debate sobre o
ACORDO ORTOGRÁFICO
da Língua Portuguesa — 1990

Derpetalando a flor do Lácio
João Ubaldo Ribeiro

Despetalando está correto, tenho praticamente certeza. Não acredito que um filólogo desalma­do tenha resolvido que aí vai hífen. Não, não vai, não é des-petalar. "Flor" e "Lácio" continuam, uma sem acento, outro com acento. Portanto, cem por .cento de acerto em meu primeiro título na ortografia nova, brilhei mais uma vez. Isso, contudo, não me aplaca o ner­vosismo. Deve ser a idade, porque já encarei algumas reformas ortográficas nesta curta existência e me saí satisfa­toriamente, mesmo no tempo em que a gente tinha que grafar "tôda" com cir­cunflexo, para distinguir de "toda", que ninguém sabia o que era, embora, no ver de alguns, fosse uma ave amazônica pouco sociável, ou, segundo outros, uma exortação obscena de origem xavante. Acho que esse ponto nunca será esclarecido (de qualquer forma, cartas de esclarecimento para o editor, por caridade) e constituirá mais uma das graves interrogações, sem cujas respostas minha geração deixará este mundo.

Quando me peguei lendo, a maior parte da livrama de meu pai era na orthographia antiga e havia livros portugueses com suas próprias nor­mas Apesar de leitor fominha que, mesmo sem entender nada, traçava o que aparecesse, levei semanas para compreender que "augmentar" era "aumentar". Mas me acostumei e sempre transitei bem nessa área, pa­ra alguma coisa eu tinha de levar jei­to. Chefiei redação no tempo da abo­lição do acento diferencial e dedicava grande parte de meu tempo a expli­car que, de então em diante, não se escreveria "voce", mas "você" mes­mo, como sempre. Foi difícil, muito mais difícil do que qualquer um ima­ginaria, tratando-se de gente instruí­da e, em muitos casos, talentosa.

Uma amiga minha sustenta que tudo vem de trauma da infância e eu tendo a concordar com ela. Sei de traumas profundos, carregados por amigos meus sob o jugo — o que, graças a Deus, não foi meu caso — de professores de português dogmáticos e caturras, que en­tupiam todos de regras quase impene­tráveis e só podiam com isso instilar ódio e temor pela língua e pelo que nela é escrito. Para muitos, os livros são do­lorosas memórias de torturas.

E as reformas sempre levam algu­ma coisa com elas. Já haviam feito is­so com o K, o W e o Y, agora reabi­litados, se bem que nunca de fato o povo os haja banido, aí estando o Kilo, o Waldir e o Ruy, que não me dei­xam mentir e nem ao menos caíram na clandestinidade, mas continua­ram a circular com grande liberdade. Levaram a indicação da subtônica também, aquela que, por exemplo, marcava com acento grave palavras como "precàriamente" e mostrava a existência da subtônica. ("câ"). Mas, segundo eu soube, nem precisamos (precisamos, sim), nem temos condi­ção de exigir que as subtônicas se pronunciem, tudo bem, não estamos à altura.

Por mim, tenho trauma do trema. Ontem me disseram que fui visto com o olhar distante, em frente a este mo­nitor, sacudindo lentamente a cabeça e murmurando "não me conformo, não me conformo". Não me recordo disso, pode perfeitamente ser uma invencionice, mais uma das anedotas apócrifas que contam sobre nós, celebridades internacionais. Mas a verdade é que não me conformo não somente com a saída do trema e suas temíveis conse­quências (em breve alguém lerá aí "consekências", assim como chegará o dia em que um simpático alemão que veio morar no Brasil nos perguntará, com sotaque ainda carregado, onde poderá comprar "linghiças", raio de língua difícil, depois reclamam do alemão). Não posso igualmente aceitar a maneira sem-cerimoniosa com que ele foi humiïhantemente defenestrado, depois de tanto tempo de serviços prestados. Expulso sem nem um relógio folheado a ouro de lembrança, uma plaquinha sequer.

O volume principal de besteiras que vem aí, em nome dessas mudanças, embora esteja longe de restringir-se a ele, deverá ser o despejado pelo enlouquecido movimento do "faïa-se como se escreve", uma completa piração defendida exaltadamente por muita gente. Gente esquecida, é claro, de que a grafia é uma maneira sempre imperfeita, rudimentar mesmo (os textos gregos clássicos não costumavam ter intervalos entre as palavras e muito menos sinais de pontuação ou acentos, isso tudo veio muito depois), de se tentar congelar em símbolos toda a riqueza da fala, suas inflexões, os gestos, os timbres e os tons que a acompanham, enfim, um universo imensamente amplo para 26 letras e alguns sinais diacríticos. Então, "falar como se escreve" é uma inversão completa, que só pode ter efeitos grotescos, para não dizer maléficos. Alguns já podem ser notados, em suas primeiras manifestações insidiosas. O que mais me mexe com os nervos é o umazero (1x0) ou umaum (1x1) de grande parte dos narradores esportivos. Não sei o que deu neles, praticando a forma mais execranda do "fala como escreve". O eme do final de "um" está aí para nasalar a vogal, só para isso, tanto assim que, em português antigo, era comum escrever-se com til. Agora não, agora se pronuncia "como se escreve", e o resultado é que, se deixarem a coisa correr solta, daqui a pouco ninguém distingue mais "um olho", de "um molho", "um achado" de "um machado".

Ouço também, embora com muito menos frekência (esta palavra está errada, foi só vontade de usar o K) o M final de "com", ser "misturado" à vogal inicial da palavra que a segue. "Com ida marcada para" seria "comida marcada para", o que poderia render um mal-entendido ou outro. E por aí vai a língua, junto com a vida. Alguém já está ganhando dinheiro com isso. Não somos nós, como de hábito, mas nem por isso deixemos de nos alegrar. Combustível novo na combalida economia do livro. E que serve para mais uma vez mostrar aos eternos descontentes como este governo é reformista.

JOÃO UBALDO RIBEIRO é escritor.