• FLORIANO MARTINS
    QUINZE POEMAS



As tintas negras do jardim

I’ll shoot the moon
right out of the sky
for you baby
Tom Waits (“The Black Rider”, 1993)

A Vera Cruz de Oliveira

O que vejo é teu olho dançando no jardim:
descreve a si mesmo com tamanha paixão
o olho pintor de seus quadros em movimento
– confessa-se uma máscara de Lucebert,
três vezes estivera com seu espírito maligno,
quase um pária, quase um duende, o olho.
Sua áspera voz correspondia às imagens
com que seguia redimensionando o jardim.
Fotos de combate, estatuetas corroídas,
papéis amassados, bosta de rato, explosão
de desordem por todos os ângulos, no atelier,
ainda legível um recorte amassado ao chão:
“um poeta que pinte não pode dar grande coisa”.
Segue o universo caindo de si, quase um olho,
tomado de imagens como janelas a descascar.
O que vejo no jardim são detalhes do horror
que ainda comove pequenas histórias ilustradas
– o poeta alimentando o caos, os santos óleos,
pequenas salas de costura onde o mundo se refaz,
olhar inquieto em seu infortúnio: resplendor
dos signos decaídos, guaches de abismos em chamas,
dançávamos e ele não parava de cantar, o olho:
I’ll shoot the moon right out of the sky for you baby
– mostra-me, criatura, as evidências de tua máscara,
não somente o irrefutável, mas sua lástima de si.
O olho excelso no caminho ilumina meu espanto.
Seu bailado acentua-se por toda a pele do jardim:
afeito a dissonâncias, rende-se à dor a criatura.
Uivam figuras patéticas à distância, dança mítica,
legado de antigos filósofos que viam deuses em toda parte.
O olho no jardim é um grande oceano que sangra,
pouco entende do tempo que ocupa com suas serpentes e letras que
segue traçando em tintas negras e árvores-pincéis as imagens que
nada têm em comum com a eternidade a simples representação do
momento em que as coisas são menos e menos o despojo de sua
própria agonia quando o desejo confunde-se com o impossível e
instaura-se a multa por transgressão e
não somente Hölderlin mas todos os poetas
viveram algum momento como se fossem deuses.
O olho é a proteção do ardor mais secreto da beleza,
embora o jardim contaminado por imagens,
luz que já não se derrama sobre Goethe,
a última rosa do verão, o filme que se esvai
com a noite que atravessa de um encanto a outro.
A semente que cai (novamente a voz de Lucebert),
cai sobre o olho que assimila aquilo que vê.
Pintura e poesia. Mais do que o bailado dos signos
no atônito jardim tomado por seus dramas,
o compasso de nosso corpo negro
firmado no horizonte, sinuosa orquestra de timbres,
os traços caindo inspirados em arabescos
e flautas, bambus refletidos contra o sol,
amuletos-linces, rajas de opala do rio da linguagem,
o olho do amante engana, com seu lápis-trenó,
não existe apenas para a salvação dos cegos.
É grave como a página escrita e o bailado de Mondrian.
O olho é o jardim, mesmo que tomado de paixão.
Projeta-se sobre a idéia (sua) da imagem, um signo branco.
E segue a dançar, vôo de luas em um céu de pincéis.

Luz e sombra
Mar de mares



Aquele que ama as letras desvela o argumento das trevas com serenidade. Assevera uma sentença árabe que o homem se dissimula atrás de sua língua. Moisés não encontrara senão em Aarão as palavras com que transmitir a seu povo as aspirações de uma união total com Deus. Schöemberg morrera sem concluir Moses und Aron. Que luz tão severa suprime a paisagem à nossa volta? Que dibuk penetra em nossa afligida alma e com um escândalo a arrebata? O definitivo rio que flui nos tecidos da linguagem conduz o homem a um abismo sem fim. Aquele que ama as letras supera a obsessão de revelá-las.

Dentro da memória se guarda o amor
silencioso das cinzas. Um mar secreto
que nos invade em insistentes dobras
do tempo. Provo de tua imortalidade,
um cinema tecido entregue a orações:
dá-me teu amor, oh dá-me teu amor.
Lembra-me o poeta que a dor não
passa de um minuto. Nada se iguala
ao vento de tua voz, festa de sombras.
Outro corpo que se esboça em plena dor.
Capela severa do mar dentro da qual
escrevemos e os versos nunca retornam.
Secreto vínculo com o destino – oh dá-me –
que não se encontra nunca em casa.

Estatuetas
Página marcada

A Rolando Toro

Ser tua imagem sem causar-te aflição,
figurando em teu ser como o fogo.
Passas por mim e não me fraudas a dor,
em paz com o deus de tua morada.
Tu me deste o espírito e me deste o olho,
o côvado profundo em que me ponho
para que lutes com toda a força do nome.
Teu duplo refaz o que tive e vi e fui,
sombras cujos atributos conspiram ainda.
Uma delas mora na esquiva escuridão.
Outra se arrasta por rostos que recuam.
Haverá uma que me vê trazendo a noite.
São como palavras herdadas pelo fogo.
Por toda a terra vagam e nada cresce ali.
O nome é apenas parte de seu legado,
um dos símbolos da morte que entalham
em formas várias e suplicantes versos
que dizem o mesmo dá-me um caminho.
Figuras de pedra e madeira e porcelana,
as mesmas que temos sempre em casa
e que não deixam de bater o coração.
Tu és um pássaro e um sol e o túmulo
de um deus que imita o curso de teus dias.
Tua bela forma golpeia qualquer escriba
em tradução de trevas ou terra santa.
Passagem e selo abissal de toda crença.
O que buscas e o que o livro oculta
em linhas invisíveis a quem supõe sabê-las.





Teu nome é ausência, vertigem da memória,
flecha de ouro cujo percurso descerra
uma furtiva utopia. Ascensão ao inferno,
contigo nas emanações do vazio. Vapores
do caos sopram que tua morte é meu asilo
primordial. Um a um os fantasmas virão
depor: recolho as cinzas de teu refúgio
em meu corpo. Estranho mar de sentidos:
tua imagem paciente, oh Incriado, teia
que nos torna uma tribo de vícios. Tremor
de visões daquela que guarda a chave
em seu leito. Materiais de risco. Fogueira
de sonhos. Metáfora isolada na torre
dos delírios. Mãe infundada. Este é o corpo.