NOVUM ORGANUM
Francis Bacon

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO II - AFORISMOS

Aforismo XXXV
 

Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em décimo terceiro lugar as instâncias de aliança ou de união. 183 São as que confundem e reúnem naturezas consideradas como heterogêneas, e que as divisões usuais designam e consideram como tal.

As instâncias de aliança mostram que as operações e os efeitos que se atribuem como próprios de qualquer das naturezas heterogêneas pertencem também a outras naturezas heterogêneas. Com isso se comprova que aquela suposta heterogeneidade não é verdadeira ou essencial, nada mais sendo que uma modificação da natureza comum. Bem por isso, são de grande utilidade para conduzir e elevar o inte­lecto das diferenças específicas aos gêneros, e para dissipar as falsas imagens das coisas que constituem a máscara com que a nós se apresentam as naturezas nas substâncias concretas.

Por exemplo, tome-se para investigação a natureza do calor. Tome-se como completamente consagrada e autorizada a distinção do calor em três gêneros: o calor dos corpos celestes, o calor dos animais e o calor do fogo, e que tais gêneros de calor diferem, entre si, pela própria essência e pela espécie, ou pela natureza específica, sendo dessa forma completamente heterogêneos. Especialmente o calor do fogo se comparado com os outros dois, uma vez que o calor dos animais e dos corpos celestes engendra e reanima enquanto o do fogo destrói e consome. Pertence por isso às instâncias de aliança o conhecido experimento no qual se introduz o ramo de vinha em uma casa onde permanece aceso um foco de fogo, o que faz com que a uva amadureça até um mês antes do que se estivesse fora. Assim, o amadurecimento da fruta ainda presa à árvore pode ocorrer graças ao fogo, quando parecia um efeito reservado à ação do sol. Desde o início o intelecto, deixando de lado a teoria da heterogeneidade essencial, dispõe-se facilmente a investigar as verdadeiras diferenças que há na realidade entre o calor do sol e o do fogo, das quais resulta que suas operações sejam tão diversas, embora em si mesmos participem de uma natureza comum.

As diferenças são em número de quatro. A primeira é a de que o calor do sol, comparado com o calor do fogo, é muito mais leve e moderado; a segunda é de que em qualidade é muito mais úmido, especialmente porque chega até nós através da atmosfera; a terceira (que é a mais importante) é sumamente desigual: quando se aproxima aumenta, quando se distancia diminui, o que contribui muito para a geração dos corpos. Aristóteles com razão assegura que a causa prin­cipal das gerações e das corrupções que ocorrem sobre a superfície da terra reside no curso oblíquo do sol sobre o zodíaco, 184 ocasião em que o calor solar, quer durante a aproximação do dia e da noite, quer durante a sucessão das estações, resulta sempre estranhamente diverso. Mas Aristóteles não deixa de desfigurar e corromper essa correta sentença, porque, colocando-se como árbitro da natureza, como era de seu feitio, indica, de modo autoritário, como causa da geração a aproximação e como causa da corrupção o distanciamento do sol. Na verdade, a proximidade e o distanciamento do sol, indiferentemente, são causas tanto da geração como da corrupção. Pois a diversidade do calor ajuda tanto a um como a outro processo, enquanto a sua constância serve apenas para a conservação dos corpos. Mas há ainda uma quarta diferença entre o calor do sol e o do fogo e que é muito importante: a de que as operações do sol se desenvolvem durante um lapso bastante longo, enquanto a duração do fogo, atiçada pela impaciência humana, desenvolve-se e é levada a termo em lapso breve. Porém, se se procura amainar e reduzir o calor do fogo a um grau mais moderado e mais leve de intensidade, o que é possível de muitas maneiras, aspergindo ar úmido para reproduzir a diversidade do calor solar, depois de um processo lento (não tão lento como o que ocorre devido às operações do sol, mas mais longo do que o que ocorre comumente pelas operações comuns do fogo), será então observado o desaparecimento de toda a heterogeneidade entre os dois gêneros de calor, e será possível imitar a ação do sol e, até mesmo, em alguns casos, superá-lo com o calor do fogo. Uma outra instância de aliança é a revivescência, colocada em estado letárgico e quase morta pelo frio, graças à ação de um débil torpor do fogo. Daí facilmente se retira a conseqüência de que o fogo tanto serve para restituir a vida aos animais como para sazonar os frutos. Também é célebre a invenção de Fracastoro, 185 da ventos a muito quente, que os médicos colocam na cabeça dos apopléticos em gravíssimo estado, a qual lhes devolve a vida, colocando em movimento os espíritos animais, comprimidos e sufocados pelos tumores e pelas obstruções do cérebro. É exatamente como age o fogo sobre a água ou sobre o ar. Ainda, às vezes, o calor do fogo abre os ovos, reproduzindo o próprio calor animal. E há ainda muitos exemplos semelhantes que não são passíveis de dúvida, de que o calor do fogo em muitas ocasiões pode ser substituído eficazmente pelo calor dos corpos celestes e pelo calor dos animais.

Igualmente, tomem-se para investigação as naturezas do movimento e do repouso. Parece haver uma solene diferença, extraída dos arcanos da filosofia, de que os corpos naturais ou giram ou seguem em linha reta, ou ficam em repouso e quietos. Pois pode ocorrer o movimento sem término ou o repouso sem término, ou movimento para o término. Pois bem, o movimento de rotação perene parece ser próprio dos corpos celestes, o repouso ou a quietude parecem perten­cer ao globo terrestre; e os outros corpos que são chamados pesados e leves, colocados fora do seus lugares naturais, movem-se em linha reta no sentido da massa ou agregado dos corpos semelhantes, isto é, leves, para cima, em direção ao sol; os pesados, para baixo em dire­ção à terra. E são belas palavras para serem ditas! 186

Uma instância de aliança é um cometa qualquer, mesmo dos mais baixos, que, apesar de estar muito abaixo do céu, mesmo assim tem movimento circular. E já foi abandonado o juízo de Aristóteles, 187segundo o qual haveria um encadeamento de cometas, ligando-os a alguma estrela, o mesmo não acontecendo com os satélites. Não só as suas razões são improváveis como também a experiência mostra o percurso errante e irregular que têm os cometas no céu.

Outra instância semelhante de aliança sobre esse assunto é o movimento do ar, que nos trópicos (onde os círculos de rotação são mais amplos) gira do oriente para o ocidente.

E uma outra instância poderia ser o fluxo e o refluxo do mar, se se conseguisse averiguar que as próprias águas têm um movimento de rotação (ainda que débil e lento), do oriente para o ocidente; mas de forma tal que haja um movimento completo duas vezes por dia. Se assim são as coisas, é evidente que o movimento de rotação não se limita aos corpos celestes, mas que também se comunica ao ar e a água. Também a propriedade dos corpos leves de tenderem para o alto é duvidosa. Em relação a isso pode-se tomar uma bolha de água como instância de aliança. De fato, quando se introduz ar debaixo da água, aquele sobe rapidamente para a superfície, por um movimento de percussão, como o chama Demócrito, 188 isto é, graças ao próprio golpe da água que desce é que o ar é expelido, e não por alguma força própria. E, quando chega à superfície, o ar é impedido pela própria água de sair rapidamente, pois, mesmo que a resistência da água seja muito débil, ela não suporta com muita facilidade a interrupção da sua continuidade, por mais forte que seja o impulso do ar no sentido das regiões superiores.

Tome-se igualmente para a investigação a natureza do peso. A distinção, comumente aceita, é a de que os corpos densos e sólidos movem-se em direção ao centro da terra e os corpos leves e tênues em direção aos céus, como seus lugares naturais. Mas tal opinião (ainda que bem aceita nas escolas), de que os lugares têm alguma força, é inteiramente estúpida e pueril. Provoca o riso dos filósofos que afirmam que, se a terra fosse perfurada, os corpos pesados parariam ao chegar ao centro. Na verdade seria uma grande força do nada, ou de um ponto matemático, a de atrair para si os corpos, ou o que se queira! Um corpo só pode ser afetado por um outro corpo e a tendência a subir e a descer está ou no esquematismo que se move ou no seu consenso ou simpatia com um outro corpo. E, se se encontrasse um corpo denso e sólido que caísse para a terra, estaria já refutada essa distinção. Mas se se aceita a opinião de Gilbert 189 de que a força magnética da terra para atrair os corpos graves não vai além da órbita de sua atividade (pois ela atua sempre até uma certa distância e não mais), e se se pudesse provar isso com algum exemplo, teríamos por fim uma instância de aliança nessa matéria. Contudo, até agora não se observou nenhuma instância certa e evidente a esse respeito. Uma instância próxima é dada pelos caracteres do céu conhecidos dos navegantes do oceano Atlântico a caminho das Índias Orientais ou Ocidentais. Repentinamente vertem os céus tanta água que parece se ter formado, nessas alturas, com antecedência, uma porção de água, que ai permaneceu suspensa, e que foi desalojada e arremessada por uma causa violenta, não parecendo dever-se o fenômeno ao movimento natural da gravidade. Em vista disso pode-se chegar à conclusão de que uma massa de matéria densa e compacta, colocada a gran­de distância da terra, continuaria suspensa, como a própria terra, sem cair, a não ser se provocada. Mas não se pode ter muita certeza disso. Deste e de outros exemplos pode-se chegar à conclusão do quanto falta à história natural de que dispomos, pois somos obrigados a servirmo-nos de seus exemplos no lugar de instâncias certas.

Igualmente, tome-se como exemplo para investigação o discurso da razão. 190 Parece bem fundada a famosa divisão da racionalidade do homem e da instintividade dos animais. Contudo, algumas ações das bestas parecem indicar que elas quase que sabem fazer uso do silogismo. Conta-se, por exemplo, que um corvo, estando quase morto de sede, devido a grande seca, encontrou água na cavidade de um tronco de árvore, e como não pudesse penetrar pela estreita abertura, pôde a jogar pedras até que, subindo o nível da água, por fim, pôde matar a sede, passando tal fato a provérbio. 191

Da mesma maneira, proceda-se à investigação da natureza do visível. Para não comportar objeções, a distinção entre a luz, que é o meio comum que permite a visão dos objetos, e a cor, que é o meio subordinado, porque não pode surgir sem a luz, da qual parece nada mais ser que uma imagem ou modificação: a respeito, constituem instâncias de aliança, de um lado a neve em grande quantidade, e de outro, a chama do enxofre. No primeiro caso parece haver uma cor primariamente reluzente, no segundo, uma luz em vias de assumir uma cor.