PORTUGAL

22. EM NOME DE QUÊ?



Hoje em dia, a ideia de crítica associa-se aos enciclopedistas e aos filósofos do século XVIII - à era da Razão. Espírito crítico quer dizer exame livre, exercido pela razão em absoluta liberdade, sem tomar em conta argumentos de autoridade, ou nas palavras de Bakounin, "sem Deus nem mestre". Do ponto de vista de Kant, a crítica é sobretudo crítica do sujeito racional, que é simultaneamente um sujeito moral e sujeito de experiência estética. Para a Escola de Frankfurt Teoria Crítica opõe-se a "Teoria tradicional", na medida em que consiste na própria realidade - na "infelicidade presente" - implicando luta contra esta. O universo crítico ligado aos enciclopedistas, aos filósofos, ao universo pré-crítico dos séculos XV e XVI e ao "sensualismo" do século XVII que desafiava a religião, provocou crises de identidade do sujeito e a negação dos valores estabelecidos (Marx). Sem nos determos numa descrição histórica da crítica filosófica desde a época clássica à era do racionalismo, a Kant e à escola de Frankfurt, acompenhemos a tendência "estética" da crítica literária, partindo do princípio de que a linguagem é o veículo crítico e de que não existe quebra de continuidade entre crítica - no sentido filosófico da palavra - e crítica literária.

Crítica significa confrontação com o signo (na versão binária positivista) e também confrontação com o poder estabelecido. Enquanto a crítica pré-moderna corresponde a um estádio "sociocêntrico" do pensamento (Piaget), a crítica moderna coloca o eu como princípio absoluto e referência única. No campo da crítica literária, a "nova crítica" tentou deslocar o eu como referência central e iniciou uma forma de crítica imanente centrada no texto. O estruturalismo não é uma forma de niilismo, mas antes uma forma de crítica (Kristeva). O racionalismo identifica logos-razão com logos-discurso. Esta identificação é posta em causa pelo niilismo: e se não houvesse verdadeiro logos, nenhum discurso significante? E se a forma não passasse de uma metáfora? (H. Bloom). Dilthey, que considera a crítica uma parte constitutiva da hermenêutica, faz derivar o início da história moderna do problema hermenêutico resultante da crise dos textos sagrados na época da Reforma. Deveria relacionar-se a tentação apocalíptica da crítica com a impossibilidade de pronunciar o nome de Deus? Ou com o Tribunal (dos tempos clássicos Estóico-Ciceronianos e da escolástica medieval a Kant e Vico)? Ou com a destruição dos derradeiros ídolos, que são para um niilista militante, a Beleza, o Ideal e a Verdade?

Onde deveríamos situar a falência da crítica? Na concepção evanescente da crítica como arma? na transição dos valores históricos para os puramente técnicos? Na ideologia do prazer textual e do mero jogo? Na "profanação" da arte transformada em mercadoria? No efeito perverso da crítica como forma epistemológica de censura que é o exacto oposto da crítica?

O eu regressa sob forma de vontade. Um começo é impossível sem uma deliberada intenção de continuar, de criar sentido. Com este regresso, também volta a ideia de um eu autorial. Com a transformação do texto, também a crítica se tranasformou. A crítica judicativa que Richards e a Nova Crítica praticavam parece dar lugar à crítica precária, mais de acordo com os pressupostos da natureza infinita do texto e com o prazer como princípio crítico em que a objectividade e a subjectividade são decerto forças "para mim" . Porque não há começo, comecermos! Michel Deguy, no livro que escreveu depois da morte da mulher, não pagina o livro porque cada página ou quase poderia ser a primeira ou a n-ésima. Tudo recomeça em cada página, tudo acaba em cada página. Será a poética do hipertexto uma das formas do trabalho (da poética) do luto?