AS MUSAS CEGAS Herberto Helder 29-11-2004 www.triplov.org |
AS MUSAS CEGAS IV |
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Mulher, casa e gato. Uma pedra na cabeça da mulher; e na cabeça da casa, uma luz violenta. Anda um peixe comprido pela cabeça do gato. A mulher senta-se no tempo e na minha melancolia pensa-a, enquanto o gato imagina a elevada casa. Eternamente a mulher da mão passa a mão pelo gato abstracto, e a casa e o homem que vou ser são minuto a minuto mais concretos. A pedra cai na cabeça do gato e o peixe gira e pára no sorriso da mulher da luz. Dentro da casa, o movimento obscuro destas coisas que não encontram palavras. Eu próprio caio na mulher, o gato adormece na palavra, e a mulher toma a palavra do gato no regaço. Eu olho, e a mulher é a palavra. Palavra abstracta que arrefeceu no gato e agora aquece na carne concreta da mulher. A luz ilumina a pedra que está na cabeça da casa, e o peixe corre cheio de originalidade por dentro da palavra. Se toco a mulher toco o gato, e é apaixonante. Se toco (e é apaixonante) a mulher, toco a pedra. Toco o gato e a pedra. Toco a luz, ou a casa, ou o peixe, ou a palavra. Toco a palavra apaixonante, se toco a mulher com seu gato, pedra, peixe, luz e casa. A mulher da palavra. A Palavra. Deito-me e amo a mulher. E amo o amor na mulher. E na palavra, o amor. Amo, com o amor do amor, não só a palavra mas cada coisa que invade cada coisa que invade a palavra. E penso que sou total no minuto em que a mulher eternamente passa a mão da mulher no gato dentro da casa. No mundo tão concreto. |