NOVUM ORGANUM
Francis Bacon

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO II - AFORISMOS

Aforismo XXIII
 

Entre as instâncias prerrogativas, colocaremos em segundo lugar as instâncias migrantes. 139 São aquelas em que a natureza investigada migra ou passa a um processo de existência 140 se antes não existia, ou, ao contrário, migra no sentido da corrupção, se antes existia. Em ambos os casos, simétricos da alternância, as instâncias são duplas, ou uma única instância em movimento ou trânsito, que se estende ao ciclo contrário. As instâncias desse tipo não apenas acele­ram e reforçam o processo de exclusão como também delimitam o afirmativo, isto é, a própria forma investigada. É necessário, com efeito, que a forma da coisa seja algo que, por meio das migrações, de um lado manifeste-se, de outro, destrua-se e seja eliminada. E ainda que toda exclusão promova a afirmação, isso se cumpre mais diretamente considerando-se um mesmo objeto, em vez de muitos. A forma (como deve ter ficado claro por tudo o que foi dito), depois de observada em um único, estende-se a todos os objetos. Quanto mais simples é a migração tanto mais significativa é a instância. Além disso, as instân­cias migrantes são de grande utilidade na parte operativa (ou prática) do saber; isso porque, mostrando a forma juntamente com a causa que a faz ser ou não ser, 141 indicam de forma mais evidente a prática a ser seguida em certos casos, dos quais é fácil passar a outros, mas há ai um perigo a ser evitado que exige cautela, ou seja, tais instâncias conectam muito estreitamente a forma à causa eficiente, 142 confun­dindo assim o intelecto, ou pelo menos iludindo-o com uma falsa opi­nião da forma, ao divisar a causa eficiente. E esta, para nós, nada mais é que o veículo ou o condutor da forma. Mas se o procedimento de exclusão é feito de maneira legítima, o remédio será facilmente encontrado.

Exporemos agora um exemplo de instância migrante. Seja a natureza a ser investigada o candor ou a brancura: a instância migrante para a produção é o vidro inteiro e o vidro pulverizado. Também a água comum e a água agitada, até transformar-se em espu­ma. De fato, o vidro inteiro e a água comum são transparentes, mas não são brancos; o vidro pulverizado e a água transformada em espu­ma são brancos, mas não são transparentes. Por isso torna-se neces­sário descobrir o que aconteceu ao vidro e à água por força dessa migração. É claro que a forma do branco é comunicada e introduzida pela pulverização, no caso do vidro, e pela agitação, no caso da água. Constatamos, então, que o que ocorreu foi a comunicação das partí­culas do vidro e da água e a penetração do ar. E não foi pouco o já alcançado, com isso, para o descobrimento da forma do branco, ao isolar o fato de que dois corpos em si transparentes, sendo um mais e outro menos (ou seja, o ar e a água, o ar e o vidro), colocados juntos em minúsculas partículas, produzem a brancura, devido à refração desigual dos raios de luz.

Mas, a esse respeito, devemos ainda expor um exemplo do perigo antes mencionado, bem como a forma de evitá-lo. Ao intelecto cor­rompido pelas causas eficientes, facilmente pode ocorrer o pensa­mento de que a forma do branco é sempre necessária ao ar, e que a brancura é engendrada unicamente por corpos transparentes. O que é inteiramente falso e demonstrado por muitas exclusões. Ver-se-á, por outro lado (deixando de lado o ar e coisas análogas), que corpos intei­ramente iguais, nas partículas visíveis, produzem a transparência; que corpos desiguais, com estrutura simples, engendram o branco; que os corpos desiguais, com estrutura complexa, mas ordenada, engendram outras cores, com exceção do negro; que os corpos desiguais, com uma estrutura complexa, mas desordenada e confusa, engendram o negro. Assim apresentamos o exemplo de instância migrante, na gera ção da natureza do branco. A instância migrante, para a corrupção da própria natureza do branco, obtém-se com a espuma ou com a neve em dissolução. De fato, a água perde o branco e retoma a transparência quando retorna ao seu estado íntegro, sem ar.

De modo algum pode deixar de ficar bem explícito que, sob o nome de instância migrante, compreendem-se não apenas as que migram passando à geração ou à privação, mas ainda as que migram passando ao aumento ou à diminuição, uma vez que também tais instâncias levam à descoberta da forma, como se observa manifestamente pela, antes enunciada, definição da forma e pela tábua de graus. Por isso o papel, quando seco, é branco; mas quando é molhado (ou seja, quando se elimina o ar e se introduz a água), é menos branco e mais próximo da transparência. O seu comportamento é semelhante aos indicados nas instâncias anteriores.