A.A. AMORIM DA COSTA
A ALQUIMIA EM PORTUGAL

O REI ALPHONSO (1)
 
3. A Ordem dos Cavaleiros do Tosão de Ouro

"Philipe, pela graça de Deus, Duque de Borgonha, de Lothier, de Brabante e de Limburgo; Conde da Flandres, de Arthois, de Borgonha Palatino, de Haynam, de Holanda, de Zelândia e de Namur; Marquês do Sacro Império, Senhor de Friza, de Salins e de Malinas. Faz saber a todos os presentes e vindouros que pelo mui grande e perfeito amor que temos ao nobre estado, e Ordem de Cavalaria, de que desejamos com ardente e singular afeição a honra e crescimento, pela qual a verdadeira fé católica, o estado da nossa mãe a Santa Igreja, e a tranquilidade e prosperidade do interesse público, sejam defendidas, guardadas e mantidas, tanto quanto o podem ser; Nós, para glória e louvor do Todo Poderoso nosso Criador e Redentor, em reverência de Sua gloriosa Virgem Mãe, e para honra do bem-aventurado e glorioso Apóstolo e Mártir Santo André, para exaltação da Fé e da Santa Igreja, e excitação da virtude e dos bons costumes; no décimo dia do mês de Janeiro do ano de nosso Senhor 1429, que foi o dia da solenização do nosso casamento com a muito querida e muito amada companheira Isabel na nossa cidade de Bruges; decidimos criar, e ordenado pelos presentes autos, uma Ordem e fraternidade de Cavalaria, ou amável Companhia de um certo número de Cavaleiros, que desejamos seja chamada a Ordem do Tosão de Ouro, sob a forma, condições, estatutos, maneiras e artigos que se seguem".

Este é o Diploma de constituição da Ordem de Cavalaria do Tosão de Ouro, fundada por Filipe III, o Bom, Duque de Borgonha60.

Nos 66 capítulos que constituem outros tantos artigos sobre a organização da referida Ordem de Cavalaria, e ainda nos 21 capítulos de Adições e nos capítulos sobre o Cancelário (cpp.I-VI), o Tesoureiro (cpp.VII-XI; XXIII-XXV), o Cronista (cpp.XIIXIX; XXVI-XXVIII) e o Rei de Armas (cpp.XV-XXII) da mesma, que se seguem ao referido Diploma, se dá conta dos primeiros membros da Ordem e de todo o cerimonial por que se havia de regular o seu comportamento61.

Nem por isso, logo à partida, se deixam de levantar problemas de vária ordem, já sobre a data da sua fundação, já sobre os verdadeiros objectivos que à mesma presidiram.

Primeiro, a data da fundação. O Diploma de Constituição diz claramente ter sido "o décimo dia do mês de Janeiro do ano de nosso Senhor 1429", dia da solenização, na cidade de Bruges, do casamento de Filipe III, o Bom, com Isabel de Portugal. São, contudo, muitos os historiadores que se referem ao facto dando-o como ocorrido a dez de Janeiro de 1430. A cronologia histórica dos preparos que antecederam o casamento do Duque da Borgonha com Isabel de Portugal, com a embaixada que para esse fim se deslocou a Portugal, tendo partido de Eclusa, na Holanda, a 19 de Outubro de 142862, indica dever tratar-se efectivamente do ano de 1430 e não 1429. António Pereira de Figueiredo explica a discrepância entre as duas datas, fazendo notar que nesses tempos do século XV, como o observa o antiquário Auberto Mireu, Secretário do próprio Duque de Borgonha, vigoravam ainda, na Flandres, dois sistemas de numeração dos anos da era cristã: o galicano, em que os anos se começavam a contar no dia de Páscoa; e o sistema romano ou juliano, em que o mesmo início coincidia com o primeiro de Janeiro, dia da circuncisão de Cristo. Seguindo o sistema galicano, Janeiro de 1430 no sistema romano é ainda Janeiro de 1429 no sistema galicano63.

Corroborando esta explicação, Pinedo y Salazar que na sua História sobre a Ordem do Tosão de Ouro a data como tendo sido criada em Janeiro de 1429, referindo-se à batalha de Nancy em que foi morto Carlos, o Temerário, refere "1476, na nomeação antiga, ou 1477, segundo a moderna"64.

A questão relativa aos verdadeiros objectivos que presidiram à criação da Ordem do Tosão de Ouro é mais delicada e mais dada a especulação. E aqui surgem as possíveis conotações da Ordem com a Alquimia.

O Diploma da Constituição da Ordem fala claramente de três razões que motivaram Filipe III, o Bom, a criar a Ordem:

(i) - honrar os antigos Cavaleiros que por seus altos e nobres feitos mereciam ser recomendados;

(ii) - exercitar em façanhas dignas da Cavalaria os fortes e robustos, capazes de as continuar e, dia a dia, melhorar;

(iii) - permitir aos membros da nova Ordem a prática de nobres virtudes que os tornassem dignos da fama65.

O inesperado da sua criação (embora Georges Chastellain - o célebre historiógrafo da Tosão de Ouro - diga que tal criação fora maduramente pensada pelo Duque de Borgonha, na sua imaginação secreta) e o nome adoptado deram aso à imaginação dos escritores que no dizer de Dutry, arrastados "por estúpidas cavalgadas" lhe atribuíram origens ocultas ou, pelo menos, pouco claras66.

Para uns, a Tosão de Ouro teria sido criada para recordar uma bela jovem de Bruges, de cabelos doirados, tal como a Ordem da Jarreteira fora instituída em honra da bela Condessa de Salisbúria, e a Ordem da Anunciada tivera por origem a galanteria de Amadeu IV, Conde de Sabóia67; para outros, o próprio nome e o símbolo adoptados, o velo de ouro, estariam repletos de elevada carga simbólica e iniciática, denunciando seus verdadeiros intentos e remetendo os objectivos que se propunha muito para além dos expressamente declarados no Diploma de Constituição.

Para os últimos, a disputa começa logo sobre qual seja o velo de ouro que subjaz ao nome adoptado: o de Jasão ou o de Gedeão?

A este propósito, escreveu Duarte Nunes de Leão, na Crónica d'EI-Rei D. João I: "por mais honra da Infanta (D. Isabel de Portugal), no primeiro dia das vodas, instituio o

Duque huma nova Ordem de Cavalleiros, debaixo do patrocínio de Apóstolo Santo André, que chamou do Tusão por a Insígnia de um Vello de lã de ouro, que os Cavalleiros haviam de trazer, não alludindo ao Vello de Gedeão, como os vulgares cuidão, mas ao de Jason, e seus companheiros Argonautas, como se vê da mesma Carta, e Prefação da Instituição da mesma Ordem: por a qual Divisa queria significar a expedição que queria, ou pretendia fazer com seus Cavalleiros para a guerra do Ultramar, à imitação da de Jason"68.

Do mesmo parecer é Guilherme Paradin que nos seus Annaes de Borgonha, afirma que Filipe, o Bom, ao referir-se ao Tosão de Ouro aludia ao que Jasão fora conquistar à Cólquida, salientando, todavia, que nessa referência queria o Soberano "significar apenas a conquista da virtude pela destruição dos monstros dos vícios, que he a em que hum Cavalleiro mais se deve empenhar"69.

De facto, na sua proclamação de 1430, Filipe, o Bom, refere-se claramente, ao velo de ouro de Jasão, apresentando aos Cavaleiros escolhidos, como exemplo, a abnegação dos Argonautas. Jasão para satisfazer à condição que seu tio Pélias pusera para lhe entregar o trono que havia sido de seu pai, deixou a sua pátria, Iolcos, e partiu à conquista do velo de oiro do rei da Cólquida, Eetes, que este conservava suspenso num bosque sagrado, guardado por um dragão que nunca dormia. Acompanhado pelos Argonautas e auxiliado por Medeia, filha do próprio rei Eetes, que com suas artes mágicas adormeceu o dragão, Jasão conseguiu, com grande coragem e pertinácia, superar todas as dificuldades que se lhe depararam; apoderou-se do velo de ouro de Eetes e com ele regressou à sua pátria, trazendo consigo Medeia, como esposa70.

Porém, dez anos mais tarde, em 1440, uma tapeçaria colocada no meio do coro da sala dos Capítulos da Ordem, representa não a história de Jasão, mas a de Gedeão. Nesta altura, o velo de ouro, símbolo da Ordem, seria uma alusão ao velo de Gedeão, Juíz do Povo de Israel (Jz., 6-8), de que Deus se serviu para indicar que o assistia na sua luta pela libertação de Seu Povo do jugo dos Madianitas: o velo de lã usado por Gedeão humecedeu-se de orvalho enquanto a terra em redor ficou seca; e ficou seco, enquanto, em redor, tudo o mais se tornou húmido71.

Nesta linha, Juan Francisco Pugnatore na sua obra sobre a origem da nobilíssima Ordem do Tosão de Ouro, publicada em Palermo, em 1590, dedica toda a Parte I, ao verdadeiro e misterioso velo de Gedeão, para concluir que tal como Gedeão, também os Cavaleiros da Ordem do Tosão de Ouro haveriam de vencer, nas suas façanhas, assistidos pela força de Deus que lhes conferia o velo de ouro que eles próprios traziam consigo61d.

Da mesma opinião, Francisco Hareu, nos Annaes dos Duques de Brabante, ao tratar de Filipe, o Bom, defende que o Velo que constituía a Insígnia da Ordem pretendia ser uma imitação do velo de Gedeão, aduzindo como prova disso "huns antiquissimos pannos d'Arraz, que tinham sido do mesmo Duque, e todos os anos se penduravam no templo de Santa Gudúla, em Bruxelas, coalhados daquelles mysteriosos Vellos, índices da divina eleição e da victória futura"72.

Não podemos deixar de referir aqui a opinião de André Favyn que distanciando-se das duas posições que acabámos de assinalar, defende que na mente de Filipe, o Bom, não era o Tosão de Ouro mais que "um sinal ou monumento, de que a maior renda do Duque de Borgonha consistia nas muitas lans, que ele tirava dos seus Estados de Flandres"73. Em 1453, em Lille, durante o célebre banquete de Faisão, num cerimonial em que o Rei de Armas da Tosão de Ouro se apresentou com um faisão vivo, ornado com um belo colar de ouro totalmente guarnecido de pérolas e pedras preciosas, o Duque de Borgonha jurou que iria combater os infiéis, arrastando, em igual juramento, todos os membros da Ordem para uma nova cruzada contra o Grande Turco.

Para cumprir o seu juramento, o Duque deslocou-se à Suíça, à Suábia, à Baviera, à Austria, tudo fazendo para organizar a referida cruzada, arrastando os príncipes alemães para uma vasta confederação. Porém, todo o entusiasmo dos anos 1454-1456 começou a desfalecer, e em 1460-1461, tudo parecia parado. Com a recusa de Luís XI em participar na referida cruzada, todo o projecto de Filipe, o Bom, ruiu, permitindo que "a fé cristã fosse ainda mais enfraquecida e menosprezada pelo Grande Turco"74.

É inegável que a Tosão de Ouro, para além do seu ideal de Cavalaria e os seus projectos religiosos, se propunha objectivos políticos, procurando reforçar o poder de seu criador e fundador, congregando à sua volta os nobres dos países submetidos à sua autoridade, com particular importância para as lutas que travava contra as comunas de Bruges e Gand, tentando acabar com a sua autonomia.

Será que o ideal de Cavalaria que animava os membros da Tosão de Ouro se confinava estritamente aos objectivos religiosos e políticos que acabámos de referir?

O contéudo e a significação alquímica do mito de Jasão e dos Argonautas que partiram à busca do velo de ouro da Colquídia tem sido realçado por vários estudiosos da Alquimia.

Já no século IX, o grego Suídas, no seu Lexicon, propusera uma interpretação alquímica para Jasão75. Em 1730, na Alemanha, Ehrd de Naxágoras escrevia um tratado de alquimia a que dava o título de Aurum Velus, oder Goldenes Vliess76. Uns anos depois, em 1749, também na Alemanha, Hermann Fictuld publicava, com o mesmo título, novo estudo sobre alquimia, nele expondo de modo preciso e sistemático, o simbolismo alquímico do périplo de Jasão, com uma análise do conteúdo e significado alquímico dos cenários próprios da Ordem do Tosão de Ouro fundada por Filipe, o Bom77.

Hermann Fictuld refere-se ainda a uma re-edição, em Leipzig, de um livro de 1617, com o mesmo título78. Posteriormente, muitos outros estudiosos da Alquimia, incluindo Dom Pernéty79, se interessaram também pelo conteúdo hermético da conquista do Tosão de Ouro.

Referindo-se à Ordem do Tosão de Ouro, Hermann Fictuld defende que ela foi concebida por verdadeiros Adeptos que viviam no palácio ducal de Filipe III, ou com ele mantinham intensas relações, com grande dedicação ao serviço da Arte Hermética. Entre eles se contariam, v.g., Pico de Mirandola, Cosme de Médicis, Theodorus de Gaza e outros. Para provar a sua asserção, Fictuld refugia-se no testemunho de Cornelius Agrippa que em carta dirigida de Tollen a Tritémio, em 1509, atribui a Filipe III e seu filho Carlos, o Temerário, a posse de segredos divinos, afirmando ser disso testemunha pessoal: "eu próprio pude ainda ver, em Dijon, o laboratório e os fornos no castelo ducal, e mostraram-me lá alguns escritos e caracteres químicos sobre as paredes que segundo se diz, foram escritos pelos próprios duques"80.

Segundo Cornelius Agrippa, Filipe, o Bom, teria criado a Ordem do Tosão de Ouro precisamente para honrar os santos mistérios alquímicos. O simbolismo de todo o ritual prescrito para os usos e cerimónias da Ordem é analisado por Fictuld como dando o melhor suporte ao testemunho de C. Agrippa.

De acordo com as primeiras Ordenanças, a Ordem deveria realizar anualmente o seu Capítulo Geral, no dia de Santo André, em Dijon81. A ele deveriam comparecer todos os Cavaleiros seus associados. Em caso de impossibilidade, por doença ou guerra, deveriam fazer-se representar por algum dos presentes. Mais tarde, dado o rigor climatérico do dia em que a Igreja comemora a festividade de Santo André, sobretudo para os mais velhos, com o incómodo que daí adivinha para aqueles que se tinham de deslocar de países muito distantes de Dijon, a realização do Capítulo Geral passaria a ser só de três em três anos, e seria transferida para o segundo dia do mês de Maio82.

Esta reunião dos Cavaleiros da Ordem do Tosão de Ouro, em Capítulo Geral, decorria toda ela sob o patrocínio de Maria, Mãe de Deus, e de Santo André, Apóstolo e Mártir. Fictuld refere-se ao possível esoterismo deste duplo patrocínio nestes termos: como a matéria-prima da Grande Obra está escondida aos olhos dos ignorantes, assim Maria, pela sua genealogia princesa de casa real, nasceu como filha pobre de Joaquim. E, como símbolo de Eva, ela representa a água que escorre, como de uma nascente, atraindo a si as emanações e exalações dos astros e das regiões superiores, que a tornaram o receptáculo digno do Rei dos reis, o menino-Deus; ela é, por isso, a figura e a imagem por excelência da matéria-prima, do Enxofre ou semente lunar em que se banha o Rei, da água misturada com o fogo, da terra fértil, contendo em si o fogo e o sal capazes de dissolver todas as virtudes solares, enaltecendo-as até à máxima perfeição83.

Por sua vez, André, o nome do padroeiro, significa etimologicamente "pedra de esmeralda"; e foi Santo André quem evangelizou o local onde Jasão foi buscar o Tosão de Ouro com os seus Argonautas84.

De notar, ainda, que ao festejarem-no, os Cavaleiros da Ordem do Tosão de Ouro se vestiam de negro, a nigredo da matéria-prima. De facto, no primeiro dia das festas em que se traduzia a celebração do Capítulo Geral, na sua visita obrigatória ao Soberano, os Cavaleiros vestiam-se de púrpura; no segundo, comemorando Santo André, vestiam-se, como acabámos de referir, de negro; e, no terceiro, festejando os esplendores da Mãe de Deus, vestiam-se de branco; o vermelho era a cor do hábito que usavam nos outros dias do ano85.

Púrpura é a cor usada pelos penitentes que com jejum e oração se purificam, antes de iniciarem a sua participação em qualquer grande celebração de comunhão com o divino; preparados, transformam-se durante a própria celebração: começam com o negro; do negro passam ao branco, e deste ao vermelho. Esta é, precisamente, a sequência cronológica das cores do processo alquímico, a sequência de cores sempre afirmada para os espantosos mistérios da Grande Arte; o negro - o branco - o vermelho (nigredo, albedo, rubedo). Na preparação da Grande Obra, a matéria-prima começa por apodrecer, sujeita a total putrefacção, tornando-se negra; com o calor a que é sujeita, de seguida, torna-se branca, a cor da luz, da prata, da vida, do caos que em si contém a matéria-prima; e sob a acção continuada do fogo secreto dos Filósofos, o branco da perfeição torna-se vermelho.

Por outro lado, impõe-se notar que a insígnia distintiva da Ordem, pela qual os seus Cavaleiros seriam reconhecidos em qualquer parte, era um colar de ouro composto por oito elementos em ouro maciço, cada um deles revestido por duas pedras de fuzil em aço. Dele pendia o sinal da Ordem, uma medalha revestida dum velo de ouro (o Tosão de Ouro), com a divisa do Grão-Mestre86.

Todos os Cavaleiros da Ordem deveriam trazer obrigatoriamente esse colar, sob pena de serem multados; e a ninguém mais era permitido usá-lo. Em batalha, o colar poderia ser usado sem o velo pendente. Quando danificado, deveria ser prontamente reparado pelo ourives; e durante o tempo da reparação, estaria o Cavaleiro dispensado do seu uso, sem pena de multa. Não deveria o referido colar ser adornado com quaisquer jóias, nem outros ornamentos; nem poderia ser vendido, dado ou alienado, fosse qual fosse a necessidade ou causa. Se algum dos cavaleiros o perdesse, deveria arranjar outro a suas expensas; se dele fosse despojado em batalha, o Soberano deveria providenciar para lhe dar outro87. Em caso de morte ou expulsão da Ordem, deveria o colar ser restituído ao Tesoureiro da mesma, no prazo de três meses88.

No velo pendurado no colar, viu Hermann Fictuld o símbolo do rolo, feito de pele de carneiro, sobre o qual os antigos escreviam, em cor de ouro, entre outras altas ciências, a arte da crisopeia89.

Com o colar de ouro de que pendia o velo, os cavaleiros da Ordem do Tosão de Ouro usavam ainda, sobre o peito, uma estrela de seis pontas, formada por dois triângulos invertidos, um símbolo alquímico elementar, com duplo sentido, pois que nela se encontram representados, simultaneamente, os quatro elementos, e o casamento da água (triângulo de vértice para baixo) com o fogo (triângulo com vértice para cima). Para os alquimistas, ela é a estrela flamejante do Azoth, "o mercúrio dos filósofos", com o Ignis, o fogo que tudo muda, de acordo com o clássico aforismo "ignis mutat res"90.

Filipe III, o Bom, fundador da Ordem do Tosão de Ouro, foi seu Grão-Mestre até à sua morte, ocorrida em 15 de Junho de 1467. Sob a sua soberania, a Flandres tornou-se o primeiro condado da Europa; todos os demais reinos de então, eram menos influentes e menos ricos91. Um relato do Conde de Laborde é bem explícito: "vimos os armários sucumbirem ao peso da baixela de ouro e prata; os guarda-jóias das senhoras estavam cheios de valores sem conta e os tesouros das Igrejas regurgitavam de vasos sagrados"92. Por sua vez, Olivier de la Marche refere-se ao tesouro deixado por Filipe, o Bom, calculando-o em "dois milhões de ouro só em bens móveis; 400 mil escudos em ouro, 72 mil marcos de prata em baixela, ricas tapeçarias, anéis e baixela de ouro ornada com pedras preciosas, e uma biblioteca ricamente guarnecida e mobilada"93.

Nele, "todos os artistas, pintores, cronistas, impressores, encontraram um protector sem igual"94. No Palácio ducal vivia-se em grande fausto e as festas eram sem número e de um esplendor nunca visto, rivalizando com o fausto das festas com que se celebrou, em Bruges, em Janeiro de 1430, o casamento do soberano com Isabel de Portugal. Lettenhove, no seu livro sobre a Tosão de Ouro, descreve estas festas com verdadeiro fascínio e deslumbre, chamando a si o testemunho de grande número de autores que sobre as mesmas escreveram95. Durante elas "as pérolas, as esmeraldas, as safiras, os rubis, as pedras preciosas, os bordados de ouro e de prata abundavam, qual chuva de estrelas, sobre os vestidos de gala, os mantos de renda, os sapatos de bico revirado, os toucados e os cónicos crescentes dos chapéus"96, e "nunca se viram tão ricos vestidos feitos de tecido recoberto de ouro e jóias"97.

Ao longo de toda a obra, a riqueza da cidade de Bruges e o fausto em que vivia a corte de Filipe, o Bom, são, uma e outra, contrapostos por Lettenhove com a riqueza e a opulência de que gozava a própria Ordem do Tosão de Ouro, ao tempo de seus primeiros Grão-Mestres. Vista como "uma imagem da prosperidade das comunas"98, ela era, aos olhos de seus próprios membros "a de maior expansão, a mais permanente e a mais ilustre", "toda de ouro, sem mistura de outros metais, e toda gloriosa", segundo as palavras de seu Cancelário no Capítulo Geral de 146899.

Perante tão grande fausto, a pergunta fica naturalmente no ar: donde vinha a Filipe, o Bom, e à Ordem por ele fundada tão grandes riquezas?

A Filipe, o Bom, sucedeu seu filho, Carlos, o Temerário, que viria a ser eleito Grão-Mestre da Ordem do Tosão de Ouro no Capítulo Geral realizado em Maio de 1468, conservando-se no exercício do cargo até Janeiro de 1476.

A qualidade de Grão-Mestre não isentava o Soberano do exame da sua conduta por parte de seus confrades nos Capítulos Gerais da Ordem, onde, de acordo com os Estatutos se procedia, sistematicamente à análise da conduta de cada um dos membros. Sem distinção, a conduta irrepreensível era objecto de louvor, como a conduta menos digna era objecto de censura, fosse quem fosse o associado em causa, do mais novo ao Grão-Mestre. Faltas, punições e altos feitos de cada um, tudo era meticulosamente registado pelo Cronista da Ordem.

Logo em 1468, Carlos, o Temerário, foi objecto, por parte do Capítulo Geral, de seis repreensões que acabariam por ter plena justificação nos acontecimentos que se lhe seguiriam: foi repreendido, nomeadamente, por arrastar facilmente o seu povo para a guerra; por não ser devidamente ponderado nas palavras que dirigia a seus súbditos e príncipes; e por não dar suficiente atenção aos conselhos que lhe dirigiam amigos idóneos e sagazes.

Cinco anos depois, em 1473, o Capítulo Geral voltava a admoestá-lo, quase na íntegra, sobre o mesmo tipo de conduta que todos tinham por reprovável . Todavia, a emenda cabal nunca viria a acontecer. Uma fogosidade indomável e um carácter pouco tratável foram seu apanágio até ao último momento, em 1477, morto às mãos das tropas suíças do duque de Lorena, durante o cerco de Nancy, após um reinado de lutas incessantes, contra Luís XI, numa guerra de fogo e sangue, com a espada numa das mãos e o archote, na outral00. Para manter esta guerra sem tréguas, Carlos, o Temerário, dispunha de um sistema de milícias feudais que viviam em suas próprias casas, acrescidas de numeroso contingente de ingleses, italianos e outros estrangeiros que formavam um exército bem disciplinado e bem apetrechado, com uma artilharia que superava de longe a de qualquer outro soberano de então, espalhando à sua volta desafeição e terror que por todos o tornavam temido, dando plena justificação ao epíteto que a História lhe atribuiu. Seu desejo sempre foi tornar-se o Soberano de uma grande Monarquia, num reino feito à custa de muitas possessões do próprio Rei de quem era vassalo, Luís XI, e englobando, ainda, parte do vale do Reno, da Suíça, da Alemanha, do reino Milanês, e também territórios que era sua intenção conquistar aos Turcos. Para o efeito, não se poupou a despesas; com seu exército, dispendeu quantias fabulosas.

Para além de fogoso, audaz e sem piedade na guerra, Carlos, o Temerário, era um homem instruído e trabalhador; falava cinco línguas, e sabia a fundo latim, coisa rara entre os príncipes do seu tempo. Generoso para com os pobres, gostava de vestir luxuosamente a ponto de ser como o refere o historiador Filipe de Comins que com ele conviveu antes de ter sido conquistado para as fileiras de Luís XI, em 1472 - verdadeiramente perdulário em seus hábitos, onde a devoção sempre andava de mãos dadas com a pompa. "Aplicado a toda a sorte de leituras, apaixonado pela Antiguidade e pela Cavalaria", Carlos, o Temerário "cultivava o gosto da grandiosidade, nos seus costumes''101.

Uma vez mais, a questão se levanta: donde vinha ao Soberano da Flandres tão grande riqueza para fazer face a tão avultadas despesas? A base dos rendimentos que se lhe conhecem não é suficiente para uma explicação completamente satisfatória.

Confrontados com o já citado testemunho de Cornelius Agrippa em que atribui a Filipe III e a Carlos, o Temerário, a posse de segredos divinos, com " alguns escritos e caracteres químicos sobre as paredes (do palácio ducal) que, segundo se diz, foram escritos pelos próprios duques"80, há quem busque a explicação para tão grande riqueza admitindo que um e outro possuíam a Pedra Filosofal, de que era fiel depositária a Ordem do Tosão de Ouro à frente da qual se encontravam.