CADERNOS DO ISTA, 6


 

ANTIGO TESTAMENTO
E DIREITOS HUMANOS (3)

Francolino J. Gonçalves, OP

 


3. A concepção da relação do povo bíblico com os demais povos
e a questão dos direitos humanos

3. 1. Igualdade de todos os povos

Até Gn 9, o relato bíblico abarca todos os seres criados, o mundo cósmico e a humanidade inteira. Além dos relatos sobre a criação (Gn 1,1-3,24), assinalo a aliança que Deus estabelece com Noé e com todos os animais saidos da Arca juntamente com ele (Gn 9,8-17). Esta aliança é extensiva aos descendentes de um e dos outros. Tem o arco-íris, um elemento cósmico, como sinal.

A partir de Gn 10 a humanidade divide-se em nações, mas o relato bíblico ainda não manifesta qualquer preferência por uma delas, ficando todas elas num pé de igualdade. Pelo contrário, a partir de Gn 12 o horizonte afunila-se. A atenção e o interesse dos relatos centram-se no destino do grupo dos que produziram os escritos bíblicos. Apesar do facto de a perspectiva particularista dominar, de longe, os relatos bíblicos, a perspectiva universalista, que supõe a igualdade entre todos os povos e nações, assoma aqui e além, mesmo nos livros mais profundamente particularistas. A título de exemplo, chamo a atenção para três textos.

.
3. 1. 1. Deuteronómio 32,8-9

Começo por Dt 32,8-9, um texto muito interessante não só por causa do seu horizonte universalista, mas também por documentar a evolução da imagem bíblica de Deus. Eis a tradução do texto tal como se lê num manuscrito encontrado em Qumrã. « Quando repartiu as nações e separou a humanidade em grupos, Elyon (o Altíssimo) fixou as fronteiras dos povos, conforme o número dos filhos de deus, mas a parte de Iavé foi o seu povo, Jacó foi o lote da sua herança ». Segundo este texto, as nações com as suas fronteiras são obra de Elyon. No começo da história, Elyon repartiu a humanidade em tantas nações quantos deuses havia, deu a cada uma delas o seu território e entregou cada uma delas a um dos filhos de deus, isto é, a um dos deuses menores. Nesta repartição, ao deus Iavé tocou Israel. Iavé ter-se-ia tornado assim o deus de Israel. Além do texto de Qumrã, que comentámos, conhecem-se duas variantes das últimas palavras do v. 8, documentadas respectivamente pelo Texto Massorético (TM, isto é, o texto hebraico corrente do Antigo Testamento) e pela Septuaginta (LXX, isto é, a antiga versão grega do Antigo Testamento). Segundo o TM, Elyon repartiu a humanidade não « conforme o número dos filhos de deus », como no texto de Qumrã, mas, sim, « conforme o número dos filhos de Israel ». Elyon teria criado tantas nações quantos os filhos do patriarca Israel. De facto, Gn 10 dá uma lista de setenta nações, o que corresponde ao número de pessoas da família de Jacó/Israel aquando da sua ida para o Egipto (Gn 46,27b; Ex 1,5a e Dt 10,22). Repare-se que, segundo a LXX de Gn 46,26-27 e Ex 1,5, a família de Jacó/Israel aquando da sua ida para o Egipto era constituída por setenta e cinco pessoas, o número que citará Estêvão (Act 7,14). Voltando às últimas palavras de Dt 32,8, a LXX tem ainda outra leitura, segundo a qual o Altíssimo criou as nações conforme o número dos anjos. Qumrã, LXX e TM representam três etapas no desenvolvimento do texto. O manuscrito de Qumrã, que faz do número dos deuses a medida do número das nações, representa a mais antiga das três formas do texto. Por razões teológicas o traductor grego ou um escriba hebraico antes dele substituiu os filhos de deus por anjos. Outro escriba, certamente hebraico, substituiu os filhos de deus pelos filhos de Israel. No contexto actual de Dt 32, mesmo no texto de Qumrã, Elyon (o Altíssimo) é um título de Iavé. Por conseguinte, é Iavé quem reparte a humanidade em nações, fixa o território a cada uma delas, entrega cada uma delas a um membro da sua corte divina, reservando para si próprio Jacó/Israel, obviamente a melhor parte. Esta ideia segundo a qual Iavé distribuiu cada uma das nações a seu deus expressa-se também em Dt 29,25. Tudo indica que num estado anterior do mito Elyon não era ainda um título de Iavé nem este era o deus supremo. Elyon era um título de El, o Deus supremo do panteão cananeu, ou o nome próprio de um deus independente. Nessa fase do mito, El ou Elyon era o autor daquilo que o texto actual atribui a Iavé. Aquando da repartição da humanidade em nações e da entrega de cada uma delas a seu deus, El ou Elyon teria atribuido Jacó/Israel a Iavé, que era ainda apenas um entre os deuses menores. Nem Iavé era mais do que os outros deuses nem Israel era mais do que os outros povos (1).

.
Notas
(1) S. B. Parker , «The Beginning of the Reign of God - Psalm 82 as Myth and Liturgy », RB 102 (1995), pp. 532-559.

..



pesquisa no site
powered by FreeFind

ISTA
CONVENTO E CENTRO CULTURAL DOMINICANO
R. JOÃO DE FREITAS BRANCO, 12 - 1500-359 LISBOA
CONTACTOS:
GERAL: ista@triplov.com
PRESIDÊNCIA: jam@triplov.com
SECRETARIADO: bruno@triplov.com
COLÓQUIO "INQUISIÇÃO": inquisitio@triplov.com