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3. 2. 2. Da libertação da escravidão no Egipto à «limpeza étnica» do país de Canaã ou ao «genocídio» dos Cananeus (Ex-Js) |
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Os livros de Josué e dos Juízes dão versões bastante diferentes da conquista de Canaã pelos antepassados de Israel. Jz 1 menciona a conquista de pequenos territórios aqui e além por parte de tal ou tal tribo, reconhecendo que a maior parte do território de Canaã continuava em poder dos Cananeus. Por seu lado, o livro de Josué descreve uma guerra-relâmpago feita por todo o povo, sob a direcção de Josué, a qual se solda pela conquista de todo o país, pelo extermínio de todos os seus habitantes (1) e pela repartição do território entre as diferentes tribos hebraicas. A expulsão e o extermínio dos Cananeus não são considerados crimes, ou pelo menos desmandos, cometidos no ardor da guerra, fora da lei ou contra a lei, mas, sim, obra do próprio Iavé. Na maior parte dos casos, as acções de expulsão e de extermínio são atribuidas pessoalmente a Iavé. Quando são feitas pelos Israelitas, estes são simples agentes de Iavé. A expulsão ou o extermínio da população são o cumprimento de numerosas leis, cuja autoria é atribuida a Iavé. Os diferentes códigos do Antigo Testamento testemunham aliás de uma espécie de crescendo na crueldade com que Iavé manda tratar os habitantes de Canaã (2). Passemos-lhe revista rapidamente. Começo pelo mais antigo, o chamado Código da Aliança em Ex 21-23. Trata do tema em Ex 23,23-33. A única razão que dá para o extermínio (Ex 23,23) ou para a expulsão (Ex 23,27-31) é de ordem religiosa. Se ficassem no meio dos Israelitas, os habitantes de Canaã levá-los-iam a pecar contra Iavé. O tema volta em Ex 34,11-16. O texto atribui a expulsão só a Iavé. Insiste na proibição do casamento com os Cananeus, cujos deuses os Israelitas seriam levados a adorar. Em Nm 33,50-56, a razão dada para a expulsão dos Cananeus é de ordem política. As leis mais escandalosas nesta matéria encontram-se no Deuteronómio, nomeadamente em Dt 7,1-6 (3) e 20,10-18, sobretudo 20,16-18. Do ponto de vista do nosso estudo, o termo-chave destes dois textos é a palavra «anátema» (herem). Anátema é uma categoria religiosa, como sagrado e profano, puro e impuro. No Antigo Testamento, a palavra anátema tanto pode designar a qualidade ou o estado de pertença a Iavé de uma realidade como a própria realidade em questão. Sendo uma realidade anátema pertença inalienável de Iavé e para seu uso exclusivo, um ser humano não pode servir-se dela de nenhuma forma. O anátema usa-se sobretudo em contextos de guerra. É a consagração a Iavé do inimigo e de tudo o que lhe pertence. Uma vez vencido o inimigo, todos os seus seres vivos, humanos e animais irracionais, devem ser mortos. Os outros haveres do inimigo devem ser destruidos ou postos ao serviço de Iavé. Não fazer uma coisa ou outra é cometer um sacrilégio (1 S 15,1-35; 1 R 20,42). O anátema não era próprio aos Estados hebraicos nem ao Próximo Oriente (4). Está documentado, no séc. IX a. C., em Moab, Estado fronteiriço dos dois Estados hebraicos e que pertencia ao mesmo grupo étnico-cultural. Os objectos do anátema moabita são os Israelitas da cidade de Nebo. Eis o que conta Mechá, rei de Moab. «Camoch (deus de Moab) ordenou-me : vai e toma Nebo a Israel (...) conquistei-a e matei-os a todos : sete mil homens e escravos e mulheres e amas e mulheres grávidas (?), pois tinha-os votado como anátema a Camoch. Tirei de lá as alfaias de Iavé e arrastei-as para diante de Camoch » (Estela de Mechá, linhas 14 e 16-18). O anátema deve ter sido uma prática a que se recorria só em circunstâncias excepcionais, pois privava o vencedor dos prisioneiros e dos despojos de guerra. Ora, segundo o Deuteronómio, Iavé ordenou que toda a população de Canaã fosse votada ao anátema, ordem que, segundo o livro de Josué, os Israelitas cumpriram, exterminando todos os Cananeus. Numa referência óbvia ao Deuteronómio, Js 10,40 e 11,12-14 insistem que Josué não deixou sobrevivente, em conformidade com o que havia ordenado Iavé, o Deus de Israel. Diga-se em abono da verdade, a realidade histórica foi diferente. Os próprios textos bíblicos reconhecem que, pelo menos, uma parte da população pré-israelita de Canaã sobreviveu. 1 R 9,20-21 diz que Salomão a submeteu a trabalhos forçados. Os códigos legais supõem que havia em Israel e em Judá estrangeiros, isto é, Cananeus, pois comportam leis que lhes dizem respeito. Por outro lado, a arqueologia, por mais que tenha procurado, não encontrou vestígios de uma destruição generalizada das cidades da Palestina em começos do séc. XIII a. C., altura da suposta conquista israelita. Por exemplo, Jericó e Ai, as duas primeiras cidades que, segundo Js 2-8, os Israelitas teriam conquistado e destruído a oeste do Jordão, estavam despovoadas e em ruínas desde há séculos. Tanto as leis do anátema relativas à população de Canaã como os relatos do seu cumprimento, na realidade, expressam a concepção que os deuteronómico-deuteronomistas tinham das relações entre o seu povo e os outros povos de Canaã. A natureza dessas relações depende do conceito que eles têm de Israel, povo santo, separado de todos os povos pelo culto exclusivo de Iavé. Quem não presta culto só a Iavé, mesmo que seja sociologicamente israelita, não é membro do povo santo (Ex 22,19). Claro que não deixa por isso de pertencer a Iavé. Pertence-lhe, mas a título de anátema. Se toda uma cidade israelita prestar culto a outros deuses, será votada ao anátema, exactamente como as cidades dos Cananeus, ordena Dt 13,13-19 (4). Já os rabinos se escandalizaram com a ordem divina de exterminar os Cananeus. Por isso tentaram atenuar o carácter imoral das façanhas de Josué explicando que este deu a escolher aos Cananeus entre fugir, render-se e resistir. Só os que resistiram teriam sido objecto do anátema. O anátema dos Cananeus não podia deixar de escandalizar também os primeiros cristãos. Foi uma das razões que levaram Marcião a rejeitar o Antigo Testamento. No entanto, não escandalizou toda a gente. Longe disso! Como poderia fazê-lo um texto aceite como sagrado? De facto, os livros do Deuteronómio e de Josué tiveram uma influência perversíssima ao longo da história do Ocidente, herdeiro da tradição judaico-cristã. As ordens dadas por Deus a Moisés a respeito do país de Canaã e dos seus habitantes e o seu cumprimento por Josué serviram de modelo e deram o aval divino ao que tiveram de mais negativo todos os empreendimentos coloniais realizados pelos europeus, sobretudo pelos Reformados, leitores assíduos e fervorosos da Bíblia (5). Merece uma menção especial a influência bíblica no processo de colonização dos actuais Estados Unidos da América. O regime do apartheid na África do Sul (6) e a política do Sionismo na Palestina, são que eu saiba, as mais recentes execuções, sob uma forma adaptada às novas circunstâncias, das ordens dadas por Moisés a respeito de Canaã e dos seus habitantes. Elaborado e instaurado entre 1930 e 1960, o regime do apartheid foi há pouco desmantelado, com o aplauso universal. Pelo contrário, o Sionismo, que tem por objectivo e por quadro, o próprio país de que fala a Bíblia, parece estar mais forte do que nunca. É interessante notar a reacção dos orientalistas ocidentais modernos perante a versão bíblica oficial do aparecimento dos Hebreus na Palestina. Tomando a versão bíblica praticamente à letra, a maioria achou a expulsão ou o extermínio dos Cananeus como algo de normal. A título de exemplo, cito-lhes o caso do americano W. F. Albright, « patriarca » dos biblistas e palestinólogos de língua inglesa nas últimas seis décadas. Passo a citá-lo. « Do ponto de vista imparcial de um filósofo da história, parece muitas vezes necessário que um povo de um tipo nitidamente inferior desapareça perante um povo de potencialidades superiores, pois há um ponto além do qual não pode haver mistura racial sem consequências desastrosas ( ...) Os Cananeus, com o seu culto de natureza orgiástica, o seu culto da fertilidade sob a forma de imagens de serpentes e de nudez sensual, com a sua mitologia grosseira, foram substituídos por Israel, com a sua simplicidade pastoril e pureza de vida, o seu sublime monoteísmo e o seu severo código ético» (7). Seria um anacronismo grosseiro pretender julgar em nome da nossa consciência moral moderna os comportamentos que a Bíblia atribui aos antepassados de Israel para com os habitantes de Canaã. Mas, por outro lado, pelo facto de eles serem relatados pela Bíblia, não podemos esquecer que para a nossa consciência moral moderna esses comportamentos são crimes contra a humanidade que dão pelo nome de limpeza étnica e genocídio. Por isso, inspirar-se neles ou, pior ainda, considerá-los como caução divina de actos criminosos, como se tem feito até nos tempos modernos, é moralmente repugnante (8). |
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Notas | ||
(1) Js 9 conta como os Gabaonitas escaparam excepcionalmente ao extermínio mediante um estratagema. (2) M. Weinfeld, «The Ban on the Canaanites in the Biblical Codes and its Historical Development », in A. Lemaire & B. Otzen (ed. ), History & Traditions of Early Israel. Studies presented to Eduard Nielsen (Supplements to Vetus Testamentum, 50), Leiden - New York -Köln, E. J. Brill, 1993, pp. 142-160. (3) Christa Schäfer-Lichtenberger , « JHWH, Israel und die Völker aus der Perspektive von Dtn 7 », Biblische Zeitschrift NF 40 (1996), pp. 194-118. (4) W. Dietrich, «The ‘Ban' in the Age of the Early Kings», in V. F ritz & P. R. D avies (ed.), The Origins of the Ancient Israelite States (JSOT. Supl. Ser. 228), Sheffield , Sheffield Academic Press, 1996, pp. 196-210. (5) G. Braulik, «Die Völkervernichtung und die Rückkehr Israels ins Verheissungsland. Hermeneutische Bemerkungen zum Buch Deuteronomium», in M. Vervenne and J. Lust (ed. ), Deuteronomy and Deuteronomic Literature. Festschrift C.H.W. Brekelmans (BETL, 133), Leuven , University Press - Peeters, 1997, pp. 3-38; R . Nelson, «Herem and the Deuteronomic Social Conscience », ibidem , pp. 39-54. (6) M. Prior, The Bible and Colonialism. A Moral Critique (The Biblical Seminar, 48), Sheffield , Sheffield Academic Press, 1997; I d ., « A Land flowing with Milk, Honey and People », Scripture Bulletin 28 (1998), pp. 2-17. (7) F. E. Deist , « The Dangers of Deuteronomy. A Page from the Reception History of the Book », in F. G arcía M artínez e al. (ed.), Studies in Deuteronomy in Honour of C.J. Labuschagne (SVT, 53), Leiden, New York, Köln, E. J. Brill, 1994, pp. 13-29; M. P rior , The Bible and Colonialism, pp. 71-105. (8) W. F. Albright, From the Stone Age to Christianity: Monotheism and the Historical Process , Baltimore , The John Hopkins Press, 1940, p. 214. A « Declaração Universal dos Direitos Humanos » em 1948 não inspirou qualquer retoque nesta passagem do livro aquando da 2 a edição (Garden City, NY, Doubleday, 1957, pp. 280-281). Sobre o racismo da maioria dos especialistas da história da Palestina, leiam-se, por exemplo, K. W. W hitelam , The Invention of Ancient Israel. The Silencing of Palestinian History , London and New York , Routledge, 1996 e M. P rior (ed.), Western Scholarship and the History of Palestine , London , Melisende, 1998. (9) M. Prior, « The Moral Problem of the Land Traditions of the Bible », in M. P rior (ed .), Western Scholarship and the History of Palestine, London, Melisende, 1998, pp. 41-81. |
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