NOVUM ORGANUM
Francis Bacon

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO II - AFORISMOS

Aforismos
 

xx

Contudo, como a verdade emerge mais rapidamente do erro que da confusão, reputamos ser útil permitir-se ao intelecto, depois de elaboradas e devidamente consideradas as três tábuas de primeira citação (ou comparecimento ou de apresentação, tal como o fizemos), o empreendimento da obra de interpretação da natureza na afirmati­va, 120a partir das instâncias contidas nas tábuas, ou das que ocorre­rem fora delas. A essa espécie de tentativa continuamos a chamar de Permissão ao Intelecto ou de Interpretação Inicial ou ainda de Pri­meira Vindima. 121

Primeira Vindima da Forma do Calor

Deve ter-se presente que a forma é inerente (o que deve ter ficado claro pelo que antes foi dito) a todas e a cada uma das instâncias particulares, nas quais se encontra a própria coisa; de outra maneira não seria forma, pois não pode ocorrer nenhuma instância contraditória. Todavia, a forma é muito mais visível em algumas instâncias que em outras; ou seja, nas que a natureza da forma está menos coibi­da e impedida pelas outras naturezas e reduzida à sua ordem. A estas instâncias costumamos chamar de instâncias luminosas ou instâncias ostensivas. 122

Em todas e em cada uma das instâncias em que a limitação é o calor, a natureza parece ser o movimento. Isso é manifesto na chama, no seu perpétuo mover, nos líquidos aquecidos ou ferventes, também sempre em movimento. Fica igualmente claro, quando se excita o calor pelo movimento, como acontece com os foles e com o vento (ve­ja-se instância 29, tábua 3). O mesmo pode ser dito de outros tipos de movimento, a cujo respeito veja instâncias 28 e 31, tábua 3. Isso tam­bém se observa na extinção do fogo e do calor, por qualquer forte compressão que refreia e interrompe o movimento (veja instâncias 30 e 32, tábua 3). Fica igualmente claro que todos os corpos se des­troem ou, pelo menos, se alteram consideravelmente, por qualquer fogo ou calor forte e veemente, daí se seguindo que o calor produz um movimento forte, um tumulto ou perturbação nas partes internas do corpo, que gradualmente caminham para a dissolução.

O que dissemos a respeito do movimento (ou seja, que é como o gênero em relação ao calor) não deve ser entendido como significando que o calor gera o movimento ou que o movimento gera o calor (embora nisso haja alguma verdade), mas que o calor é em si, 123 ou que a própria qüididade do calor 124 é movimento e nada mais; observan­do-se, porém, as diferenças específicas que a seguir enumeraremos, depois de indicar algumas precauções contra os equívocos.

O calor, enquanto coisa sensível, é algo relativo ao homem e não ao universo, e é corretamente estabelecido como sendo efeito (do calor) sobre o espírito animal. Pelo que, em si mesmo, é coisa variá­vel, pois em um mesmo corpo (conforme a disposição dos sentidos) produz tanto sensação de calor quanto de frio, o que deve ter ficado patente pela instância 41, tábua 3.

Contudo, não se pode confundir a comunicação do calor, ou seja, a sua natureza transitiva, graças à qual um corpo aproximando-se de outro quente, também se aquece, com a forma do calor. Pois uma coisa é o quente e outra é o que esquenta. E, como, com um movimento de atrito, se produz calor sem a existência de um calor precedente, é necessário que se exclua o que se aquece da forma do quente. É mesmo quando o calor sobrevém, pela aproximação de algo quente, isso não se deve à forma do quente, mas resulta inteiramente de uma natureza mais alta e comum, isto é, da natureza da assimila­ção ou da multiplicação de si mesmo, o que deve ser investigado separadamente. 125

A noção de fogo é vulgar e de nada vale; é composta de combi­nação do calor e da luz de um corpo, como na chama e nos corpos aquecidos até a incandescência.

Uma vez afastado todo equívoco, passemos às diferenças verda­deiras, que limitam o movimento e constituem-no na forma do calor. 126

A primeira diferença é a seguinte: o calor é movimento expansi­vo, pelo qual o corpo se dilata e tende a dilatar-se ou a passar para uma esfera ou dimensão maior que a antes ocupada. Esta diferença se mostra sobretudo na chama, onde o fumo e o vapor espesso se dila­tam e convertem-se em chama.

O mesmo se observa em todo líquido fervente que se intumesce, de maneira manifesta, eleva-se e emite borbulhas, e o processo de expansão se estende até alcançar uma extensão muito superior e muito mais ampla que a do próprio líquido, quer dizer, convertendo o líquido em vapor, fumo ou ar.

Observa-se também em toda madeira ou matéria combustível, em que às vezes ocorre exsudação e sempre evaporação.

Observa-se ainda nafusão dos metais que como corpos muito compactos que são) não se intumescem nem se dilatam com facili­dade, porém, o seu espírito, depois de se ter dilatado, tendendo dessa forma a uma maior expansão, força e leva as partes mais graxas ao estado liquido. E se for aumentado em muito o calor, dissolve e torna volátil grande parte delas.

Observa-se igualmente no ferro e nas pedras: que, embora não se liqüefaçam ou fundam, tornam-se mais moles. O que também ocorre com varas de madeira, que se tornam flexíveis quando aquecidas em cinza quente. E esse movimento se observa de modo mais evidente possível no ar, que com pouco calor se dilata de modo continuo e manifesto, como se pode ver pela instância 38, tábua 3.

Observa-se, ainda, na natureza contrária, que é o frio. Com efei­to, o frio contrai todos os corpos e leva-os a se encolherem. Isso vai ao ponto de, por ocasião de intenso frio, os pregos caírem das pare­des, o bronze se dessoldar, e o vidro aquecido, e subitamente colo­cado no frio, arquear-se e quebrar. Igualmente o ar, submetido a um ligeiro resfriamento, se contrai em volume mais restrito, como apare­ce na instância 38, tábua 2. Mas, sobre esse assunto, alongar-nos-emos mais quando da investigação do frio.

Não é de estranhar que o calor e o frio produzam muitas ações comuns (a respeito, veja-se instância 32, tábua 32), pois duas das dife­renças que vêm a seguir pertencem igualmente às duas naturezas; ainda que nesta diferença (a de que estamos tratando) as ações sejam diametralmente opostas — pois o calor engendra um movimento expansivo e dilatador, e o frio, ao contrário, engendra um movimento de contração e de condensação.

A segunda diferença é uma modificação da precedente e reza que o calor é um movimento expansivo ou orientado para a circunfe­rência, mas com a condição de que, ao mesmo tempo, o corpo tenda para o alto. Não há dúvida de que se podem produzir muitos movi­mentos mistos. Por exemplo, uma seta ou um dardo gira enquanto caminha e caminha enquanto gira. Da mesma maneira, o movimento do calor é expansivo e ao mesmo tempo voltado para o alto.

Esta diferença fica bastante evidente ao serem colocadas tenazes ou atiçadores de ferro no fogo. Se são colocados perpendicularmente, segurando-se na outra extremidade, o calor rapidamente queimará as mãos, mas se são colocados horizontalmente ou em nível inferior ao do fogo, as mãos se vão aquecer muito depois.

É também evidente nas destilações, per discensorium, que são usadas pelos homens para flores muito delicadas cujos aromas rapi­damente se evolam. De fato, a indústria humana descobriu uma maneira de colocar o fogo não por baixo, mas por cima, para aqueci­mento mais lento. Não apenas a chama mas também toda espécie de calor tende para o alto.

Faça-se um experimento disso, na natureza contrária do frio, para se verificar se o frio não provoca a contração dos corpos para baixo, da mesma maneira que o calor dilata os corpos para o alto. Para isso, tomem-se duas barras de ferro, ou dois tubos de vidro, iguais em todos os outros aspectos, e levem-nos ao fogo para se aque­cerem um pouco; coloque-se uma esponja embebida em água fria ou neve, em cima de uma e embaixo de outra respectivamente. Supomos que o resfriamento no sentido das extremidades será mais rápido na barra em que a neve esteja em cima do que naquela em que a neve venha colocada embaixo, ou seja, exatamente o contrário do que ocorre com o calor.

A terceira diferença é a seguinte: o calor é um movimento expan­sivo, não uniforme segundo o todo, mas segundo as menores partí­culas do corpo, e ao mesmo tempo reprimido, repelido e afastado, de maneira que adquire um movimento alternado e continuamente trêmulo e irritado pela repercussão 127 e do qual se origina o furor do fogo e do calor.

Esta diferença aparece sobretudo na chama e nos líquidos fer­ventes, que continuamente tremem e nas menores partes se intumes­cem e repentinamente esmorecem.

Ocorre ainda nos corpos que têm tal densidade que aquecidos ou incandescentes não se intumescem, nem se dilatam em sua massa; esse é o caso do ferro candente, em que o calor é muito intenso.

Ocorre ainda no fato de o fogo arder mais intensamente por oca­sião da estação fria.

Ocorre ainda no fato de que, quando o ar se dilata, no termôme­tro, sem qualquer impedimento ou força repulsiva, isto é, com unifor­midade e conformidade, não se percebe qualquer calor. Ainda nos ventos fechados, mesmo irrompendo com a máxima força, mesmo assim não se percebe um calor significativo; isso porque o movimento ocorre segundo o todo e não alternadamente nas partículas. Faça-se um experimento a esse respeito para se verificar se a chama não quei­ma mais fortemente nos lados que no centro.

Ocorre também de forma clara no fato de que toda a combustão penetra pelos diminutos poros do corpo, que se queima; de modo que a combustão o abate, penetra, atravessa e perfura como se possuísse infinitas pontas de agulha. É por isso que também todas as águas-fortes (se são adequadas ao corpo sobre o qual agem) produzem os efeitos do fogo, devido à sua natureza corrosiva e penetrante.

Esta diferença (a de que estamos falando) é comum à natureza do frio, no qual o movimento de contração é contido pela força expansiva; do mesmo modo que no calor é reprimido o movimento expansivo pela força de contração.

Por isso, tanto faz se as partículas do corpo o penetrem para dentro ou no sentido do exterior, o processo é o mesmo, embora o grau de intensidade seja muito diferente, pois, mesmo aqui bem perto de nós, na superfície da Terra, nada temos que seja puramente frio (veja-se instância 27, tábua 1).

A quarta diferença é uma modificação da anterior, ou seja, o movimento estimulante ou penetrante deve ser rápido, e não lento, e provir por partículas não extremamente pequenas, mas um pouco maiores.

Observa-se esta diferença no confronto dos resultados que pro­duz o fogo com os resultados que produz o tempo ou a idade. O tempo tanto quanto o fogo queima, consome, alui e reduz a cinzas, mas de forma sutil e delicada, isso porque trata-se de um movimento muito lento, que procede por partículas minúsculas e onde não se per­cebe o calor.

Ocorre também na comparação entre a dissolução do ferro e do ouro. O ouro de fato dissolve sem provocar calor, enquanto o ferro produz um calor fortíssimo, mesmo durante um tempo mais ou menos igual. Tal ocorre porque, com a introdução da água, a solução se pro­cessa mais naturalmente e a dissolução das partes advém sem esforço, mas com o ferro, ao contrário, a presença da água é áspera e contras­tante, porque as partes do ferro opõem uma maior resistência.

Ocorre ainda até certo ponto em certas gangrenas ou decomposi­ções da carne que não produzem grande calor, nem dor, mas cum­prem-se pelo processo sutil da putrefação.

Seja esta, pois, a primeira vindima ou interpretação inicial da forma do calor, obtida por permissão do intelecto.

Desta primeira vindima, obtêm-se a forma ou verdadeira defini­ção do calor (o calor em relação ao universo e não apenas em relação aos sentidos), que pode ser expressa brevemente do seguinte modo: O calor é um movimento expansivo, reprimido e que atua sobre as partículas menores. A expansão pode ser definida: Pela natureza de expan­dir-se em todas as direções, mas que, apesar disso, se inclina um pouco mais para o alto. E o esforço sobre as partículas se define dizendo: Que não se trata de algo lento, mas apressado e impetuoso.

Em relação à parte operativa, é a mesma coisa. De fato, o seu enunciado é o seguinte: Se em algum corpo natural pode produzir-se um movimento de dilatação e expansão e se se puder reprimi-lo e fazê-lo voltar sobre esse movimento, de modo que a dilatação não transcorra uniformemente, mas por partes e que seja em parte repeli­da, nesse caso, sem dúvida, se engendrará calor. É indiferente se se trata de corpo elementar (como se diz) ou se recebe as suas qualida­des dos corpos celestes; se é luminoso ou opaco; se é tênue ou denso; se aumentado em seu volume ou contido nos limites da primeira dimensão; se tendente a dissolver-se ou a permanecer no seu estado; se animal, vegetal ou mineral; se água, óleo ou ar; ou de qualquer outra substância suscetível do movimento mencionado. O calor sensí­vel é, pois, a mesma coisa que o calor em si, mas em relação aos nos­sos sentidos. 128 Mas agora é necessário passar aos outros auxílios do intelecto.