LI
O intelecto humano, por sua própria natureza, tende ao abstrato, e aquilo que flui, permanente lhe parece. Mas é melhor dividir em partes a natureza que traduzi-la em abstrações. Assim procedeu a escola de Demócrito, que mais que as outras penetrou os segredos da natureza. O que deve ser sobretudo considerado é a matéria, os seus esquematismos, os metaesquematismos, o ato puro, e a lei do ato, que é o movimento. As formas são simples ficções do espírito humano, a não ser que designemos por formas as próprias leis do ato. 17
LII
Tais são os ídolos a que chamamos de ídolos da tribo, que têm origem na uniformidade da substância espiritual do homem, ou nos seus preconceitos, ou bem nas suas limitações, ou na sua contínua instabilidade; ou ainda na interferência dos sentimentos ou na incompetência dos sentidos ou no modo de receber impressões.
LIII
Os ídolos da caverna têm origem na peculiar constituição da alma e do corpo de cada um; e também na educação, no hábito ou em eventos fortuitos. Como as suas espécies são múltiplas e várias, indicaremos aquelas com que se deve ter mais cuidado, por se tratar das que têm maior alcance na turbação da limpidez do intelecto.
LIV
Os homens se apegam às ciências e a determinados assuntos, ou por se acreditarem seus autores ou descobridores, ou por neles muito se terem empenhado e com eles se terem familiarizado. Mas essa espécie de homens, quando se dedica à filosofia e a especulações de caráter geral, distorce e corrompe-as em favor de suas anteriores fantasias. Isso pode ser especialmente observado em Aristóteles que de tal modo submete a sua filosofia natural à lógica que a tornou quase inútil e mais afeita a contendas. A própria estirpe dos alquimistas elabora uma filosofia fantástica e de pouco proveito, porque fundada em alguns poucos experimentos levados a cabo em suas oficinas. Assim também Gilbert, 18 que, depois de laboriosamente haver observado o magneto, logo concebeu uma filosofia toda conforme ao seu principal interesse.
LV
A maior e talvez a mais radical diferença que distingue os engenhos, em relação à filosofia e às ciências, está em que alguns são mais capazes e aptos para notar as diferenças das coisas, outros para as suas semelhanças. Com efeito, os engenhos constantes e agudos podem fixar, deter e dedicar a sua atenção às diferenças mais sutis. De outra parte, os engenhos altaneiros e discursivos reconhecem e combinam as mais gerais e sutis semelhanças das coisas. Mas tanto uns como outros podem facilmente incorrer no exagero, captando em um caso a graduação das coisas, em outro as aparências.
LVI
É desse modo que se estabelecem as preferências pela Antiguidade ou pelas coisas novas. Poucos são os temperamentos que conseguem a justa medida, ou seja, não desprezar o que é correto nos antigos, sem deixar de lado as contribuições acertadas dos modernos. E é o que tem causado grandes danos tanto às ciências quanto à filosofia, pois faz-se o elogio da Antiguidade ou das coisas novas e não o seu julgamento. A verdade não deve, porém, ser buscada na boa fortuna de uma época, que é inconstante, mas à luz da natureza e da experiência, que é eterna. Em vista disso, todo entusiasmo deve ser afastado e deve-se cuidar para que o intelecto não se desvie e seja por ele arrebatado em seus juízos.
LVII
O estudo da natureza e dos corpos em seus elementos simples fraciona e abate o intelecto, enquanto que o estudo da natureza e da composição e da configuração dos corpos o entorpece e desarticula. Isto se pode muito bem observar na escola de Leucipo e Demócrito, se se compara com as demais filosofias. Aquela, com efeito, de tal modo se preocupa com as partículas das coisas que negligencia a sua estrutura; as outras, por seu turno, ficam de tal modo empolgadas na consideração da estrutura que não penetram nos elementos simples da natureza. Assim, pois, se devem alternar ambas as formas de observação e adotar cada uma por sua vez, para que se torne a um tempo penetrante e capaz e se possam afastar os inconvenientes apontados, bem como os ídolos deles provenientes.
LVIII
Essa seja a prudência a ser adotada nas especulações para que se contenham e desalojem os ídolos da caverna, os quais provêm de alguma disposição predominante no estudo, ou do excesso de síntese ou de análise, ou do zelo por certas épocas, ou ainda da magnitude ou pequenez dos objetos considerados. Todo estudioso da natureza deve ter por suspeito o que o intelecto capta e retém com predileção. Em vista disso, muito grande deve ser a precaução para que o intelecto se mantenha íntegro e puro.
LIX
Os ídolos do foro são de todos os mais perturbadores: insinuam-se no intelecto graças ao pacto de palavras e de nomes. Os homens, com efeito, crêem que a sua razão governa as palavras. Mas sucede também que as palavras volvem e refletem suas forças sobre o intelecto, o que torna a filosofia e as ciências sofisticas e inativas. As palavras, tomando quase sempre o sentido que lhes inculca o vulgo seguem a linha de divisão das coisas que são mais potentes ao intelecto vulgar. Contudo, quando o intelecto mais agudo e a observação mais diligente querem transferir essas linhas para que coincidam mais adequadamente com a natureza, as palavras se opõem. Daí suceder que as magnas e solenes disputas entre os homens doutos, com freqüência, acabem em controvérsias em torno de palavras e nomes, caso em que melhor seria (conforme o uso e a sabedoria dos matemáticos) restaurar a ordem, começando pelas definições. E mesmo as definições não podem remediar totalmente esse mal, tratando-se de coisas naturais e materiais, posto que as próprias definições constam de palavras e as palavras engendram palavras. Donde ser necessário o recurso aos fatos particulares e às suas próprias ordens e séries, como depois vamos enunciar, quando se expuser o método e o modo de constituição das noções e dos axiomas.
LX
Os ídolos que se impõem ao intelecto através das palavras são de duas espécies. Ou são nomes de coisas que não existem (pois do mesmo modo que há coisas sem nome, por serem despercebidas, assim também há nomes por mera suposição fantástica, a que não correspondem coisas), ou são nomes de coisas que existem, mas confusos e mal determinados e abstraídos das coisas, de forma temerária e inadequada. À primeira espécie pertencem: a fortuna, o primeiro móvel, as órbitas planetárias, o elemento do fogo e ficções semelhantes, que têm origem em teorias vazias e falsas. Essa espécie de ídolos é a mais fácil de se expulsar, pois se pode exterminá-los pela constante refutação e ab-rogação das teorias que os amparam. Mas a outra espécie é mais complexa e mais profundamente arraigada por se ter formado na abstração errônea e inábil. Tome-se como exemplo a palavra úmido e enumerem-se os significados que pode assumir. Descobriremos que esta palavra úmido compila notas confusas de operações diversas que nada têm em comum ou que não são irredutíveis. Significa, com efeito, tudo o que se expande facilmente em torno de outro corpo; tudo o que é em si mesmo indeterminável e não pode ter consistência; tudo o que facilmente cede em todos os sentidos; tudo o que facilmente se divide e dispersa; tudo o que se une e junta facilmente; tudo o que facilmente adere a outro corpo e molha; tudo o que facilmente se reduz a liquido, se antes era sólido. De sorte que se pode predicar e impor a palavra úmido em um determinado sentido, “a chama é úmida”; em outro, “o ar não é úmido”; em outro, “o pó fino é úmido”; e em outro, ainda, “o vidro é úmido”. Daí facilmente transparece que esta noção foi abstraída de forma leviana apenas da água e dos líquidos correntes e vulgares, sem qualquer adequada verificação posterior
Há, contudo, nas palavras certos graus de distorção e erro. O gênero menos nefasto é o dos nomes de substâncias particulares, em especial as de espécies inferiores, bem deduzidas. Assim as noções de greda e lodo são boas; a de terra, má. Mais deficientes são as palavras que designam ação, tais como: gerar, corromper, alterar. As mais prejudiciais são as que indicam qualidades (com exceção dos objetos imediatos da sensação), como: pesado, leve, tênue, denso, etc. Todavia, em todos esses casos pode suceder que certas noções sejam um pouco melhores que as demais, como ocorre com as que designam coisas que os sentidos humanos alcançam com mais freqüência.
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