PORTUGAL
18. AUTORIA INDIVIDUAL/CENSURA
- DISCIPLINAR E PUNIR: UM NOVO PANOPTICUM?


O texto electrónico vai sem dúvida obrigar a repensar a crítica, entendida agora como crítica computacional. O texto electrónico anuncia também o Novo Mundo da Crítica? Para W. Winder, "o que é semioticamente novo no texto electrónico é que, ao contrário do texto impresso, o texto electrónico se liberta, se transforma, reage e evolui . Mas é inevitável que no futuro o texto electrónico venha a significar a morte da atenção fixa.

A Internet começou em 1964 com uma proposta da Rand Corporation em resposta à questão posta pelo Departamento da Defesa de como os Estados Unidos poderiam assegurar as comunicações depois de uma catástrofe nuclear. Visto que qualquer rede de comunicações centralizada, controlada ou administrada hierarquicamente (como o sistema telefónico) seria destruída com a central, a Rand propôs uma rede de comunicações independente de uma autoridade central. A Internet coloca com acuidade um certo número de questões: a questão da noção de autor e da assinatura de uma obra; a questão dos limites éticos e jurídicos com a reedição electrónica da obra do Dr. Gubler cuja venda está proibida em França. O poder da Internet constitui o equivalente do que foi a Imprensa na sua época. Certas questões postas pelos artistas desde finais do século XIX são retomadas de modo insistente devido ao surgimento do ciberespaço. Essas questões dizem respeito directamente ao "quadro": a obra e o seu limite, a exposição, a recepção, a reprodução, a divulgação, a interpretação e as diversas formas de separação a que conduzem. "Um trabalho do quadro que, desta vez parece bem que nenhuma clausura jamais poderá doravante conter a desterritorialização: é preciso saltar para um novo espaço" . Este novo meio de comunicação, anárquico ou, pelo menos, descentralizado, incomoda. Não implica um governo centralizado. a Internet não tem centro, é a encarnação imprevista do rizoma de Deleuze e Guattari. Não há, pois, possibilidade de permitir ao "Big Brother" que se imiscua nos nossos assuntos. O que incomoda os defensores da censura é que a Internet é um meio de tal modo poderoso e de tal ubiquidade que eles não possuem nem os meios nem as técnicas quer mediáticas, quer políticas, de lhe resistir. Uma mensagem dá a volta ao mundo num abrir e fechar de olhos. E como há-de censurar-se se o conteúdo está fora das fronteiras que já não podem fechar-se? Tenta aplicar-se à Web a mesma censura que o livro nos seus primórdios. Haverá uma política de utilização aceitável? A questão do controlo da enunciação é crucial, tanto no paradigma da escrita tipográfica como no paradigma da escrita digital. Não é a tecnologia que é perigosa, mas sim o que transporta e afecta o corpo social. Muito embora quem fala tenha o poder eficaz do discurso, as palavras não têm todas o mesmo peso, o mesmo valor, quando se trata de um navegador solitário ou de um difamador perigoso, ou de propaganda de ódio ou de pornografia. Como fez notar Phil Kerby, "a censura é a tendência mais forte da natureza humana; o sexo vem em segundo lugar e com menor intensidade". A Internet, como novo meio de comunicação tecnológico e cultural desafia os valores tradicionais do conhecimento e da consciência. Como tal, tem sido inevitavelmente alvo do repúdio dos que a encaram como uma ameaça para a sociedade em geral. A Internet não se parece com qualquer ambiente anteriormente existente. É o primeiro e único meio criado pelo homem que existe num estado de perpétua mudança e que é regulado pela aprovação consensual dos seus utilizadores. Vejamos a Lei da Decência para a Comunicação (CDA - Communications Decency Act) encabeçada pelo Senador Exon do Partido Republicano dos E.U. que foi recentemente aprovada pelo Congresso como regulamentação da Lei de 1997 para as Telecomunicações. Os utilizadores acusados ao abrigo dessa legislação ficam sujeitos a procedimento criminal e ao pagamento de grandes multas em dinheiro, bem como aqueles que lhes fornecerem o serviço da Internet. Embora a censura seja sempre controversa, o CDA ultrapassa essas questões levantando sérias preocupações quanto à liberdade de expressão e de expressão artística dentro da comunidade global da informação. Se a finalidade do CDA é combater a indecência para bem da comunidade, resta-nos perguntar o que é que se considera consensualmente decente numa comunidade sem muros saturada de informação? De facto, o que é uma comunidade sem muros? Como Stephen Near faz notar: "se isto se parece demasiado com 1994 de George Orwell, considere-se que isto foi precisamente o que os Serviços Computorizados foram forçados a fazer a seguir a um incidente com as autoridades alemãs, que insistiam para que esses serviços impedissem o acesso dos cidadãos alemães a certos grupos novos" .

A essência da Rede, como os patos, é uma série de processadores interligados e autónomos, nenhum dos quais assume controlo e em que todos eles podem ser utilizador agora e servidor a seguir. Desta forma não é possível colonizar a Internet. Como nota Negroponte: "O colonialismo é fruto do pensamento centralista. Não existe no mundo descentralizado" . O verdadeiro significado da liberdade de expressão no ciberespaço é idêntico ao significado da liberdade de expressão na imprensa, no cinema e na rádio e televisão. O verdadeiro significado da liberdade de expressão é que uma sociedade democrática se constrói na base das garantias consignadas na Carta de Direitos e Liberdades. Uma sociedade livre precisa de uma Internet livre. Como J. F. Kennedy disse em tempos: "uma nação que tem medo de deixar o seu povo julgar a verdade e a mentira mnum mercado livre é uma nação que tem medo do seu povo" .

A Internet será malsã? Existe cerca de uma dezena de filtros na sua maioria conformes à "norma" PICS (Platform for Internet Content Selection) criada pelo consórcio da Rede (Web Consortium), um convénio de industriais da praça. O Alta Vista e o Web Crwler parece que já antecipadamente tomaram a decisão de filtrar os seus motores de investigação tão utilizados. O Online Parental Control Act baseia-se em critérios largamente difundidos nos vários Estados Americanos e demonstra que é preciso exercer um controlo parental sobre os acessos à Internet e de índole não governamental, como preconiza o CDA. O MIT acaba de anunciar que o PICS padrão está definitivamente pronto para ser utilizado.

A ideia de controlo está tão omnipresente como a ideia de ubiquidade que suporta a Internete ou a Rede: "livros e videos podem ser retidos na fronteira, mas a Rede sempre encontrará um caminho para contornar as tentativas vãs de controlo empreendidas por les prêtres et les rois" . Estão a emergir novas formas de autoria, "close Imagination" e leitura interligadas. Já vai longe o tempo em que Joe Orton (1962) foi preso por ter acrescentado comentários ordinários a livros pedidos de empréstimo da biblioteca local - e até a concepção de autoridade de Kierkegaard parece muito distante . O preconceito vigente contra o método cut up pode ser atribuído ao receio de penetrar realmente no tempo e no espaço. Burroughs tem razão: "A palavra é um dos mais poderosos intrumentos de controlo exercido pelos jornais e as imagens também. Nos jornais há tanto palavras como imagens...ora se se começar a recortá-las e a reordená-las quebra-se o sistema de controlo. O medo e o preconceito são sempre ditados pelo sistema de controlo, tal como a igreja construíu o preconceito contra os heréticos; não era inerente à população, foi ditado pela igreja que na época exercia o controlo". A par da questão do controlo há outras questões, tais como o sexo e o ciberespaço - que imediatamente levantou o problema da moralidade na comunicação (e a questão do dinheiro ou ciberdroga) e as fronteiras entre o permitido e o proibido . Existe também a questão do ludíbrio. Mas os impostores, os duplos, os charlatães e as falsificações são possíveis na vida real também. No reino virtual um perito em mistificação pode criar uma falsa identidade ou forjar um documento com o mais perfeito rigor. A identidade no reino do virtual é quase sempre qualitativa, mais do que quantitativa. O autor como Controlador dos Factos precisa do leitor para exercer os seus poderes, o seu controlo sobre a linearidade, a demarcação e o fixidez do livro. Não é por acaso que o conceito de disciplina regressa com a ajuda de Ivan Illich - um leitor de Hugo de São Vítor. Illich refere-se à necessidade de disciplina na leitura, reportando-se à disciplina do respeito pelo autor . Há certamente uma tendência para o controlo por parte do autor quanto à tradição em que se inscreve e quanto ao seu próprio texto. É bem conhecido o caso de Chrétien de Troyes que se queixava dos jograis que corrompem e desmontam os contos. A medida que o conceito de autor se afirma, a ideia de propriedade de de controlo tornam-se mais incisivas.

É bem conhecida a vigilância exercida pela antiga Inquisição sobre o mundo da imaginação. Mas a prática não se limita a uma época longínqua de clérigos. Ainda hoje há livros que são banidos das Universidades (Final Exit de Betty Rollin, por exemplo), indicando que "a censura é a tendência mais forte da natureza humana; o sexo vem em segundo lugar e com menor intensidade" e que os Meios de Comunicação estabelecidos têm receio dos novos meios de comunicação. A imaginação na Antiguidade e na Idade Média ocupa precisamente o terreno que a experiência veio a ocupar no mundo moderno dos séculos XX e XXI. Temos de ter presente que o mundus imaginabilis, longe de ser irreal tem a sua plenitude própria entre o mundus intelligibilis e o mundus sensibilis, e que deve a sua posição e o seu espaço ao facto de permitir a comunicação entre esses dois domínios. Daí a importância dos sonhos e outras fantasmagorias para os antigos: são manifestações de conhecimento. Mas também o é a vigilância da antiga Inquisição, da Inquisição pré - 1480 , com respeito à imaginação: recorde-se a ambiguidade constitutiva do Cristianismo - e mesmo do Judaísmo - em relação ao conhecimento, cuja proveniência tem de ser sempre averiguada, pois é bem sabido que, desde a tentação de Eva, o conhecimento e as suas blandícias são os métodos preferidos pelas forças do Mal para induzir em pecado .

No fim da era macânica muitos daqueles que não estão on-line parecem possuídos de uma certa dose de tecnofobia derivada de um medo visceral do que a Net representa. Ao ouvir palavras como "piratas" e "escravatura sexual", imediatamente pressupõem que o ciberespaço é um terreno fértil para criar pervertidos virtuais e "cyberfreaks" empenhados em corromper a sociedade . No final da era mecânica é tempo de "reimaginar a trabalho académico em termos da nova era, na qual os académicos do campo das humanidades e ciências sociais já não, podem ser conservadores de conhecimentos estáveis cristalizados em livros e sistemas de crença. Pelo contrário, a importância crítica das humanidades e ciências sociais na estrutura universitária para o desenvolvimento e realização humanos podem conduzir as instituições de ensino superior a um ressurgimento sob uma forma que possa fazê-las ultrapassar a chamada revolução da informação" .

O discurso e a metodologia académicos gostariam de tentar encaixar as histórias do desenvolvimento, design e divulgação tecnológicos numa embalagem de presente. Ao explorar aquilo que designamos como histórias de fronteira da rede, a hiperficção criou uma mistura fascinante e estonteante de teoria, ficção e discurso performativo. Agora o projecto é conduzido de modo a libertar o texto da noção "clássica" de uma origem autoral. Um dos principais pontos de início é a separação do texto em relação à sua origem autoral. Só que a noção de "início" tem de ser genuinamente diferente da noção de "origem". Tem de ser um início que nunca pode iniciar-se senão por cima do abismo da sua própria impossibilidade, ou seja, ficticiamente. Uma leitura de Freud pode iluminar esta desconstrução poética: "verificam-se hiatos notórios, repetições perturbantes e contradições óbvias - indicações que nos revelam coisas que não se pretendia comunicar. Nas suas implicações, as distorções de um texto assemelham-se a um assassínio: a dificuldade não está em perpetrar o acto mas sim em eliminar as pistas" . O novo texto constitui-se no processo de refazer os textos antigos, de os violar e de se abrir deliberadamente aos desafios de leituras alternativas.