XCI
Mesmo que viesse a cessar essa ojeriza, bastaria para coibir o progresso das ciências o fato de a qualquer esforço ou labor faltar estímulo. Com efeito, não estão nas mesmas mãos o cultivo das ciências e as suas recompensas. As ciências progridem graças aos grandes engenhos, mas os estipêndios e os prêmios estão nas mãos do vulgo e dos príncipes, que, raramente, são mais que medianamente cultos. Dessa maneira, esse progresso não é apenas destituído de recompensa e de reconhecimento dos homens, mas até mesmo do favor popular. Acham-se as ciências acima do alcance da maior parte dos homens e são facilmente destruídas e extintas pelos ventos da opinião vulgar. Daí não se admirar que não tenha tido curso feliz o que não costuma ser favorecido com honrarias.
XCII
Contudo, o que se tem constituído, de longe, no maior obstáculo ao progresso das ciências e à propensão para novas tarefas e para a abertura de novas províncias do saber é o desinteresse dos homens e a suposição de sua impossibilidade. Os homens prudentes e severos, nesse terreno, mostram-se desconfiados, levando em conta: a obscuridade da natureza, a brevidade da vida, as falácias dos sentidos, a fragilidade do juízo, as dificuldades dos experimentos e dificuldades semelhantes. Supõem existir, através das revoluções do tempo e das idades do mundo, um certo fluxo e refluxo das ciências; em certas épocas crescem e florescem; em outras declinam e definham, como se depois de um certo grau e estado não pudessem ir além.
Se alguém espera ou promete algo maior, é acusado como espírito descontrolado e imaturo e diz-se que em tais iniciativas o início é risonho, árduo o andamento e confusa a conclusão. E, como essa sorte de ponderações acodem facilmente aos homens graves e de juízo superior, devemos nos prevenir para que, por amor de uma empresa soberba e belíssima, não venhamos relaxar ou diminuir a severidade de nossos juízos. Devemos observar diligentemente se a esperança refulge e donde ela provém e, afastando as mais leves brisas da esperança, passar a discutir e a avaliar as coisas que pareçam apresentar firmeza. Seja, aqui, invocada e aplicada a prudência política, 67 que desconfia por princípio e nos assuntos humanos conjetura o pior. Falemos, pois, agora de nossas aspirações. Não somos pródigos em promessas, nem procuraremos coagir ou armar ciladas ao juízo humano, mas tomar os homens pela mão e guiá-los, com a sua anuência. E, ainda que o meio, de longe mais poderoso de se encorajar a esperança, 68 seja colocar os homens diante dos fatos particulares, especialmente dos fatos tais como se acham recolhidos e ordenados em nossas tabelas de investigação 69 tema que pertence parcialmente à segunda, mas principalmente à quarta parte de nossa Instauração —, já que não se trata mais, no caso, de esperança, mas de algo real, todavia, como tudo deve ser feito gradualmente, prosseguiremos no propósito já traçado de preparar a mente dos homens. E nessa preparação não é parte pequena a indicação de esperanças. Porque, afora isso, tudo o mais levaria tristeza ao homem ou a formar uma opinião ainda mais pobre e vil que a que possui ou a fazê-lo sentir a condição infeliz em que se encontra, em vez de alguma alegria ou a disposição para a experimentação. Em vista disso, é necessário propor e explicar os argumentos que tornam prováveis as nossas esperanças, tal como fez Colombo que, antes da sua maravilhosa navegação pelo oceano Atlântico, expôs as razões que o levaram a confiar na descoberta de novas terras e continentes, além do que já era conhecido. Tais razões, de início rejeitadas, foram mais tarde comprovadas pela experiência e se constituíram na causa e no princípio de grandes empresas.
XCIII
Porém, o supremo motivo de esperança emana de Deus. Com efeito, a empresa a que nos propomos, pela sua excelência e intrínseca bondade, provém manifestamente de Deus, que é Autor do bem e Pai das luzes. Pois bem, nas obras divinas, mesmo os inícios mais tênues conduzem a um êxito certo. E o que se disse da ordem espiritual, que “O reino de Deus não vem com aparência exterior”, 70 é igualmente verdadeiro para todas as grandes obras da Divina Providência. Tudo se realiza placidamente, sem estrépito e a obra se cumpre antes que os homens a suponham ou vejam. Não se deve esquecer a profecia de Daniel a respeito do fim do mundo: “Muitos passarão e a ciência se multiplicará”, 71 o que evidentemente significa que está inscrito nos destinos, isto é, nos desígnios da Providência, que o fim do mundo o que, depois de tantas e tão distantes navegações parece haver-se cumprido ou está prestes a fazê-lo — e o progresso das ciências coincidam no tempo. 72
XCIV
Segue a mais importante das razões que alicerçam a esperança. É a que procede dos erros dos tempos pretéritos e dos caminhos até agora tentados. Excelente é o julgamento, feito por alguém, ao responsável por desastrosa administração do Estado, com as seguintes palavras: “O que no passado foi causa de grandes males deve parecer-nos princípio de prosperidade para o futuro. Pois, se houvésseis cumprido perfeitamente tudo o que se relaciona com o vosso dever, e, mesmo assim, não houvesse melhorado a situação dos vossos interesses, não restaria qualquer esperança de que tal viesse a acontecer. Mas, como as más circunstâncias em que se encontram não dependem das forças das coisas, mas dos vossos próprios erros, é de se esperar que, estes corrigidos, haja uma grande mudança e a situação se torne favorável”. 73 Do mesmo modo, se os homens, no espaço de tantos anos, houvessem mantido a correta via da descoberta e do cultivo das ciências, e mesmo assim não tivessem conseguido progredir, seria, sem dúvida, tida como audaciosa e temerária a opinião no sentido de um progresso possível. Mas uma vez que o caminho escolhido tenha sido o errado, e a atividade humana se tenha consumido de forma inoperante, segue disso que a dificuldade não radica nas próprias coisas, que fogem ao nosso alcance, mas no intelecto humano, no seu uso e aplicação, o que é passível de remédio e medicina. Por isso, estimamos ser oportuno expor esses erros. Pois, quantos foram os erros do passado, tantas serão as razões de esperança 74 para o futuro. Embora se tenha antes falado algo a seu respeito, é de toda conveniência expô-las brevemente, em palavras simples e claras.
XCV
Os que se dedicaram às ciências foram ou empíricos ou dogmáticos. Os empíricos, à maneira das formigas, acumulam e usam as provisões; os racionalistas, à maneira das aranhas, de si mesmos extraem o que lhes serve para a teia. 75 A abelha representa a posição intermediária: recolhe a matéria-prima das flores do jardim e do campo e com seus próprios recursos a transforma e digere. Não é diferente o labor da verdadeira filosofia, que se não serve unicamente das forças da mente, nem tampouco se limita ao material fornecido pela história natural ou pelas artes mecânicas, conservado intato na memória. Mas ele deve ser modificado e elaborado pelo intelecto. Por isso muito se deve esperar da aliança estreita e sólida (ainda não levada a cabo) entre essas duas faculdades, a experimental e a racional.
XCVI
Ainda não foi criada uma filosofia natural pura. As existentes acham-se infectadas e corrompidas: na escola de Aristóteles, pela lógica; na escola de Platão, pela teologia natural; na segunda escola de Platão, a de Proclo e outros, pela matemática, 76 a quem cabe rematar a filosofia e não engendrar ou produzir a filosofia natural. Mas é de se esperar algo de melhor da filosofia natural pura e sem mesclas.
XCVII
Até agora ninguém surgiu dotado de mente tão tenaz e rigorosa que haja decidido, e a si mesmo imposto, livrar-se das teorias e noções comuns e aplicar, integralmente, o intelecto, assim purificado e reequilibrado, aos fatos particulares. Pois a nossa razão humana 77 é constituída de uma farragem e massa de coisas, procedentes algumas de muita credulidade, e outras do acaso e também de noções pueris, que recebemos desde o início.
É de se esperar algo melhor de alguém que, na idade madura, de plena posse de seus sentidos e mente purificada, se dedique integralmente à experiência e ao exame dos fatos particulares. Nesse sentido prometemo-nos a fortuna de Alexandre Magno: que ninguém nos acuse de vaidade antes de constatar que o nosso propósito final é o de banir toda vaidade.
Com efeito, de Alexandre e de suas façanhas assim falou Ésquines: “Certamente, não vivemos uma vida mortal; mas nascemos para que a posteridade narre e apregoe os nossos prodígios”, como que entendendo por milagrosos os feitos de Alexandre. 78
Mas, em época posterior, Tito Lívio, apreciando e compreendendo melhor o fato, disse de Alexandre algo como: “Em última instância, nada mais fez que ter a ousadia de desprezar as coisas vãs”. 79 Cremos que nos tempos futuros far-se-á a nosso respeito um juízo semelhante: De fato nada fizemos de grandioso; apenas reduzimos as proporções do que era superestimado. Todavia, como já dissemos, não há esperança senão na regeneração das ciências, vale dizer, na sua reconstrução, segundo uma ordem certa, que as faça brotar da experiência. Ninguém pode afirmar, segundo presumimos, que tal tarefa tenha sido feita ou sequer cogitada.
XCVIII
Os fundamentos da experiência — já que a ela sempre retomamos — até agora ou foram nulos ou foram muito inseguros. Até agora não se buscaram nem se recolheram coleções 80 de fatos particulares, em número, gênero ou em exatidão, capazes de informar de algum modo o intelecto. Mas, ao contrário, os doutos, homens indolentes e crédulos, acolheram para estabelecer ou confirmar a sua filosofia certos rumores, quase mesmo sussurros ou brisas 81 de experiência, a que, apesar de tudo, atribuíram valor de legítimo testemunho. Dessa forma, introduziu-se na filosofia, no que respeita à experiência, a mesma prática de um reino ou Estado que cuidasse de seus negócios, não à base de informações de representantes ou núncios fidedignos, mas dos rumores ou mexericos de seus cidadãos. Nada se encontra na história natural devidamente investigado, verificado, classificado, pesado e medido. E o que no terreno da observação é indefinido e vago é falacioso e infiel na informação. Se alguém se admira de que assim se fale e pensa não serem justos os nossos reclamos, ao se lembrar de Aristóteles, homem tão grande ele próprio e apoiado nos recursos de um tão grande rei, 82 que escreveu uma tão acurada História dos Animais; e de alguns outros que a enriqueceram com mais diligência, mas com menos estrépito; e de outros ainda, que fizeram o mesmo em relação às plantas, os metais, os fósseis, com história e descrições abundantes, ele não se dá conta, não parece ver ou compreender suficientemente o assunto de que tratamos. Pois uma é a marcha da história natural, organizada por amor de si mesma, 83 outra, a que é destinada a informar o intelecto com ordem (método), para fundar a filosofia. Essas duas histórias naturais se diferenciam em muitos aspectos, principalmente nos seguintes: a primeira compreende a variedade das espécies naturais e não os experimentos das artes mecânicas. Com efeito, da mesma maneira que na vida política o caráter de cada um, sua secreta disposição de ânimo e sentimentos melhor se patenteiam em ocasiões de perturbação que em outras, assim também os segredos da natureza melhor se revelam quando esta é submetida aos assaltos 84 das artes que quando deixada no seu curso natural. Em vista disso, é de se esperar muito da filosofia natural quando a história natural que é a sua base e fundamento — esteja melhor construída. Até que isso aconteça nada se pode esperar.
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