"Somos como bonecos animados que saltaram da borda dum precipício e, ainda suspensos no ar, subitamente se aperceberam de que por baixo está o abismo. É esta a 'crise' da pós-modernidade, e foi a tecnologia que a provocou" . A impostura pós-moderna corrompe o princípio institucional e a própria ideia de montagens simbólicas. Vivemos entre a apologia da condição pós-moderna (Lyotard), um pós-modernismo duro e um niilismo académico mais conforme aos ideiais gestionários do nosso tempo - do pensamento médio, pensamento anti-fundamentos, característico da derrocada simbólica contemporânea . A generalização da mediação faz-nos sair do espaço da palavra (e da escrita). O ciberespaço corresponde a esta experiência (Benedikt, 1993, pp. 111-207). Não podemos esquecer, ao abordar a relação entre a tecnologia e a natureza, que as ciências do homem sairam (como, de resto, as ciências da matérias e as disciplinas lógico-matemáticas) da matrix do texto filosófico em vias de emancipação do texto teológico. Também não podemos identificar as novas tecnologias com as antigas técnicas. Afinal, a informação e a comunicação têm pouco a ver com a mecanização. O homem da época pós-industrial tem uma identidade (ID) computurizada. Na era da máquina sentia-se isto como um perigo, enquanto que hoje não passa de um jogo. Os efeitos da tecnologia aparecem como fonte de "desordem" relativamente ao equilíbrio anterior . Mas, mesmo aqui, a liberdade corresponde a libertação e não a extermínio , mesmo que por vezes as máquinas se infiltrem em ambientes sagrados e rituais. Hoje como ontem, o texto não é mais do que um recipiente vazio, um fóssil. Só a carne do leitor o reanima, o ressuscita. O espaço do sentimento não pré-existe à leitura; só percorrendo-o é que o produzimos e actualizamos. Em última análise, a rede também é um órgão sem corpo: "A carne tem de ser acrescentada pelos utilizadores, que, de uma forma ou de outra, a emprestam, com a sua identidade social, com os seus corpos de dados à realidade comercial e governamental da rede, sendo explorados pela classe virtual ou criando um multiverso de realidades individuais. Neste multiverso, cada um tem o seu planeta, mas esses planetas não estão organizados ao estilo mecanicista de Newton. Sobrepõem-se no tempo e no espaço e todos eles podem ter nomes muito semelhantes como 'Terra', 'Vénus' , e 'Marte'" . O hipertexto traz consigo o sonho de uma nova cultura - virtual, conectivista, democrática: sê ubíquo sem qualquer intermediário como a linguagem dos anjos. Ted Nelson, da Autodesk, Inc., iniciou a sua comunicação na Virtual Reality 91 com esta linha: "Reunimo-nos aqui para celebrar a nova igreja da Realidade Virtual." Como argumenta Virilio as três revoluções (transportes, transmissões, transplantes) levaram a um fundamentalismo técnico, um "ciberculto": "o homem moderno que matou o Deus judaico-cristão, o Deus da transcendência, inventou um deus-máquina, um deus ex machina" . Habitar este imaginário colectivo em tempo real será o desafio do futuro. Marshal McLuhan esperava da ideia da "aldeia global" mais do que um novo tipo de ambiente de trabalho pós-industrial do tipo "Ego-camp" vs "Eco-camp". McLuhan via a tecnologia como extensão do corpo, uma vez que tínhamos ultrapassado a barreira limitadora da pele. Em The Skin of Culture Kerckove exprime a convicção de que a realidade virtual está prestes a revolucionar o nosso meio de comunicação mais menosprezado, o tacto, transformando-o numa extensão cognitiva da mente. Há liberdade e há prisão: há o perigo da superficialidade. Mas os manuais também são inimigos da educação, instrumentos de promoção do dogmatismo e da aprendizagem trivial . Não podemos esquecer que "o homem eléctrico é um 'super-anjo'. Quando se telefona, não se tem corpo. E no entanto a nossa voz lá está, nós e as pessoas a quem falamos estão aqui, no mesmo instante. O homem electrónico não tem essência carnal. Está literalmente desencarnado" . As novas tecnologias são uma forma de evadir-se do mundo da imprensa para uma nova oralidade. "Está-se ali sentado e é uma maçada. Tem-se este estúpido ratinho que exige uma das mãos e os olhos. E é tudo. E o resto de nós?...É enclausurante" . A luta fundamental da era moderna é encontrar uma forma de estabelecer verdades universais num mundo que nos confronta com mútliplos pontos de vista diferentes, em constante mudança. Contudo, no suprematismo de Malevich, isto é, o espaço projectado pela perspectiva era encarado como enclausuramento e não libertação, pois o princípio subjacente à perspectiva era o da da reversibilidade de todos os pontos de vista. O princípio da perspectiva não funciona na contemplação da estrutura fragmentária da experiência moderna. A metáfora do ciberespaço dá ênfase à qualidade imersiva da experiência - muito superior à da leitura ou do visionamento cinematográfico - porque se pretende que mergulhemos nessa realidade. Enquanto os filmes admitem a ilusão da participação, o ciberespaço é definido por ela. Desde a invenção dos primeiros jogos de computador, a aventura com base em texto e a guerra espacial gráfica, que se fixou o modelo de um jogador desencarnado e simulado a movimentar-se através do espaço cartesiano. De facto, os teóricos da cibernética recorrem hoje à obra de Descartes, não apenas para o que agora se denomina espaço cartesiano, mas também para a noção da cisão entre sujeito e corpo. Kathy Acker tem sido desde há anos uma das figuras maiores da literatura pós-moderna. O seu mais recente romance Pussy, King of the Pirates reescreve o novo mito de Tresure Island para a idade do corpo digital. Com uma sensibilidade literária que é plenamente hipertextual, Kathy Acker estabelece o código para o século XXI. Os requisitos práticos do ciberespaço significam ainda visionar um écran, quer ele esteja pousado numa mesa ou afivelado à cabeça da pessoa a uma distância mínima dos olhos. Estar de fora a contemplar uma imagem enquadrada dá a esta "cibercabeça" a mesma sensação de controlo que a perpectiva renascentista dá a quem contempla uma obra de Leonardo da Vinci. Ainda se trata do espaço cartesiano, e ainda faz do observador centro de todas as coisas. Como se diz da beleza, o poder está no olhar de quem contempla. O mito ciberespacial da comunicação fluida, desencarnada e descentrada é desmentido efectivamente pela persistência dum sistema visual centenário que marca uma nítida oposição entre o eu e o outro. A estrutura do ciberespaço não é, afinal, dominada pela literal igualdade destrambelhada, pressuposta pelos seus adeptos mais fanáticos, mas sim pelas mesmas hierarquias com que convivemos há séculos. Estar sem corpo não é nem universalmente simples nem universalmente desejável . O uso ideológico da tecnologia não só intervém no nosso meio ambiente natural como afecta o nosso eu físico e psicológico. Há quem ainda tenha uma espécie de perspectiva mitológica em relação à máquina. Muitos dispositivos tecnológicos (máquinas para exercício físico, equipamento médico, armas, ou gravadores de vídeo) possibilitam a reformulação e reinvenção da nossa consciência das funções do corpo. Nesses meios artificiais e num espaço cultural diferente, o impacto da tecnologia sobre o nosso corpo modifica a percepção da cosnciência do eu. Consequentemente, o que denominamos o nosso "corpo tecnologizado" tornou-se parte do nosso psiquismo quotidiano. Ao fim e ao cabo, o corpo pós-humano é uma tecnologia, écran ou imagem projectada; é um corpo sob o signo da sida. Um corpo contaminado, moribundo, um tecnocorpo. Os corpos pós-humanos já não pertencem à história linear: " os corpos pós-humanos não são escravos de discursos magistrais mas surgem a partir de nódulos onde se intersectam corpos, corpos de discurso, e discursos de corpos, impedindo qualquer distinção fácil entre actor e palco, entre emissor/receptor, canal, código, mensagem, contexto" . Kendrick, no seu artigo sobre o ciberespaço e o real tecnológico, escreve que o processo da subjectividade não pode separar-se de uma experiência corporizada, o que implica a recusa, em termos de fetiche, tanto do real tecnológico como da idealização do eu desencarnado . Um artigo de Michael Heim intitulado "The Erotic Ontology of Cyberspace" começa por afirmar que o ciberespaço (sinónimo de RV) é um "laborarório metafísico, uma ferramenta para examinar o nosso próprio sentido de realidade" . Segundo Heim, os computadores forneceram o "hardware"que permite levar às suas últimas consequências o conceito platónico da pulsão erótica desencarnada, tornando possível que os humanos abandonem os seus corpos "de carne" e existam num domínio superior de ideias abstractas. A tecnologia tem a capacidade de reforçar uma sociedade civil, mas tem também a capacidade de uma vigilância sem precedentes e pode ser utilizada para obstruir e manipular a informação, bem como para dar acesso a esta. Abandonada ao mercado, que é onde o "Senhor Mundo" deixa a tecnologia, os monstros podem acabar por adquirir um domínio livre e altamente rentável Na fronteira electrónica em que reside a lei, como prova o exemplo dado por William Mitchell: se se tiver uma conta e se obtiver o NIB correcto, então marque-se o número (de outro modo não se tem entrada e pode-se inclusivamente ficar com o cartão confiscado). Assim, o controlo do código é poder. As bases de dados, conforme sustenta Mark Poster, funcionam como um super-Panopticon. Poderia imaginar-se que a tecnologia da microelectrónica é um meio de registo e vigilância do Pnopticon (Provenzo, 1992). Foucault critica obviamente a tecnologia do Panopticon, ao afirmar que cada indivíduo "é visto, mas não vê, é objecto de informação, mas nunca sujeito da comunicação" (1979, p. 200). "Tal como a prisão, as bases de dados trabalham contínua, sistemática e subrepticiamente, acumulando informação acerca dos indivíduos e organizando-as em perfis...As bases de dados 'vigiam'-nos, dispensando os olhos dos guardas da prisão, e fazem-no com muito maior rigor e perfeição do que qualquer ser humano" . A unidade orgânica das eras pastoris foram substituídas na era da máquina pela fragmentação individualista da competição mútua. A comunicação electrónica anula sistematicamente os pontos fixos, os fundamentos que foram essenciais para a teoria moderna: a TV, os dados de base e a escrita computurizada. A televisão interactiva é um poderoso instrumento de vigilância: à medida que os consumidores informam as redes de vendas do que pretendem comprar e informam os bancos de como devem gastar-lhes o dinheiro, ou informam quem faz sondagens daquilo que pensam sobre o aborto, aqueles que recebem essas informações obtêm acesso a um extenso catálogo de referências acerca dos hábitos, das atitudes e dos comportamentos privados dos consumidores. Os cépticos sublinham a natureza sistémica das novas tecnologias e insurgem-se contra aquilo que consideram um domínio tecnológico das máquinas sobre os seres humanos: "Abdicámos do controlo, que, no caso do computador significa que podemos, sem excessivos remorsos, perseguir objectivos desaconselháveis e até desumanos, só porque o computador os pode realizar" .
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