XLVI
O intelecto humano, quando assente em uma convicção (ou por já bem aceita e acreditada ou porque o agrada), tudo arrasta para seu apoio e acordo. E ainda que em maior número, não observa a força das instâncias contrárias, despreza-as, ou, recorrendo a distinções, põe-nas de parte e rejeita, não sem grande e pernicioso prejuízo. Graças a isso, a autoridade daquelas primeiras afirmações permanece inviolada. E bem se houve aquele que, ante um quadro pendurado no templo, como ex-voto dos que se salvaram dos perigos de um naufrágio, instado a dizer se ainda se recusava a aí reconhecer a providência dos deuses, indagou por sua vez: “E onde estão pintados aqueles que, a despeito do seu voto, pereceram?” 13 Essa é a base de praticamente toda superstição, trate-se de astrologia, interpretação de sonhos, augúrios e que tais: encantados, os homens, com tal sorte de quimeras, marcam os eventos em que a predição se cumpre; quando falha o que é bem mais freqüente —, negligenciam-nos e passam adiante. Esse mal se insinua de maneira muito mais sutil na filosofia e nas ciências. Nestas, o de início aceito tudo impregna e reduz o que segue. até quando parece mais firme e aceitável. Mais ainda: mesmo não estando presentes essa complacência e falta de fundamento a que nos referimos, o intelecto humano tem o erro peculiar e perpétuo de mais se mover e excitar pelos eventos afirmativos que pelos negativos, quando deveria rigorosa e sistematicamente atentar para ambos. Vamos mais longe: na constituição de todo axioma verdadeiro, têm mais força as instâncias negativas.
XLVII
O intelecto humano se deixa abalar no mais alto grau pelas coisas que súbita e simultaneamente se apresentam e ferem a mente e ao mesmo tempo costumam tomar e inflar a imaginação. E a partir disso passa a conceber e supor, conquanto que imperceptivelmente, tudo o mais, do mesmo modo que o pequeno número de coisas que ocupam a mente. Contudo, para cumprir o percurso até os fatos remotos e heterogêneos, pelos quais os axiomas se provam como pelo fogo — a não ser que duras leis e violenta autoridade o imponham , mostra-se tardo e inepto.
XLVIII
O intelecto humano se agita sempre, não se pode deter ou repousar, sempre procura ir adiante. Mas sem resultado. Daí ser impensável, inconcebível que haja um limite extremo e último do mundo. Antes, sempre ocorre como necessária a existência de mais algo além. Nem tampouco se pode cogitar de como a eternidade possa ter transcorrido até os dias presentes, posto que a distinção geralmente aceita do infinito, como comportando uma parte já transcorrida e uma parte ainda por vir, não pode de modo algum subsistir, em vista de que se seguiria o absurdo de haver um infinito maior que outro, como se o infinito pudesse consumir-se no finito. Semelhante é o problema da divisibilidade da reta ao infinito, coisa impossível de ser pensada. Mas de maneira mais perniciosa se manifesta essa incapacidade da mente na descoberta das causas: pois, como os princípios universais da natureza, tais como são encontrados, devem ser positivos, não podem ter uma causa. Mas, mesmo assim, o intelecto humano, que se não pode deter, busca algo. Então, acontece que buscando o que está mais além acaba por retroceder ao que está mais próximo, seja, as causas finais, que claramente derivam da natureza do homem e não do universo. Aí está mais uma fonte que por mil maneiras concorre para a corrupção da filosofia. Há tanta imperícia e leviandade dessa espécie de filósofos, na busca das causas do que é universal, quanto desinteresse pelas causas dos fatos secundários e subalternos. 14
XLIX
O intelecto humano não é luz pura, 15 pois recebe influência da vontade e dos afetos, donde se poder gerar a ciência que se quer. Pois o homem se inclina a ter por verdade o que prefere. Em vista disso, rejeita as dificuldades, levado pela impaciência da investigação; a sobriedade, porque sofreia a esperança; os princípios supremos da natureza, em favor da superstição; a luz da experiência, em favor da arrogância e do orgulho, evitando parecer se ocupar de coisas vis e efêmeras; paradoxos, por respeito à opinião do vulgo. Enfim, inúmeras são as fórmulas pelas quais o sentimento, quase sempre imperceptivelmente, se insinua e afeta o intelecto.
L
Mas os maiores embaraços e extravagâncias do intelecto provêm da obtusidade, da incompetência e das falácias dos sentidos. E isso ocorre de tal forma que as coisas que afetam os sentidos preponderam sobre as que, mesmo não o afetando de imediato, são mais importantes. Por isso, a observação não ultrapassa os aspectos visíveis das coisas, sendo exígua ou nula a observação das invisíveis. Também escapam aos homens todas as operações dos espíritos latentes nos corpos sensíveis. Permanecem igualmente desconhecidas as mudanças mais sutis de forma das partes das coisas mais grossas (o vulgo sói chamar a isso de alteração, quando na verdade se trata de translação) em espaços mínimos. 16 Até que fatos, como os dois que indicamos, não sejam investigados e esclarecidos, nenhuma grande obra poderá ser empreendida na natureza. E ainda a própria natureza do ar comum, bem como de todos os corpos de menor densidade (que são muitos), é quase por completo desconhecida. Na verdade, os sentidos, por si mesmos, são algo débil e enganador, nem mesmo os instrumentos destinados a ampliá-los e aguçá-los são de grande valia. E toda verdadeira interpretação da natureza se cumpre com instâncias e experimentos oportunos e adequados, onde os sentidos julgam somente o experimento e o experimento julga a natureza e a própria coisa.
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