NOVUM ORGANUM
Francis Bacon

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO I - AFORISMOS

Aforismos 76-80
 

LXXVI

Merece ainda ser considerada como signo a grande e perpétua disparidade de idéias que tem reinado entre os filósofos, e a própria variedade das escolas de filosofia. Essa disparidade mostra que a via que conduz dos sentidos ao intelecto não foi bem traçada, já que a própria matéria da filosofia, ou seja, a natureza, foi rompida e divi­dida em tantos e tão diversos erros. Em tempo mais recente, as dissen­ções e as disparidades de pontos de vista em torno dos próprios prin­cípios da filosofia e das filosofias parece terem cessado; mas restam ainda inumeráveis problemas e controvérsias nas várias partes da filosofia, donde resulta claro que não há nada de certo e de rigoroso nem nas doutrinas filosóficas nem nos métodos de demonstração.

LXXVII

Crê-se comumente que a filosofia de Aristóteles obteve o con­senso universal pelo fato de que, quando de sua divulgação, todas as outras filosofias dos antigos morriam ou desapareciam, e pelo fato de que nos tempos subseqüentes não se encontrou nada melhor; dessa forma, a filosofia aristotélica parece tão bem fundada e estabelecida, pois canalizou para si o tempo antigo e o tempo moderno. A isso se responde: primeiro, o que se pensa em relação à cessação das antigas filosofias depois da divulgação das obras de Aristóteles é falso, por­que muito tempo depois, até a época de Cícero e mesmo nos séculos seguintes, as obras dos antigos filósofos ainda subsistiram. Mas, depois, no tempo das invasões bárbaras do Império Romano, após toda doutrina humana ter, por assim dizer, naufragado, então, se conservaram apenas as doutrinas de Aristóteles e de Platão, como tá­buas feitas de matéria mais leve e menos sólida, flutuando no curso dos tempos. Segundo: por pouco que se aprofunde tal ponto, também o argumento do consenso universal vai-se mostrar falho, O verda­deiro consenso é, antes de tudo, uma coincidência de juízos livres sobre uma questão precedentemente examinada. Mas, pelo contrário, a grande massa dos que convêm na aprovação de Aristóteles é escra­va do prejuízo da autoridade de outros, a tal ponto que se deveria falar, mais que de consenso, de zelo de sequazes e de espírito de asso­ciação. E mesmo no caso em que tenha havido verdadeiro e aberto consenso, o consenso está sempre longe de se constituir em autori­dade verdadeira e sólida, mas faz, ao contrário, nascer uma vigorosa opinião em relação à opinião oposta. Com efeito, o pior auspício é o que deriva do consenso nas coisas intelectuais, excetuadas a política e a teologia, para as quais, ao contrário, há o direito de sufrágio. 39 A muitos apraz só o que tolhe a imaginação e aprisiona o intelecto pelos laços dos conceitos vulgares, como já foi dito antes. 40 Vem a propó­sito aquele dito de Fócion que, dos costumes, pode ser transposto às questões intelectuais: “Os homens devem perguntar que coisa disse­ram ou fizeram de mal quando o povo os enche de apoio e aplau­so”. 41 Este é, pois, um signo dos mais desfavoráveis. Concluamos dizendo que os signos da verdade e da sensatez das filosofias e das ciências, ora em uso, são péssimos, quer se procurem nas suas ori­gens, nos seus frutos, nos seus progressos, nas confissões dos autores ou no consenso.

LXXVIII

Tratemos agora das causas dos erros e de sua persistência que se prolongou por séculos. Elas são muitas e muito poderosas. Em vista disso, não há motivo para se admirar de que tenham escapado e te­nham permanecido ocultas dos homens as coisas que vão agora ser expostas. O que seria de causar espanto é como, finalmente, tenham podido cair na mente de um determinado mortal para serem objeto de suas reflexões; o que, de resto (segundo cremos), foi mais uma ques­tão de sorte que de excelência de alguma faculdade. Deve ser tido mais como parto do tempo que parto do engenho. 42

Bem consideradas as coisas, um número tão grande de séculos reduz-se a um lapso efetivamente exíguo. Das vinte e cinco centúrias em que mais ou menos estão compreendidos a história e o saber humano, apenas seis podem ser escolhidas e apontadas como tendo sido fecundas para as ciências ou favoráveis ao seu desenvolvimento. No tempo como no espaço há regiões ermas e solidões. De fato só podem ser levados em conta três períodos ou retornos na evolução do saber: 43 um, o dos gregos; outro, o dos romanos e, por último, o nosso, dos povos ocidentais da Europa; a cada um dos quais se pode atribuir no máximo duas centúrias de anos. A Idade Média, em rela­ção à riqueza e fecundidade das ciências, foi uma época infeliz. Não há, com efeito, motivos para se fazer menção nem dos árabes, nem dos escolásticos. Estes, nos tempos intermédios, com seus numerosos tratados mais atravancaram as ciências que concorreram para aumentar-lhes o peso. Por isso, a primeira causa de um tão parco progresso das ciências deve ser buscada e adequadamente localizada no limitado tempo a elas favorável.

LXXIX

Em segundo lugar, surge uma causa de grande importância, sob todos os aspectos, a saber, mesmo nas épocas em que, bem ou mal, floresceram o engenho humano e as letras, a filosofia natural ocupou parte insignificante da atividade humana. E leve-se em conta que a filosofia natural deve ser considerada a grande mãe das ciências. Todas as artes e ciências, uma vez dela desvinculadas, podem ser bru­nidas e amoldadas para o uso, mas não podem crescer. 44 É manifesto que desde o momento em que a fé cristã foi aceita e deitou raízes no espírito humano, a grande maioria dos melhores engenhos se consa­grou à teologia, e para isso concorreram poderosamente os prêmios e toda sorte de estímulos a eles reservados. E o cultivo da teologia ocu­pou principalmente o terceiro lapso de tempo, o nosso, isto é, o dos povos ocidentais da Europa; tanto mais que no mesmo período come­çaram a florescer as letras, e as controvérsias a respeito de religião começaram a se propagar. Na idade anterior, no segundo período, o correspondente aos romanos, as mais significativas reflexões e os melhores esforços se ocuparam e se consumiram na filosofia moral (que entre os pagãos substituía a teologia) e, ainda, os talentos daque­le tempo se dedicaram aos assuntos civis, necessidade oriunda da pró­pria magnitude do Império Romano, que exigia a dedicação de um grande número de homens. Mesmo naquela idade em que se viu flo­rescer ao máximo, entre os gregos, a filosofia natural corresponde a uma pequena parte, não contínua, de tempo. Nos tempos mais anti­gos, aqueles que foram chamados de Sete Sábios, todos eles afora Tales, se aplicaram à filosofia moral e à política. Nos tempos seguintes, depois que Sócrates fez descer a filosofia do céu à terra, 45 preva­leceu mais ainda a filosofia moral e mais se afastaram os engenhos humanos da filosofia natural.

Contudo, aquele mesmo período em que as investigações da natureza ganharam vigor foi corrompido pelas contradições e pela ambição de se emitirem novas opiniões, ficando, assim, inutilizado. Dessa forma, durante esses três períodos, a filosofia natural, abando­nada e dificultada, não é para se admirar que os homens, ocupados por outros assuntos, nela pouco tenham progredido.

LXXX

Deve-se acrescentar, ademais, que a filosofia natural, mesmo entre os seus fautores, não encontrou um único homem inteira e exclusivamente a ela dedicado, particularmente nos últimos tempos, a não ser o exemplo isolado de elucubrações de algum monge, em sua cela, ou de algum nobre, em sua mansão. A filosofia natural servia a alguns de passagem e de ponte para outras disciplinas.

Dessa forma, a grande mãe das ciências foi relegada ao indigno oficio de serva, prestando serviços à obra de médicos ou de matemáti­cos, ou devendo oferecer à mente imatura dos jovens o primeiro poli­mento e a primeira tintura, para facilitação e bom êxito de suas poste­riores ocupações. Que ninguém espere um grande progresso nas ciências, especialmente no seu lado prático, 46 até que a filosofia natu­ral seja levada às ciências particulares e as ciências particulares sejam incorporadas à filosofia natural. Por serem disso dependentes é que a astronomia, a óptica, a música, inúmeras artes mecânicas, a própria medicina, e, o que é espantoso, a filosofia moral e política e as ciên­cias lógicas 47 não alcançaram qualquer profundidade, mas apenas deslizam pela superfície e variedade das coisas. De fato, desde que as ciências particulares se constituíram e se dispersaram, não mais se alimentaram da filosofia natural, que lhes poderia ter transmitido as fontes e o verdadeiro conhecimento dos movimentos, dos raios, dos sons, da estrutura e do esquematismo dos corpos, das afecções e das percepções intelectuais, o que lhes teria infundido novas forças para novos progressos. Assim, pois, não é de admirar que as ciências não cresçam depois de separadas de suas raízes.