. Estas operações de abertura são, na fenomenologia, quer em Brentano, quer em Husserl, quer em Heidegger, representações, ou seja, consciência de si, sendo que o si mesmo não se torna necessariamente temático: esta é a estrutura fundamental mais comum da representação ou - no sentido de Husserl - a consciência de algo que, em Heidegger, significa eu corporizei algo . A identidade entre sujeito e percepção é particularmente evidente nos fenómenos somáticos: eu agarro as chaves e sinto-as frias ou aperto-as e sinto uma ligeira dor. Eu percebo, perfeitamente, que a percepção das chaves provocou uma alteração em mim e não nas chaves, a notícia das chaves é um acontecimento em mim que consigo identificar, por exemplo, a partir da sensação fria que sinto na mão ao agarrar a chave ou na sensação de desconforto que sinto ao apertá-las com mais força. A identidade entre sujeito e percepção, a que nos referimos, não significa porém, a redução do sujeito à percepção que em cada caso eu reconheço como “uma percepção”: eu sinto frio, mas não sou o frio, sinto a dor na mão, mas não me identifico com essa dor. Por outras palavras, o sujeito não se esgota em nenhuma percepção particular, desde logo porque cada uma é vivida como “percepção particular”, não definitiva, antes, transitória e variável, enquanto o próprio sujeito se vive como definitivo, permanente, como “o mesmo”. É por eu ser “o mesmo” que posso sentir inúmeras percepções da chave e de seguida largar a chave e sentir inúmeras percepções do copo. Em cada percepção particular, de cada vez que eu agarro as chaves, em que as aperto, em que toco o copo, eu corporizo de vários modos a chave ou o copo, de cada vez eu torno-me presente a mim mesmo, ou seja, ao perceber o copo ou as chaves, de facto, eu corporizo - me , eu modifico-me ao nível do espaço interior do meu corpo, daí poder passar por inúmeras e distintas sensações sem sair da cadeira. Martin Heidegger di-lo assim: “Então tudo o que chamamos a nossa corporeidade, até a última fibra muscular e a molécula hormonal mais oculta, faz parte essencialmente do interior do existir; não é, pois, fundamentalmente matéria inanimada, mas sim um âmbito daquele poder perceber não objectivável, não opticamente visível de significações do que vem ao encontro, do que consiste todo o Dasein. Este corporal forma-se de tal modo que pode ser utilizado no trato com o ‘material' do animado e inanimado do que vem ao encontro. Mas ao contrário de uma ferramenta as esferas corporais do existir não são descartadas do ser-homem. Não podem ser guardadas isoladas numa caixa de ferramentas. Ao contrário, elas permanecem habitadas pelo ser-homem, seguras por ele, pertencentes a ele, enquanto um homem viver. No entanto, ao morrer, este âmbito corporal transforma o seu modo de ser naquele de uma coisa inanimada, na massa de um cadáver que decompõe. Certamente o corporal do Dasein admite que já em vida ele seja visto como um objecto material, inanimado, como uma espécie de máquina complicada. Tal observador, na verdade, já perdeu de vista para sempre o essencial do corporal. Então, a consequência de tal observação insuficiente é a perplexidade perante todas as manifestações essenciais do corporal.” Heidegger identifica, aqui, o espaço interior com o que denomina orientação essencial do Dasein: percebe-se que a minha mão é capaz de sentir as chaves frias ou a superfície do copo lisa, porque o espaço do corpo (o espaço interior , o spatium , o cogito) corporiza as chaves e o copo. Por outras palavras, o humano é naturalmente corpóreo, e o seu-ser-corpo não é redutível ao corpo-físico, nem é transformável a partir de transformações do corpo-físico. Decorre daqui que nenhuma transformação protésica que possa ocorrer no espaço material do meu corpo pode alterar o espaço interior do meu corpo, isto é, a minha natureza, a minha disposição corpórea, a que Heidegger chama de Dasein e que Santo Agostinho chamava Pondus. O peso do corpo não é mensurável é, precisamente, a condição de possibilidade de o copo, as chaves ou o meu corpo físico (quando eu me relaciono com ele como fenómeno) serem mensuráveis, isto é, o meu peso é o meu modo de acesso ao mundo, é, em linguagem heideggeriana, o meu ser-no-mundo. Heidegger di-lo assim: “Por isso, em relação à totalidade da corporeidade, pode-se dizer o mesmo que já foi citado com referência ao ver e aos olhos corporais: não podemos ‘ver' porque temos olhos, mas, antes, só podemos ter olhos porque segundo a nossa natureza fundamental somos seres que vêm. Assim, também poderíamos ser corporais, como de facto somos, se o nosso ser-no-mundo não consistisse fundamentalmente de um sempre já perceptivo estar-relacionado com aquilo que se nos fala a partir do aberto do nosso mundo como o que, aberto, existimos. Além disso, nesta interligação já estamos sempre orientados para os acontecimentos que se nos revelam. Somente graças a tal orientação essencial do nosso Dasein podemos diferenciar a frente do verso, o alto do baixo, o esquerdo do direito. Graças ao mesmo ser orientado para algo que se nos fala podemos na verdade ter um corpo, ou melhor, sermos corporais. Não somos, porém, primeiramente corporais tendo, consequentemente, a partir disso uma frente, um atrás, etc. Apenas não podemos confundir o nosso ser-corporal existencial com a materialidade-corpórea de um objecto inanimado simplesmente presente.” O que Heidegger faz ao falar na corporeidade como abertura é, antes de mais, caracterizar o espaço interior como coextensivo ao espaço exterior: há uma abertura da orientação essencial do meu espaço interior ao espaço objectivo, organizando-o, permitindo-me dizer que o ecrã está à minha frente, que a estante está ao meu lado, que a porta está atrás de mim, que as árvores estão lá fora, que eu estou cá dentro, etc. Por outras palavras, a corporeidade abre-se ao espaço, torna-se de certo modo espaço, e o espaço exterior tem de ganhar uma tonalidade semelhante à do espaço interior. Como Merleau-Ponty descreveu bem, um corpo que vê entra num campo de visão que lhe reenvia sempre a sua imagem em espelho: ver é ser visto. O corpo transporta consigo esta reversibilidade do vidente e do visível, por isso Merleau-Ponty falava de um narcisismo da visão , mas o que se percebe é que existe, efectivamente, um narcisismo da representação , qualquer dado, qualquer sensação, qualquer percepção é reenviada a mim, re-apresenta-me numa nova abertura. Heidegger di-lo de forma clara: “Representar = tornar presente. ‘Re'= de volta para mim. Repraesentatio = de volta para mim, apresentar a mim, e eu mesmo não me represento espacialmente”. Para Heidegger, estar no aberto [ Offenen ], estar na clareira e estar-aí [ Da-sein ], são categorias equivalentes: o meu aqui (indicação objectiva da minha localização no espaço exterior) está aberto a um aí (por exemplo quando através da janela olho as árvores da avenida da Liberdade e localizo-as a partir de uma reconstrução imagética da avenida como se lá estivesse). É precisamente a esta abertura ou dilatação do espaço do corpo para além das fronteiras do corpo próprio que chamamos Spatium , mas este transgredir das fronteiras do corpo próprio não se dá independente do corpo próprio, antes, se dá nele, requalificando-o em relação ao seu pondus , isto é, constituindo uma nova ligação do corpo ao espaço, uma nova relação entre aqui e aí, se se quiser, ou seja, gerando uma nova intensidade corpórea. |
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JOSÉ M. BÁRTOLO UNL |
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