AS MUSAS CEGAS Herberto Helder 29-11-2004 www.triplov.org |
AS MUSAS CEGAS III |
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Eu teria amado esse destino imóvel, esse frio poço dos sons. Ela não dormia, estava a meu lado, era uma gruta onde a música um instante se torna imensa. Durante um mês viveu em mim, e não dormia. Foi o mês das musas, a penumbra da sua vida estava coberta de ervas puras. Não dormia. Durante o espantoso mês das musas, eu despertava como um espelho onde as brasas da cabeça principiam a girar. Estava iluminada por dentro, e a noite ia e vinha sobre os arcos e os tanques e as frestas. Eu cantava junto a esse sonâmbulo instrumento, eu era profundo e fecundo. O sangue passava pelos arbustos do corpo e os pensamentos ardiam em mim, nessa monstruosa noite da criação. Sinto que tocaria esse intenso violino, e a vida mudaria, as grandes estações do ano passariam devagar na minha confusão. Eu era um homem e tinha na boca o ofício de sorrir o fluxo encantado das imagens. E tinha palavras que um homem tem para acender, como fogueiras, nas margens cantantes e frias das águas do mundo. Vejo a minha vida agitada, as pequenas folhas do rosto, minha dor e idade de homem, debruçadas sobre esse objecto misterioso e triste, e poderoso e vazio como uma guitarra, uma coluna de obscuridade que dormia, que não podia jamais dormir entre uma onda que vem do céu e da terra e uma noite que iria e viria sobre a paisagem de arcos e pontes e torres e poços tenebrosos e ocos. Às vezes eu levantava um braço que deixava arder ou pensava como era forte a torrente do meu silêncio. Pensava como poderia desfazer-se a carne sem que eu gritasse. A minha voz era esplêndida. Os mortos poderiam erguer os corpos submersos na grande ideia universal, poderiam ouvia a minha voz tão límpida de terrível alegria. A meu lado aquele ser levitava, e por ele passavam as aves, os montes atingiam as corolas celestes, nunca deixavam correr as águas que atravessam os povos mais puros do mundo. Era tenebroso e doce que a loucura me viesse deste lugar, que fosse uma árvore sustentando a minha idade. Chegava um dia em que ela devia ser obscura, e o meu coração ressoava. Minha dor de homem de novo se inclinava sobre as formas mudas. Porque a terra trabalhava para acender aquela cidade, porque ela mesma cantaria então, iluminada e humilde debaixo da noite rolante, da estupenda noite inspiradora. Mas somente para mim o vento circulava com seus archotes rápidos rápidos. Minha cabeça estremecia contra a almofada de fogo, e o sangue despedaçava as portas, e ao alto os telhados transparentes incendiavam-se batidos pelos raios. Sabia agora como havia razão no oculto movimento da fantasia, como essa força chegava de nada e era força no próprio e puro enigma da minha vida. Porque a obra era então - mais que o mundo e as fontes e os leitos dos poderes - eu, um homem disposto sobre si como a luz se dispõe sobre a luz e as palavras são em si mesmas dispostas no renovo das palavras. Sobre a sombra de um mês confuso e rápido, eu era um homem - e um homem beija a sua própria boca. |