PORTUGAL
4. O QUE É O HIPERTEXTO?

Em 1598 Agostino Ramelli apresentou em Le diverse et artificioses machines uma roda de livros. O engenho é uma nora em que cada calha contém um livro aberto. O leitor, sentado diante da nora, pode passar rapidamente de um texto a outro com a ajuda de engrenagens que Ramelli descreve com detalhe . Em 1945 Vannevar Bush expõe o Memex na revista Atlantic Monthly. Com a ajuda de engrenagens, mas também com motores, superfícies translúcidas, células fotoeléctricas e microfilmes, Bush concebe um dispositivo que permita ao leitor conectar documentos distintos, com nexos que, uma vez activados, produzem a aparição no écran dos documentos vinculados. Hoje, qualquer utilizador do Internet, sentado diante de um computador, salta de um documento digitalizado a outro mediante um clic no écran, qualquer que seja a distância que separe Ramelli e Bush.

O hipertexto não é particularmente novo. As suas origens remontam aos anos cinquenta. Vannevar Bush propôs uma máquina Memex, na qual poderia armazenar uma biblioteca de informação científica que poderia ser procurada, depois, de forma hipertextual. Um conceito pode sugerir um outro e por aí adiante, com consequências que podem ser seguidas a bel prazer. O conceito de hipertexto tem claramente a ver com a ideia de associação que V. Bush explora. Em 1945 escreveu: "o espírito humano...funciona por associação. Pegando numa coisa, instantaneamente salta para associação de ideias, de acordo com qualquer teia intrincada de sequências que estão armazenadas no cérebro" . Portanto, o hipertexto funciona por analogia ou por associação de ideias como o pensamento humano. No papel, o género de texto que mais se aparenta com o hipertexto seriam o dicionário e a enciclopédia, ou qualquer outra obra que disponha de um sistema elaborado de referências. Deste modo, em vez de ler o texto de forma sequencial e linear, o leitor avança por saltos, passando de uma entrada a outra, de acordo com as pistas oferecidas e seguindo o encadeamento das suas ideias. A noção de hipertexto tem uma proveniência informática, designado ideias interligadas, associações sobre um fundo electrónico. Em certo sentido todos os sistema de computação são hipertextuais. Um hipertexto é uma rede complexa de elementos textuais: é composto por unidades (lexias) que podem identificar-se com páginas, parágrafos, secções, ou volumes. As lexias são ligadas por "elos", que funcionam como notas de rodapé que automaticamente recolhem o material a que se referem . O termo hipertexto designa um sistema de textos electrónicas ligados por tiras de software. Confluem neste termo conceitos tão distantes como redes neuronais, classes abertas, álgebra de pensamento (Hjelmslev), plausibilidade, arborescência, fascínio do caos. A ideia nasceu das experiências de Douglas Englebart, da Universidade de Stanford, e retira a sua designação dos trabalhos de Theodor H. Nelson (1965). "Subitamente, toda a gente anda a falar do hipertexto. Ouvem-se comentários de todos os sectores. Num congresso realizado em Março de 1987 enquanto passeava pelo átrio chegou-me aos ouvidos nove vezes a palavra hipertexto...Isto diverte-me e acho-o um tanto ou quanto irónico. Cunhei o termo há mais de vinte anos, e nas décadas subsequentes fiz muitas conferências e escrevi numerosos artigos a pregar a revolução do hipertexto: a dizer às pessoas que o hipertexto seria a vaga do futuro, o próximo estádio da civilização, o próximo estádio da literatura e uma força clarificadora na educação e nos campos da técnica, bem como da arte e da cultura. E o mesmo aconteceu com ´hipermedia´" .

Theodor Nelson consagrou a sua vida profissional à realização daquilo que baptizara - à imagem da visão utópica de Colerige - como O Projecto Xanadu: o desenvolvimento de software e de dispositivos que facilitariam a criação de bancos de dados hipertextuais imensos, que geririam esses bancos de dados, tanto do ponto de vista intelectual como material. H. Nelson dá-nos uma definição de hipertexto que se tornou inultrapassável: "escrita não sequencial, com elos controlados pelo leitor" . A palavra hipertexto foi cunhada por Nelson e publicada numa conferência proferida num congresso nacional da Associação de Maquinaria Informática em 1966. Além de projectar um instrumento de escrita não sequencial, Nelson propunha um dispositivo denominado "listas de fecho de correr", nas quais elementos de um texto estariam ligados a elementos com eles relacionados ou a eles idênticos de outros textos. A sua grande inspiração foi imaginar um programa de computador que pudesse acompanhar todas os percursos divergentes do seu pensamento e da sua escrita. A este conceito de escrita ramificada, não linear, deu Nelson o nome de hipertexto.

Literary Machines não é um livro sobre o hipertexto, é já um hipertexto. Nelson teve um sonho chamado Xanadu e esse sonho resultou naquilo a que Gary Wolf chamou "o grande sonho pirata". Xanadu, um sistema de publicação de hipertexto global, é a mais longa história de vaporware na história da indústria informática...Xanadu pretendia ser uma biblioteca universal, um instrumento de publicação de hipertexto mundial, um sistema para solucionar questões de direitos de autor e um forum meritocrático para discussão e debate .

Por volta de meados da década de 1960 a Pedagogia apoiada por computadores (CAI) estava a tornar-se a grande moda nos círculos de tecnologia educacional. Ia ser a tecnologia que revolucionaria a educação. Essa pedagogia usava os mesmos conceitos que nós agora associamos ao hipertexto, mas em contexto pedagógico. Uma unidade pedagógica seria apresentada, com uma pergunta a seguir. O passo subsequente do texto que o estudante veria dependia da sua resposta a essa questão .

Podemos definir o hipertexto como um sistema interactivo que permite construir e gerar laços semânticos entre objectos reconhecíveis num conjunto de documentos polissémicos. De maneira mais precisa, fala-se de hipertexto quando os objectos polissémicos são elementos de texto e de hipermedia quando se trata de objectos no sentido mais geral, por exemplo imagens animadas a duas ou três dimensões, sequências de imagens, sequências sonoras e, evidentemente, textos (Cf. entrada da Ency. Univ.).

No hipertexto electrónico, cada bloco do texto no ecrãn do computador contém elementos interactivos inseridos - um ícone, uma palavra ou frase, ou um significado oculto que o leitor descobre, por vezes por tentativas. Ao premir o cursor, que chama um elemento interactivo, surge outro bloco de texto, que, por seu turno, tem outros elos que dele partem. O texto não existe como páginas enquadradas numa sequência linear, mas sim como uma rede de ecrãs que o leitor activa a seu bel prazer. A noção de dispositivo convém aqui perfeitamente para designar a matriz da significância, como equivalente do termo enunciação.

O carácter não linear do hipertexto há-de entender-se no sentido da direcção determinada ou contingente das palavras conforme se lêem ou se ouvem, algo que tem que ver com aquilo a que os físicos chamam “simetria” ou “reversibilidade”. As palavras têm que ser lidas uma depois da outra e não podem ler-se para trás. O processo de ler é linear, a sua trajectória é irreversível.

A prática hipertextual interrompe esta irreversibilidade mediante um procedimento tecnológico em forma de nós hipertextuais que possibilitam trajectórias “multilineares” de significado. O hipertexto é antes de mais uma forma visual. A dimensão geométrica do hipertexto permite ao “wreader” assumir o controlo do processo da leitura e da escrita. O carácter não linear do hipertexto, para além de quebrar a lógica da narrativa e da argumentação, faz estalar a relação entre leitor e escritor. O consumidor de hipertextos obtém poder mediante as contingências da escolha possibilitadas por essa relação não linear entre múltiplos blocos de texto ou lexias. “O leitor poderia converter-se em adversário do escritor procurando levar o texto numa direcção que o autor não tinha previsto...O computador manifesta a luta entre autor e leitor que, com as anteriores tecnologias, se encontrava escondido “por trás” da página” (Bolter, 154).

Afinal, o Xanadu não salvou o mundo da tragédia que supostamente viria dos desastres da comunicação. Pascal já distinguira o "espírito de agudeza" do "espírito geométrico" tal como Bouhours opõe ao espírito de "rigor", que Boileau elevara ao estatuto de princípio da arte, o espírito de agudeza e de delicadeza. E. Cassirer resume estas duas atitudes da seguinte forma: "o classicismo estrito caracterizava como não verdadeiro em si próprio tudo o que fosse inexacto, rejeitando a inconsequência. Mas a 'razão' estética não fica prisioneira do 'claro e distinto'. Não só admite uma certa margem de indeterminação, como a exige e a provoca. A lógica exige constância, a estética apela para o repentino" .