Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em décimo quarto lugar as instâncias cruciais, 192 vocábulo tomado às cruzes que se colocam nas estradas para indicar as bifurcações. Também as costumamos chamar de instâncias decisivas e judiciais 193 e, em alguns casos, de instâncias de oráculo e mandato. 194 São elas descritas como se segue. Quando, na investigação de uma natureza, o intelecto se acha inseguro e em vias de se decidir entre duas ou mais naturezas que se devem atribuir à causa da natureza examinada, em vista do concurso freqüente e comum de mais naturezas, em tais situações, as instâncias cruciais indicam que o vínculo de uma dessas naturezas com a natureza dada é constante e indissolúvel, enquanto o das outras é variável e dissociável. A questão é resolvida e é aceita como causa da primeira natureza, enquanto as demais são afastadas e repudiadas. Tais instâncias são muito esclarecedoras e têm uma significativa autoridade. Muitas vezes, nelas termina o curso da investigação ou em muitas outras este é por elas completado. Mas às vezes as instâncias cruciais aparecem entre as instâncias antes indicadas; mas, em sua maior parte, são buscadas, aplicadas intencionalmente e estabelecidas com trabalho árduo e diligente.
Como exemplo para a investigação, tome-se o fluxo e o refluxo do mar, que se repete duas vezes por dia, durante seis horas o fluxo e seis horas o refluxo, com intervalos regulares, e com alguma diferença que coincide com o movimento da lua. Tem-se aí uma bifurcação ou encruzilhada.
Esse movimento necessariamente é provocado por uma das seguintes causas: ou pelo movimento da água de um lugar para outro, como acontece quando se agita uma vasilha, ou pela subida e descida da água a partir do fundo, como acontece com a água fervente, que sobe borbulhando e depois se acalma. O problema reside em se relacionar o fluxo e o refluxo a uma dessas causas. Se é a primeira escolhida, segue-se que enquanto há fluxo de um lado do mar em algum outro, ao mesmo tempo, deve haver refluxo. E necessário verificar se isso é verdadeiro. Contudo, as observações feitas por Acosta, 195 ao lado das de outros observadores cuidadosos, testemunham que o fluxo ocorre ao mesmo tempo sobre as costas da Flórida e nas costas do lado oposto, da Espanha e da África, o mesmo ocorrendo com o refluxo. Ao contrário, portanto, do que se poderia esperar, ou seja, havendo fluxo na costa da Flórida teria de haver refluxo nas costas da Espanha e da África. Examinando o assunto mais atentamente, não fica rechaçado o movimento de progressão em favor do movimento de elevação.
De fato, poderia ocorrer que o movimento de progressão provocasse, ao mesmo tempo, a inundação das praias opostas de um mesmo leito, como acontece nos rios, quando as águas trazidas de outra parte sobem e baixam em ambas as margens nas mesmas horas. Mas, assim mesmo, trata-se de um movimento de progressão. Desse modo, pode ocorrer que as águas provenientes em grande quantidade do oceano Oriental Indico sejam lançadas no leito do oceano Atlântico, provocando a inundação simultânea das praias opostas. O fluxo poderia assim se verificar no mar Austral, que na verdade não é menor que o Atlântico, mas mais largo e extenso.
Com isso chegamos, finalmente, a uma instância crucial. Se soubéssemos seguramente que, quando ocorre o fluxo nas duas praias opostas da Flórida e da Espanha no Atlântico, o mesmo ocorre no Peru e no dorso da China, no mar Austral, então, essa seria uma instância decisiva que conduziria ao repúdio do movimento progressivo como causa, pois não haveria outro mar ou lugar onde pudesse ocorrer o retorno ou o refluxo ao mesmo tempo. Tal fato pode facilmente ser verificado através dos habitantes do Panamá e de Lima (onde se localiza o pequeno istmo que separa o oceano Atlântico do Austral), que podem observar se o fluxo e o refluxo ocorrem ao mesmo tempo em uma e outra face do istmo ou não. Esta seria a solução, considerando-se a terra como imóvel; mas se a terra gira, poderia ocorrer, devido à desigualdade do movimento de velocidade e de aceleração da terra e das águas do mar, que isso provocasse violenta agitação das águas, que seriam arremessadas para o alto, produzindo o fluxo; e que depois, caindo, abandonadas a si mesmas, ocasionariam o refluxo. Mas esse seria assunto para outra investigação. Porém, deve ficar assentado que, se ocorre o fluxo em algum lugar, há necessidade de que em algum outro ocorra o refluxo ao mesmo tempo.
Semelhantemente, tome-se como objeto de investigação a natureza do movimento que acabamos de supor, ou seja, o movimento marinho de subida e de descida das águas, para que se possa (depois de um diligente exame) rechaçar o mencionado movimento progressivo. Deparamo-nos, então, com uma trifurcação. É necessário que este movimento, graças ao qual as águas sobem e descem, sem o concurso do impulso das águas de outro mar, ocorra de uma dessas três maneiras seguintes. Que tal quantidade de água surja das entranhas da terra e para elas de novo se recolha; ou que não haja qualquer quantidade maior de água, mas que as mesmas águas, sem aumentar a sua quantidade, dilatem-se ou rarifiquem-se a ponto de ocupar maior espaço e dimensão, e depois se contraiam para o volume inicial; ou que não haja aumento nem de quantidade e nem de extensão, mas que as mesmas águas (tal como são em quantidade, densidade e rarefação) subam e depois desçam em razão de uma força magnética que as atrai para o alto e por simpatia. Assim, deixando de lado os dois primeiros movimentos, vamos restringir a questão (se assim se desejar) a este último movimento, procurando investigar se há a elevação por consenso, simpatia ou força magnética. 196 Em primeiro lugar, é manifesto que a totalidade das águas contidas no vão do mar não se pode elevar de uma vez, por falta de algo que a substitua no fundo; se houvesse nas águas uma tendência nesse sentido, ela seria reprimida e interrompida pela força de coesão das coisas ou (como se diz vulgarmente) para se evitar a produção do vazio. Em conseqüência, o que resta é que as águas se elevam de um lado e de outro diminuem e abaixam. Donde, também, a necessidade de que a força magnética, não podendo exercer-se sobre o todo, atua mais intensamente no centro, de maneira a atrair as águas que se elevam e deixam livres e descobertas as praias.
Chegamos, com isso, a uma instância crucial sobre esse assunto, e que é a seguinte: se se descobrir que no refluxo a superfície do mar é mais arqueada e redonda, elevando-se as águas no centro do mar e retirando-se das praias; enquanto que no fluxo a superfície é mais plana e lisa, voltando as águas à sua posição anterior; então, em virtude dessa instância decisiva, pode ser aceita a força magnética como causa das marés; caso contrário, deverá ser inteiramente afastada. Esse experimento não deveria apresentar dificuldade se levado a efeito nos estreitos, por meio de sonda, e possibilitaria estabelecer se o mar no refluxo no centro é mais alto, ou seja, mais profundo que no fluxo. É necessário, porém, observar, se este for o caso, que, ao contrário da opinião corrente, as águas se elevam no refluxo e se abaixam no fluxo, banhando o litoral.
Da mesma maneira, tome-se para a investigação a natureza do movimento espontâneo de rotação e procure-se verificar especialmente se o movimento diurno, pelo qual o sol e as estrelas nascem e põem-se diante dos nossos olhos, corresponde a um verdadeiro movimento de rotação daqueles corpos celestes, ou trata-se de um movimento aparente causado pelo movimento da terra. Instância crucial a respeito poderia ser a seguinte: se se puder constatar sobre o oceano um movimento de oriente a ocidente, mesmo muito fraco; se tal movimento parece um pouco mais rápido no ar, especialmente entre os trópicos, onde é mais perceptível pela maior amplitude da volta, se se torna ainda mais vivo e visível nos cometas mais próximos da terra; se também aparece nos planetas com intensidade crescente, proporcional à sua distância da terra, tornando-se muito veloz no céu estrelado; então se estabelecerá como certo que o movimento diurno é próprio do céu e se o recusará à terra; pois tornar-se-á claro que o movimento de oriente a ocidente pertence aos céus, na sua universalidade, e diminui aos poucos à medida que se distancia das alturas do céu, finalmente se interrompendo com a terra imóvel. 197
Da mesma maneira, tome-se para a investigação o movimento de rotação que é difundido entre os astrônomos, que vai no sentido contrário ao do movimento diurno, isto é, de ocidente a oriente; movimento que os astrônomos antigos atribuíam aos planetas e ao céu estrelado, mas Copérnico e seus seguidores também o atribuem à terra. Observe-se desde logo se se encontra na natureza um movimento desse tipo, ou se foi suposto e estabelecido pela comodidade e pela brevidade dos cálculos científicos, ou seja, para explicar os movimentos celestes com círculos perfeitos. Contudo, não se pode provar que se encontre, nas regiões celestes, um verdadeiro movimento desse gênero; nem pelo fato de que o movimento diurno num planeta não retorna ao mesmo ponto do céu estrelado, nem com a posição diversa dos pólos do zodíaco em relação ao da terra, que são os dois caracteres pelos quais esse movimento se nos apresenta. O primeiro fenômeno pode muito bem ser explicado pelo adiantamento do céu estrelado que deixa para trás os planetas, o segundo pelas linhas espirais, de modo a haver desigualdade no retorno dos planetas e a sua inclinação no sentido dos trópicos pode ser antes modificação do movimento único diurno, que movimentos recalcitrantes em volta de pólos diversos. E é mais do que certo que aos sentidos esse movimento se apresenta exatamente na forma que indicamos, sempre que queremos contemplar um pouco o céu com olhos de leigo, sem nos dar conta do que dizem os astrônomos e as escolas, que com freqüência ambicionam contradizer injustamente os sentidos, preferindo o que é mais obscuro, O sentido do movimento, antes, já representamos como fios de ferro como em uma máquina.
Instância crucial nesse assunto poderia ser a seguinte: se em alguma história fidedigna for indicado um cometa, mais alto ou mais baixo, que não tenha girado de acordo com o movimento diurno (ainda que de forma irregular), mas que tenha tomado uma direção contrária, então, com certeza, poder-se-á estabelecer a realidade daquele movimento. Se, contudo, nada for encontrado de semelhante, será necessário duvidar, e ter-se-á que recorrer a outras instâncias cruciais a respeito do assunto.
Da mesma maneira, tome-se para investigação a natureza do peso e da gravidade. De imediato, apresentam-se duas orientações. Ou os corpos pesados e graves tendem, por natureza, ao centro da terra, isto é, graças ao seu esquematismo; ou são atraídos e arrastados pela força da própria massa terrestre, como por efeito de agregação dos corpos de igual natureza e a ela levados pelo consenso. Se se tomar por verdadeira a segunda hipótese, segue-se que quanto mais os graves se aproximam da terra tanto maiores são a força e o ímpeto com que são impelidos para ela; enquanto, quanto mais se distanciam tanto mais fraca e lenta torna-se essa força, exatamente como acontece na atração magnética. Por outro lado, a atração deve ocorrer a partir de uma certa distância, senão o corpo se distanciaria da terra a ponto de fugir ao seu influxo e permaneceria suspenso como a própria terra, sem nunca cair. 198
A respeito desse assunto, poderia ser a seguinte a instância crucial: seja o caso de dois relógios, um dos quais movido por contrapeso de chumbo, outro movido por compressão de uma mola de ferro; verifique-se se um é mais veloz que o outro; coloque-se o primeiro no ápice de algum templo altíssimo, tendo antes sido regulado com o outro de forma a funcionarem de modo correspondente, deixando o outro embaixo; isso para se verificar cuidadosamente se o relógio colocado no alto se move mais devagar em vista da menor força de gravidade. A experiência deve ser repetida com a colocação do relógio nas profundezas de alguma mina situada muito abaixo da superfície da terra, para ser verificado se ele se move mais velozmente que antes, em razão de maior força de atração. Se se verificar que efetivamente o peso dos corpos diminui com a sua colocação no alto e que aumenta embaixo, quando mais próximos do centro da terra, então estará estabelecido que a causa do peso é a atração da massa terrestre.
Da mesma maneira, tome-se para investigação a natureza de polaridade que tem a agulha de ferro quando tocada pelo magneto. A explicação a respeito de tal natureza se bifurca na ordem seguinte: é necessário que seja o magneto que comunique à agulha a sua capacidade de se voltar para o pólo; ou que o ferro simplesmente seja excitado e predisposto pelo magneto, mas que o movimento em si mesmo tenha sido causado pela presença da terra; é o que Gilbert afirma e procura demonstrar com muitos exemplos. Pois para isso tendem as observações que levou a efeito com muita perspicácia e que foram por ele colecionadas. Uma é a de que um cravo de ferro que tenha permanecido por muito tempo na posição norte-sul adquire uma tendência à polaridade, sem ter sido tocado pelo magneto; como se a própria terra, que pela sua distância atua muito debilmente (estabelece Gilbert que de fato a superfície ou crosta terrestre é desprovida de força magnética), apesar disso, fosse capaz de substituir o toque do magneto da excitação do ferro, pela longa permanência e depois de excitado ser capaz de dirigi-lo e voltá-lo no sentido do pólo. A outra explicação é a de que o ferro vermelho ou branco de calor colocado a esfriar na direção dos pólos, contrai a capacidade de para ele voltar-se sem o contato do magneto; como se as partes do ferro colocadas em movimento pelo fogo, quando de sua retração à posição original, isto é, durante o processo de esfriamento, fossem mais aptas e mais sensíveis à virtude emanada pela terra, permanecendo excitadas. Mas tais observações, embora cuidadosas, não chegam a provar de fato o que ele sustenta.
A propósito desse assunto, poderia ser a seguinte a instância crucial: tome-se um magneto esférico como a terra. Assinalados os seus pólos, voltem-se-nos, não a norte e a sul, mas a oriente e a ocidente, mantendo-o nessa posição; sobre ele coloque-se depois uma agulha de ferro, ainda não tocada pelo magneto, assim permanecendo durante seis ou sete dias. A agulha, depois de colocada sobre o magneto, perde contato com os pólos do mundo, tornando seus os do magneto (sobre isso não há qualquer dúvida); por isso, enquanto permanece nessa posição, volta-se a oriente e ocidente do mundo; mas se a agulha tirada do magneto e colocada sobre um eixo voltar-se na direção do eixo da terra subitamente ou se tomar essa posição pouco a pouco, pode-se dizer, sem dúvida, que a causa é a presença da terra; mas se a agulha se voltar como antes, na posição oriente-ocidente, ou perder sua capacidade de apontar para os pólos, se isso ocorrer, considere-se a causa como duvidosa e prossiga-se na investigação.
Da mesma maneira, tome-se para investigação a substância corpórea que forma a lua, a fim de se verificar se se trata de uma substância tênue, feita de fogo ou de ar, como muitos dentre os primeiros filósofos acreditaram; ou se é sólida, consistente, como Gilbert e muitos modernos e não poucos dentre os antigos asseveram. As razões desta última opinião residem sobretudo no argumento da reflexão dos raios solares por parte da lua, porque não parece possível uma tal reflexão a não ser nos sólidos. A respeito desse assunto, poderiam ser (se é que as há) instâncias cruciais todas as que demonstram a possibilidade de haver reflexão em um corpo tênue como a chama, mas com espessura suficiente. Entre outras, uma das causas do crepúsculo é a reflexão dos raios do sol na região superior do ar. Em tardes calmas pode-se, às vezes, observar os raios solares refletidos nas bordas das nuvens radiosas, de resplendor não menor, mas até mais brilhante e mais majestoso que o proveniente do corpo da lua. E, contudo, não se tem prova de que tais nuvens encerrem um corpo denso de água. Vê-se também que o lume da vela, à noite, reflete-se na escuridão de fora da janela, como se se tratasse de um corpo sólido. Poderia ser tentado o experimento de se fazerem passar os raios do sol por um furo sobre uma chama azulada. É sabido que os raios solares, incidindo a céu aberto sobre uma chama não muito clara, ofuscam-na a ponto de parecer mais uma fumaça branca que uma chama. Essas são as instâncias cruciais que ora ocorrem a propósito do assunto em questão, mas certamente se podem encontrar outras e melhores. Mas, em qualquer caso, deve-se considerar como estabelecido que apenas a chama de uma determinada espessura é capaz de refletir os raios; em caso contrário, eles se desvanecem na transparência. E tenha-se como certo que um raio luminoso, caindo sobre um corpo plano, ou é refletido para trás ou é recebido e enviado para outro lado.
Da mesma maneira, tome-se para investigação a natureza dos corpos projetados ao ar, como dardos, flechas e balas. Os escolásticos, segundo o seu costume, tratam esse movimento com muita negligência, satisfazendo-se com dizer que é um movimento violento, mas distinto daquele que chamam de movimento natural. Descartam o problema da causa ou do primeiro impulso dado nesse movimento refugiando-se no axioma que diz que “dois corpos não podem estar no mesmo lugar sem se penetrarem”. E não se preocupam com o modo de se desenvolver desse movimento. E, a propósito dessa questão, tem-se a bifurcação seguinte: esse movimento, ou é produzido pelo ar que atua sobre o corpo arremessado, como a correnteza sobre o casco da nave ou vento sobre a palha; ou é produzido pelas partes do corpo, que, não podendo agüentar a violenta pressão, lançam-se sucessivamente à frente para dela se libertarem. Com a primeira solução está Fracastoro 199e quase todos os outros que estudaram a fundo o assunto. Não há dúvida de que o ar toma parte, e muito, nesse movimento, mas há infinitos experimentos que confirmam a segunda como verdadeira causa. Entre outras, poderia se constituir na instância crucial do assunto a seguinte: uma lâmina ou um arame de ferro um pouco resistente, ou uma pena de ave, encurvados, por pressão do dedo polegar e do indicador, que em tal circunstância saltam bruscamente. E claro que esse fenômeno não resulta do ar que se reúne atrás do corpo em movimento, porque o ponto preciso em que o movimento se manifesta é o centro e não a extremidade.
Da mesma maneira, tome-se para investigação a natureza do movimento súbito e violento de expansão, que é provocado pela pólvora, graças à qual massas tão grandes são levantadas e pesos tão consideráveis são arremessados como se observa nas grandes minas e nos canhões. Eis a bifurcação a respeito dessa natureza: o movimento ou é produzido por mero desejo do corpo em expandir-se, logo que pega fogo ou é produzido pelo desejo misto do espírito cru 200 em fugir rapidamente do fogo, pelo qual é circundado, e por isso escapa violentamente como de um cárcere. Os escolásticos e a opinião vulgar só conhecem a primeira causa e acreditam estar fazendo boa filosofia dizendo que a chama eclode em virtude da própria forma de seu elemento, na sua necessidade de se expandir para ocupar um espaço maior do que o que ocupava o corpo quando se encontrava sob a forma de pólvora, e que daí advém aquele movimento. Não pensam, no caso, que se isso fosse verdadeiro poder-se-ia impedir a chama com corpo que tivesse uma massa capaz de comprimi-la e sufocá-la, e, assim sendo, não haveria a necessidade do que falamos. Estão corretos ao pensar que se se produz a chama é necessário que se produza uma expansão e que daí segue-se uma explosão ou a remoção do corpo que se opõe. Mas tal necessidade será evitada se a massa do corpo pesado chegar ao ponto de sufocar a chama antes que se produza. Observa-se que a chama, especialmente no seu início, é débil e leve, e requer uma cavidade na qual se possa exercitar e ganhar forças. Com efeito, não se pode atribuir à chama, tomada isoladamente, qualquer força extraordinária. Mas é verdade que as chamas explosivas, ou seja, os ventos inflamados, são produzidas pelo contraste de dois corpos que possuem naturezas contrárias, completamente inflamável um, como é o caso do enxofre; e não inflamável outro, como é o caso do nitro; daí se produzindo um violento contraste (uma vez que o terceiro corpo, isto é, o carvão de sálcio, não tem outra função que a de amalgamar e juntar os outros dois corpos), tendendo o enxofre, a todo custo, a se inflamar, e procurando subitamente o espírito do nitro fugir com toda força e, ao mesmo tempo, se dilatando (como o fazem também o ar, a água e todas as demais substâncias cruas que se dilatam pelo calor), e nessa fuga, unida à erupção, alimenta-se de todos os lados a chama do enxofre, como por meio de foles ocultos.
De dois tipos podem ser as instâncias cruciais a respeito. Uma é oferecida pelos corpos que são inflamáveis ao máximo, como o enxofre, a cânfora, a nafta e semelhantes, como também os seus compostos. São mais aptos e mais fáceis de se inflamarem que a pólvora, se não são impedidos; o que demonstra que a simples tendência para se inflamar não é suficiente para a produção daquele espantoso efeito. A segunda é oferecida pelos corpos infensos à chama e que a incomodam, como é o caso de todos os sais. Estes, jogados no fogo, emitem um espírito aquoso com peculiar ruído antes de se inflamarem; o mesmo, mas menos intensamente, acontece com as folhas, ainda não completamente secas, que se liberam da parte aquosa antes de pegarem fogo. Esse fenômeno observa-se ainda no mercúrio, que não de todo mal é chamado de água mineral. O mercúrio, realmente, sem se inflamar só com a explosão e a expansão, quase se iguala à pólvora; e a ela misturado diz-se que multiplica a sua violência.
Da mesma maneira, tome-se como objeto de investigação a natureza transitória da chama e a sua extinção momentânea. Com efeito, parece a nós, que a natureza da chama não se fixa, nem adquire consistência, e que se renova a cada instância e continuamente se vai extinguindo. E, de fato, manifesto que, nas chamas que persistem e duram, tal duração não é a continuação ininterrupta de uma mesma determinada chama, mas sucessão de chamas novas, que se engendram em série e, na verdade, não permanecem idênticas em nenhum momento; como se depreende do fato de sua súbita extinção, se se corta o sebo ou o alimento. E, a respeito, defrontamo-nos com a seguinte bifurcação: ou a duração momentânea deriva da interrupção da causa que engendra a chama, como acontece com a luz, os sons, os movimentos tidos por violentos; ou a chama é levada a persistir pela sua natureza, mas é afetada e destruída pelas naturezas contrárias.
A tal respeito a instância crucial poderia ser a que segue. Nos grandes incêndios notam-se chamas altas; tanto mais altas quanto maior a área incendiada. A causa da extinção parece situada nas bordas dos lados, onde a chama parece reprimida e combatida pelo ar. Mas as chamas do meio, não circundadas pelo ar mas unicamente por outras chamas, permanecem idênticas e não se extinguem, até que o ar se acerque e acabe por ocupar, pouco a pouco, toda a área. Isso faz com que a chama se assemelhe a uma pirâmide, mais ampla na base, onde está o alimento, e mais estreita no vértice, onde o ar a combate. A fumaça, ao contrário, é mais estreita na base, aumentando depois, formando uma espécie de pirâmide invertida; isso porque o ar acolhe o fumo e comprime a chama. Ninguém pode supor que a chama acesa seja feita de ar, uma vez que são dois corpos, sem dúvida, heterogêneos.
Uma instância crucial mais acurada poderia ainda ser a da chama de duas cores. Coloque-se no fundo de um recipiente de metal uma pequena vela acesa; coloque-se o recipiente em uma vasilha e jogue-se em volta espírito de vinho em quantidade suficiente para alcançar a borda da vasilha; a seguir acenda-se o espírito de vinho. A sua chama será mais azulada e a da vela mais amarelada (como as chamas, ao contrário dos líquidos, não se fundem rapidamente, será fácil observar a diferença das cores). Nota-se, então, se a chama da vela permanece em forma piramidal ou tende mais para a forma de um globo, desde que não haja nada que a destrua ou constranja. Se assume a forma de um globo, é necessário tomar-se por certo que ainda dura a mesma chama, mesmo inserida na outra e dessa maneira protegida de força contrária do ar.
E aqui deixamos as instâncias cruciais. Foram tratadas um pouco longamente para, aos poucos, habituar a mente humana a julgar por seus próprios meios e segundo experimentos lucíferos, e não a partir de razões prováveis. 201 |