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4. Legislações bíblicas e direitos humanos |
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É flagrante o contraste entre a legislação do Deuteronómio relativa aos Cananeus e a legislação relativa aos membros do povo bíblico, assim como aos que viviam na sua órbita. As leis e as exortações do Deuteronómio são unanimemente apresentadas – e com razão – como um modelo de humanidade, benevolência e compaixão para com todos os Israelitas, mas sobretudo para com os mais desfavorecidos entre eles. Protegem até os estrangeiros que vivem no meio dos Israelitas. O próprio Deuteronómio celebra a excelência e a justiça incomparáveis das suas leis (Dt 4,8). No termo de um estudo comparativo da legislação do Deuteronómio e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, G. Braulik chegou à conclusão de que cerca de 3/4 dos artigos da Declaração têm os respectivos correspondentes mais ou menos próximos nas leis e nas exortações do Deuteronómio. Os respectivos fundamentos, esses são completamente diferentes (1). O edifício ético-jurídico do Deuteronómio está centrado em Israel e assenta inteiramente numa visão teológica de Israel. Para o Deuteronómio, Israel é o povo que Iavé libertou da escravidão do Egipto. Foi essa libertação que fez de Israel um povo livre. A sua liberdade não decorre da natureza humana. É um dom que Iavé faz a Israel. Os direitos de que goza o Israelita não lhe vêm da sua natureza humana, mas sim da sua pertença a Israel. Liberto da escravidão do Egipto, Israel tornou-se o povo de Iavé. Para caracterizar esta relação do povo com o seu Deus, o Deuteronómio serve-se dos conceitos de eleição e de aliança. Iavé escolhe Israel para seu povo, faz com ele aliança, separa-o dos outros povos. Como resposta, Israel deve permanecer fiel a Iavé, cumprindo a lei, que contém as cláusulas da sua aliança (Dt 7,6; 9,25-29;14,2.21). O Deuteronómio concebe Israel como uma grande família, a família de Iavé. Aliás, os destinatários directos das leis e exortações do Deuteronómio são os chefes de família. Todos os Israelitas, desde o rei (Dt 17,14-20) ao último dos escravos, são irmãos e irmãs, e, por conseguinte iguais. Essa igualdade e essa fraternidade são já uma realidade no culto, nas festas celebradas diante de Iavé (Dt 16,9-12.13-15). As exortações e as leis do Deuteronómio destinam-se a tornar essa igualdade e essa fraternidade uma realidade no dia a dia. Procuram levar os Israelitas a viverem como irmãos. Se estes assim fizerem, Iavé abençoá-los-á, isto é, conceder-lhes-á a prosperidade (Dt 4,40), de modo que não haja entre eles pobres (Dt 15,4; cf., no entanto 15,11) (2). Vejamos algumas leis. Comecemos pela lei do descanso semanal, extensiva não só aos Israelitas, livres ou escravos, mas também aos estrangeiros que com eles vivem, e até aos bois e aos jumentos (Dt 5,14-15). A lei do descanso sabático não é uma invenção do Deuteronómio. Existia antes (Ex 20,8-11; 23,12; 34,21). Esta ideia de um descanso cíclico de que devem beneficiar todos os humanos e até os animais domésticos, que se saiba, é própria à lei bíblica e representa uma verdadeira revolução social. Nas outras sociedades contemporâneas o descanso era um privilégio das classes sociais abastadas. O direito ao repouso é o objecto do art. 24 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. As leis do Deuteronómio prestam uma atenção especial aos mais débeis entre os membros da comunidade. - Levitas, estrangeiros, órfãos e viúvas. Beneficiam de uma espécie de serviços sociais, sob a forma dos dízimos cada três anos (Dt 14,29; 26,12). - Estrangeiros, órfãos e viúvas. Além dos dízimos cada três anos, têm direito ao respigo e ao rebusco (Dt 24,19.20-21; cf. Lv 19,9-10). Recomenda-se um cuidado especial na administração da justiça a essas pessoas, por não terem meios de fazer respeitar os seus direitos (Dt 10,18; 24,17; 27,19; cf. Ex 22, 20-23). - Os estrangeiros que vivem no seio da família de Israel participam na sua vida, são protegidos pelas suas leis e participam na sua bênção (Dt 10,19). Dt 23,8-9 menciona especialmente o edomita e o egípcio como beneficiários da benevolência de Israel. O Deuteronómio não foi o primeiro a legislar sobre os estrangeiros (Ex 22,20; 23,9; Lv 19,33-34). - Escravos. O Deuteronómio não exclui a escravatura, então praticada por todas as sociedades da região. Concebe a escravatura de um israelita ou de uma israelita como o último recurso para assegurar a sua sobrevivência. O escravo continua a ser um irmão, cuja condição o Deuteronómio procura humanizar (Dt 15,12-17; cf já Ex 21,1-6; Lv 25,39-46). Como vimos, tem direito ao repouso sabático. O seu amo deve alforriá-lo passados seis anos, segundo o Deuteronómio; no ano do Jubileu, segundo o Levítico. Se o escravo quiser ficar com o seu amo, pode fazê-lo. Um escravo maltratado pelo seu amo tem direito a fugir e a refugiar-se noutra casa, onde o devem receber (Dt 23,16-17). O direito de um escravo maltrado ao refúgio parece original. Nas sociedades vizinhas a lei previa normalmente que um escravo fugitivo fosse entregue ao seu dono. - Pobres, assalariados, devedores. O Israelita deve emprestar ao seu irmão que precisa (Dt 15,7-11), sem juros (Dt 23,20-21; cf. Ex 22,24; Lv 25,36-37) (3); não pode tomar como penhor algo indispensável para a sobrevivência do devedor israelita (Dt 24,6) ou, se o tomar, deve devolvê-lo ao pôr-do-sol (24,12-13); deve perdoar-lhe a dívida no ano da remissão (Dt 15,2). Deve-se pagar o salário a um jornaleiro, israelita ou estrangeiro, antes do pôr-do-sol (Dt 24,14-15; Lv 19,13). - Proibição do rapto de um Israelita (Dt 24,7). - Proibição de castigos degradantes (Dt 25,1-3). - Proibição do falso testemunho (Dt 19,18-19). - Obrigação de ajudar e socorrer outro israelita, mesmo que seja um inimigo (Dt 22,1-4). O Deuteronómio tem requintes de atenção para com algumas categorias de pessoas: Isenção do seviço militar ou de qualquer outro serviço público durante um ano ao recém-casado (Dt 20,7 e 24,5); isenção do serviço militar a quem construiu uma casa e ainda não a estreou ou plantou uma vinha e ainda não lhe comeu os primeiros frutos (Dt 20,5-6). O ideal social do Deuteronómio poderia resumir-se assim: Liberdade na partilha da libertação da escravidão do Egipto, igualdade na celebração do culto, fraternidade baseada no parentesco. O chamado humanismo do Deuteronómio não se baseia em nenhum conceito universal. O Deuteronómio não tem nada a ver com as noções de dignidade da pessoa humana ou os direitos naturais. O Deuteronómio insiste na benevolência e na compaixão para com os Israelitas socialmente mais débeis e até para com os estrangeiros residentes no país, mas fá-lo em nome da solidariedade do grupo. Os Israelitas socialmente mais desfavorecidos também pertencem à família de Iavé. Os estrangeiros que residem no seio de Israel estão sob a sua protecção. |
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5. Conclusões |
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As concepções antropológicas expressas nos mitos bíblicos das origens supõem que a humanidade é uma grande família, cujos membros são iguais e livres. Os seres humanos têm uma relação muito estreita com Deus. A vida é um sopro divino (Gn 2,4b-3,24). O ser humano é a imagem de Deus, a sua manifestação visível, a sua presença (Gn 1,26-27). Tal concepção antropológica poderia constituir uma excelente base para uma doutrina semelhante àquilo a que hoje chamamos os direitos humanos, assente em princípios universais, válidos para todos os seres humanos, independentemente da sua condição social, sexo, povo. De facto, as tradições bíblicas não tiraram essas consequências, que hoje nos parecem lógicas. Só raramente se invoca, em particular nos meios sapienciais, o facto de todos os seres humanos comungarem na qualidade de criaturas de Deus para fundar determinadas normas de conduta entre eles (Pr 14,31; 17,5; 22,2; Jó 31,13-15). Pode dizer-se o mesmo da concepção das relações entre os povos, nações e estados. Há afirmações isoladas da igualdade fundamental entre os povos, mas a perspectiva particularista, centrada no grupo que se considera Israel, é largamente predominante. Embora não haja no Antigo Testamento uma doutrina dos direitos humanos, existem convergências objectivas, ou até identidade, entre a legislação bíblica para uso interno do grupo que nela se exprime, nomeadamente as leis e as exortações deuteronómicas, e a maior parte dos direitos consagrados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. De facto, as leis bíblicas foram uma das fontes de inspiração – talvez a principal – da maior parte dos artigos da dita Declaração. Francolino J. Gonçalves, OP |
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Notas | ||
(1) G . Braulik, «Das Deuteronomium und die Menschenrechte», TQ 166 (1986), pp. 8-24 = Id ., Studien zur Theologie des Deuteronomiums (SBAB, 2), Stuttgart , Katholisches Bibelwerk, 1988, pp. 301-324 = Id. The Theology of Deuteronomy. Collected Essays (BILBAL Collected Essays, 2), N. Richland Hills , TX , 1994, pp. 131-150 e 247-249. (2) N. Lohfink , « The Laws of Deuteronomy. A Utopian Project for a World without Any Poor », Scripture Bulletin 26 (1996), pp. 2-19. (3) Do estrangeiro pode exigir juro. |
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