• QUINZE POEMAS
    FLORIANO MARTINS



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A imagem desfeita
Legado de cinzas (Ester)
A mesma voz sempre indaga se tudo está escrito. Um ruído estendido à tua porta. Outro foco de fagulhas insiste em saber quantas são as colunas circulares. Rumores surgem da terra, erguem abismos por toda a noite. Uma furiosa atração por estrondos nos atormenta. Oh velho murmúrio, velha lei de escombros! Que me dirá o pai desconhecido anunciando a taça de seus enigmas? As raízes se perdem em portas carcomidas por ressurreições. A alma se multiplica em vermes que celebram seu degredo. Por vezes o homem se sente feliz em não ser nada. Ignoro lugar e instante em que me encontro contigo, o que se segue ao som de nosso impossível diálogo. Ouçamos o que diz a morte. Abre o talismã de teus lamentos. Mostra em teu peito onde está escrito que tudo se repetirá. Ouço a pancada seca do tempo em nossas vértebras. A última palavra nos fará a todos mendigos.


Em que condições se deve julgar um homem?
Remirá pelos ermos de seu banimento, e ali
eliminará de sua memória os atos que o levaram
ao catre? De que valerá o julgamento? A pena
santifica ou martiriza? O martírio sagra ou apenas
suplicia?
Imensos os cabelos e a voz profunda,
como jamais se ouvira. Uma pausa medida
e logo seguia:
Quantas dádivas nos negamos
enquanto condenamos alguém por crimes
dos quais todos somos cúmplices? Sacrifícios
de que ordem resgatam o convívio perdido?
O que esperar de homens que se sentem justos
ao julgarem alheio o que lhes cala tão íntimo?
Quantos a terão ouvido, em sua única visita?

Natureza morta

Cadáveres em lágrimas,
nada mais é inverossímil em tua existência?
Três lances de escada antes da queda
rabiscavas de memória umas palavras finais.

Com quem falavas em teu caminho para o abismo?
Quais vozes feridas e estrangeiras
em teu drama rugiam, quase bêbadas, quase vozes?
Será tão imensa assim a eternidade que acaso não possamos nos
encontrar em uma tarde de sábado?

Silêncio rochoso, enfurecido em seu casco carcomido,
que estranho vício a tudo converte em angústia?
Cadáveres prontos para uma ceia de dores,
soluçante cosmogonia debruçada no vazio, rios de insetos piolhos badejos
mortos pulgas lesmas lentilhas podres latas de óleo - naufrágio
queimante - ferrugem de faróis tumbas flutuantes - estupor diante do
sangue das noites?

Há uma distância clássica entre o que pensas e o que és, trevas de
atitude, batismo de cruzes, sofismas gastos, coro de anjos, sempre um
mesmo porto de aventureiros,
lugar pouco provável para nosso encontro.
Ainda mais que não te revelas, entre cadáveres remando contra a morte,
restos de comida fratura de muletas górdio de fezes - de onde cai
o tempo? - o verso se quebra a todo momento.

Onde estás? Onde moras?
Indago onde poderias ter nascido.
Habitualmente cercado de cadáveres,
tua noite será a grande indústria dos desvalidos?

Metáfora decaída, cantina de preços exorbitantes, estamos sempre a dois
passos de algo, perdas acumuladas, rotina de miséria solúvel e pastel
de ansiedades - será este teu mundo descomunal, tua bíblia que a tudo
abrange mas que nada percebe em seu íntimo, o pandeiro da jovem
esmeralda, mulheres tatuadas a estilete, garotos decepados por não
portarem armas, um ovo de tartaruga por onde escapa um jacaré, a
suprema glória da superficialidade, morte entre a pele e o abismo de
sentidos, bandejas de bagos e uvas servidas em congressos de paz,
artistas a vácuo, suplentes de alquimistas acidentados em trabalho,
imbecis especulativos, baratas familiares, pêssego pitomba açaí tudo de
ouro, morte eterna, será?
Em que oceano descomunal te escondes, poeta?

Disfarces: um amargor telúrico uma máscara dionisíaca um barroquismo
ululante - ah formidável maneira de não estar no mundo.
Um demônio triste escreve um roteiro banal de arrependimentos.

Teus cadáveres já não te suportam.

De volta ao abismo
Abuso da vertigem


Compra-a para teu gozo, disse-me o pai, desejoso de livrar-se de uma viúva, ainda que sua filha fosse. E o fiz, sem hesitar. Aqui me tens a teus pés, senhor, disse-me a filha, disposta a servir à ceifa de aflições que me velavam o corpo. A doce mulher parecia apegada a seu destino. Mantinha os olhos vivazes sempre arregalados em busca de algo. Ao banhar-se, no antepasto, entre óleos e vinhos, mesma doçura. E foi se servindo de tudo à sua volta, ela própria a serva incomparável da aquilatada condição. Os olhos saltitantes, por vezes longínquos, cadentes. Aos poucos compreendi: não era apenas queda ou sedutora suavidade. Buscavam uma brecha onde voltasse a ser a infatigável dama do abismo.











































O colosso de fragmentos me lacera. Em pé se
atura a tortura.

René Char

Tomo teu corpo em minhas mãos,
entre réstias de suor, desfalecido.
A ruína da beleza (cara fealdade?)
é que retorna sempre a si mesma.
Em que ponto extremo de teu amor
tem lugar a renúncia à insensatez?
Um corpo desamparado me insulta
com sua humanidade fora de lugar.
Escombros que se acusam entre si
pela desprezível vertigem alcançada.
Avareza de formas com que ousar
o lampejo de mil vozes trepidando
em sacrifício como se a noite oculta
na fortuna de cada fala desventrada

fosse a chaga deífica, sol ou cinzas.
Dissipada como estás, me abisma
seguir lendo uma torrente de páginas
na pele branca e desfeita de sentido,
abismo que é o centro da angústia,
hortaliça vitimada pela consagração.
A memória é um cínico abuso da dor?
De que é feita a tragédia da beleza?
Tambor de vozes, relato de gozos, luz
faltando sobre o cenário em ruínas.
Volúpia de quedas que nos alimentam.
Desígnio, veneno ou rogo de pragas.
Sei que te perco agora, em meus braços
não tenho senão o fulgor de tua morte.

O que deixo de ser mói a si mesmo,
suplício que acentua a miséria humana.
Indícios de perda albergam disfarces.
De que morre algo bem dentro de nós?
Anúncio e sigilo, ódio e amor, pequena
ou grande morte, em intervalos ou não.
Como me dói em ti o impossível verbo,
conjugar a dor em vícios de linguagem,
refazer-te dilacerando tempo e espaço.
Não quero que morras aos pedaços.
O vazio é úmido e repleto de si mesmo.
Deus não morre de ódio. Menos ainda
o homem se esgota em seu orgulho.
A refutação da morte está em sua dor,

como a negação do que nos contradiz.
De que morres? Todos sabemos da bala
que teu corpo recebeu em meu lugar.
Ódio ou aprovação, o anúncio se deu.
Nua e linda como estás, agora morta,
ódio perseguido pelo acaso, gólgota
se ajustando a novas formas de êxtase,
não vejo senão teu corpo, inativo,
na escuridão que o ilumina, jorro
de breu na viçosa lâmpada do destino.
"O que houve?", decerto indagariam.
Morta a tiros quando entramos
em uma farmácia e nos deparamos
com o "abaixem-se", e minha recusa.

Epílogo

Lábios de seda
Um plantio dentro da pele
Se me amordaçasses ainda ouvirias o salmo de minhas ânsias
Pequenos lábios do mundo
Algazarra insepulta de falas que são lâminas que falos e abismos
Uma linguagem de coxas
Trapézio mobiliado pelo desejo
Lábios perversos que não se negam jamais
Lençol que aturde os movimentos do sigilo que acoberta
Lanterna de lábios lavrando a cena a ser escriturada
Por vezes o inferno não sabe onde cair
Será deserto como no princípio ou evocado por débeis ratazanas viciadas
na vida eterna de um laboratório?
Mandinga entranhada em cada sílaba
O que dizem a mesma reza prelúdio gasto sobretudo do acaso guarda-sóis
devassados por falta de uso
Tocas em mim
Lábios na pélvis no visgo que buscas
O que haverá de mais visionário que o temor?
Sussurro em teus lábios maiores que punição alguma me levará ao
arrependimento de tocá-los
Lutuosa harmonia de quantos beijos?
Açoites que planejam mechas em devaneios de formas que se misturam
entre si
O impossível lábio único intransitivo que ninguém o culpe por haver agido
sozinho

Floriano Martins (Fortaleza, 1957). Poeta, ensaísta, tradutor e editor. Tem se dedicado, em particular, ao estudo da literatura hispano-americana, sobretudo no que diz respeito à poesia. É autor de Escritura conquistada (Diálogos com poetas latino-americanos) e Escrituras surrealistas, ambos publicados em 1998, Fogo nas Cartas (2001) O Começo da Busca - O Surrealismo na Poesia da América Latina (2002). Assina traduções de Poemas de amor, de Federico García Lorca (1998), Delito por bailar o chá-chá-chá, de Guillermo Cabrera Infante (1998), Dois poetas cubanos, de Jorge Rodríguez Padrón (1999), Três entradas para Porto Rico, de José Luis Vega (2000) e A nona geração, de Alfonso Peña (2000). Na poesia, destacam-se o volume Alma em Chamas (1998), Cenizas del Sol (2001), juntamente com o escultor costarriquenho Edgar Zúñiga, Natureza Morta (2001), com o artista plástico Hélio Rola, e Extravio de Noites (2001). Autor das biografias do compositor erudito Alberto Nepomuceno (2000) e do artista plástico Antonio Bandeira (2001). Com larga trajetória de colaboração à imprensa, no Brasil e no exterior, tem escrito artigos sobre música, artes plásticas e literatura. Atualmente dirige, juntamente com Claudio Willer, a revista Agulha (www.revista.agulha.nom.br) e coordena a Banda Hispânica (www.jornaldepoesia.jor.br/bhportal.htm), do Jornal de Poesia. Integra o conselho editorial das revistas El Artefacto Literario (Suécia), Literapia (Fortaleza) e Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro), sendo também correspondente das revistas Babel (Venezuela), Común Presencia (Colombia), Matérika (Costa Rica) e Blanco Móvil (México). Pertence à UBE (União Brasileira de Escritores) e à ABCA (Associação Brasileira de Críticos de Arte).