NOVUM ORGANUM
Francis Bacon

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA
E O REINO DO HOMEM
LIVRO I - AFORISMOS

Aforismos 33-45
 

XXXIII

Seja dito claramente que não pode ser formulado um juízo corre­to nem sobre o nosso método nem sobre as suas descobertas pelo cri­tério corrente — as antecipações; pois não nos podem pedir o acolhi­mento do juízo cuja própria base está em julgamento.

XXXIV

Não é, com efeito, empresa fácil transmitir e explicar o que pretendemos, porque as coisas novas são sempre compreendidas por analogia com as antigas.

XXXV

Disse Bórgia, da expedição dos franceses à Itália, que vieram com o giz nas mãos para marcar os seus alojamentos, e não com armas para forçar passagem. Nosso propósito é semelhante: que a nossa doutrina se insinue nos espíritos idôneos e capazes. Não faze­mos uso da refutação quando dissentimos a respeito dos princípios, dos próprios conceitos e formas da demonstração.

XXXVI

Resta-nos um único e simples método, para alcançar os nossos intentos: levar os homens aos próprios fatos particulares e às suas sé­ries e ordens, a fim de que eles, por si mesmos, se sintam obrigados a renunciar às suas noções e comecem a habituar-se ao trato direto das coisas.

XXXVII

Coincidem, até certo ponto, em seu inicio, o nosso e o método daqueles que usaram da acatalepsia. Mas nos pontos de chegada, imensa distância nos separa e opõe. Aqueles, com efeito, afirmaram cabalmente que nada pode ser conhecido. De nossa parte, dizemos que não se pode conhecer muito acerca da natureza, com auxílio dos procedimentos ora em uso. E, indo mais longe, eles destroem a autori­dade dos sentidos e do intelecto, enquanto que nós, ao contrário, lhes inventamos e subministramos auxílios.

XXXVIII

Os ídolos e noções falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados não somente o obstruem a ponto de ser difícil o acesso da verdade, como, mesmo depois de seu pórtico logra­do e descerrado, poderão ressurgir como obstáculo à própria instau­ração das ciências, a não ser que os homens, já precavidos contra eles, se cuidem o mais que possam.

XXXIX

São de quatro gêneros os ídolos que bloqueiam a mente humana. Para melhor apresentá-los, lhes assinamos nomes, a saber: Ido/os da Tribo; Ido/os da Caverna; Ídolos do Foro e Ido/os do Teatro. 9

XL

A formação de noções e axiomas pela verdadeira indução é, sem dúvida, o remédio apropriado para afastar e repelir os ídolos. Será, contudo, de grande préstimo indicar no que consistem, posto que a doutrina dos ídolos tem a ver com a interpretação da natureza o mesmo que a doutrina dos elencos sofísticos com a dialética vulgar.

XLI

Os ídolos da tribo estão fundados na própria natureza humana, na própria tribo ou espécie humana. E falsa a asserção de que os sen­tidos do homem são a medida das coisas. Muito ao contrário, todas as percepções, tanto dos sentidos como da mente, guardam analogia com a natureza humana e não com o universo. O intelecto humano é semelhante a um espelho que reflete desigualmente os raios das coisas e, dessa forma, as distorce e corrompe.

XLII

Os ídolos da caverna 10 são os dos homens enquanto indivíduos. Pois, cada um — além das aberrações próprias da natureza humana em geral — tem uma caverna ou uma cova que intercepta e corrompe a luz da natureza: seja devido à natureza própria e singular de cada um; seja devido à educação ou conversação com os outros; seja pela leitura dos livros ou pela autoridade daqueles que se respeitam e admiram; seja pela diferença de impressões, segundo ocorram em ânimo preocupado e predisposto ou em ânimo equânime e tranqüilo; de tal forma que o espírito humano — tal como se acha disposto em cada um — é coisa vária, sujeita a múltiplas perturbações, e até certo ponto sujeita ao acaso. Por isso, bem proclamou Heráclito 11 que os homens buscam em seus pequenos mundos e não no grande ou universal.

XLIII

Há também os ídolos provenientes, de certa forma, do intercurso e da associação recíproca dos indivíduos do gênero humano entre si, a que chamamos de ídolos do foro devido ao comércio e consórcio entre os homens. Com efeito, os homens se associam graças ao discurso, 12 e as palavras são cunhadas pelo vulgo. E as palavras, impostas de maneira imprópria e inepta, bloqueiam espantosamente o intelecto. Nem as definições, nem as explicações com que os homens doutos se munem e se defendem, em certos domínios, restituem as coi­sas ao seu lugar. Ao contrário, as palavras forçam o intelecto e o per­turbam por completo. E os homens são, assim, arrastados a inúmeras e inúteis controvérsias e fantasias.

XLIV

Há, por fim, ídolos que imigraram para o espírito dos homens por meio das diversas doutrinas filosóficas e também pelas regras viciosas da demonstração. São os ídolos do teatro: por parecer que as filosofias adotadas ou inventadas são outras tantas fábulas, produzi­das e representadas, que figuram mundos fictícios e teatrais. Não nos referimos apenas às que ora existem ou às filosofias e seitas dos anti­gos. Inúmeras fábulas do mesmo teor se podem reunir e compor, por que as causas dos erros mais diversos são quase sempre as mesmas. Ademais, não pensamos apenas nos sistemas filosóficos, na universalidade, mas também nos numerosos princípios e axiomas das ciências que entraram em vigor, mercê da tradição, da credulidade e da negligência. Contudo, falaremos de forma mais ampla e precisa de cada gênero de ídolo, para que o intelecto humano esteja acautelado.

XLV

O intelecto humano, mercê de suas peculiares propriedades, facilmente supõe maior ordem e regularidade nas coisas que de fato nelas se encontram. Desse modo, como na natureza existem muitas coisas singulares e cheias de disparidades, aquele imagina paralelismos, correspondências e relações que não existem. Daí a suposição de que no céu todos os corpos devem mover-se em círculos perfeitos, rejeitando por completo linhas espirais e sinuosas, a não ser em nome. Daí, do mesmo modo, a introdução do elemento fogo com sua órbita, para constituir a quaderna com os outros três elementos que os senti­dos apreendem. Também de forma arbitrária se estabelece, para os chamados elementos, que o aumento respectivo de sua rarefação se processa em proporção de um para dez, e outras fantasias da mesma ordem. E esse engano prevalece não apenas para elaboração de teo­rias como também para as noções mais simples.