• QUINZE POEMAS
    FLORIANO MARTINS



Tratados da sombra

O prodígio das tintas
Tratados da sombra
Alarde de espelhos
O banho das modelos
As tintas negras do jardim
Mar de mares
Luz e sombra
Estatuetas
Página marcada
A imagem desfeita
Legado de cinzas
Natureza morta
Abuso da vertigem
De volta ao abismo
Epílogo



O prodígio das tintas

Sopra-nos o vento a música de seu fulgor:
um elo de ecos, um verso de Gonzalo Rojas,
a espinha do universo no piano
de Thelonius Monk em Memories of you.
Lugar metafísico onde tudo combina
com seu diverso e outro latejo,
em um desses momentos por onde cruzamos
as gélidas ruas de Kafka.
A alma esplende em metamorfoses.
Por ali nos indagamos do equívoco do enigma:
-
por que tudo é sempre o mistério do vir a ser,
a almofada do maravilhoso, seu estalo de trevas.
Sons de palavras: letras que surgem
do obscuro ritmo entrelaçado de nossos nomes
- do entreato da sagrada miséria às minúcias de nossa queda,
a um só tempo dialética e mundana.
Livros de sons: a voz deixada no oco da tradição,
notas do prodígio que é seguir vivendo
lendo o misterioso nas páginas de Bataille Blake Benn.
Por ali nos indagamos e a tinta não cessa
não cessa.



Alarde de espelhos

Ergo o olhar sobre a árvore visível,
escolha difícil em vista da quietude
de suas folhas: alarde de espelhos
em uma manhã sem ventos. Síncope
risível de abraços entre ser e tempo.
Um ritmo binário consome o homem,
escravo do alvo e da tensão do arco.
Réplica de uma dor lapidada à beira
da imagem ideal de todos os arcos:
guarda consigo o relâmpago e a guia.

O poeta é exigido por uma angústia vital:
aquela do desenlace em si de uma nova
transparência a partir de toda a opacidade
de sua vida. Tudo nele busca o desespero
iluminado das formas, sua convulsão
precipitada sobre a beleza das imagens
aterradoras. Refere-se o poeta sempre
ao outro que ainda não conseguiram tocar
suas débeis figuras. Indigente do instante
e do conhecimento do mistério, concebe
para si a tarefa de escrever um livro
impossível: o da personificação da morte.
Dissolve-se na matéria de suas metáforas,
misturado à visão do livro findo inacabado.

Com quem se parece o pobre poeta senão
com Deus? Indaguei o nome do guardião
de seu museu de imagens. “Cuido de sombras
que deliram do desejo de ser a medida
de todos os homens”. Que nome dar a ele?
(Gorostiza Holan Bopp Schwob Pessoa Breton)
Vislumbramos as possibilidades de amor
e amizade entre os homens, por mais estranhas
que sejam as atividades humanas. Parece-nos
a diversidade uma fotografia do vazio.
Apodrecida no excesso de signos a linguagem
não é mais a glória do indivíduo. Não mais
que Deus, em sua máscara de sombras, o velho
diabo feito de livros, ignorado em seu mundo.

O que discute sempre o poema é a idéia
da personalidade. Somos gloriosos na paródia
de nossos próprios atos. Será este o progresso
da consciência? Há uma grave teia de anomalias
que se fia na expressão dos dias. Whitman
dilacerado por sua humanidade, Bataille deslocado
por seu riso solto. Quais os antecedentes
conjurados da dor, as sombras pronunciadas
por suas visões? À luz particular de cada
cena as idéias são sempre distintas. O poema
não repercute senão o material de sua memória.
Desconfia do homem quando se recusa a criar.
Ressurgem as formas da dor de sua metafísica:
“muda-me a cada toque o tolo que sou em ti”.

O poeta cai de suas metáforas. Ensaiamos
o enigma comum de situação e lugar, porém
não suportamos o peso das coisas que em nós
se preparam. Jamais ignoramos o espetáculo
de nossas ruínas, distinto cenário onde
o homem atua como o verme da própria espécie.
Ainda que renove-se o poeta com suas perdas,
resta um raminho ausente, uma corda, uma visão
da beleza, uma ilusão do ser, algo que torna
incessante a queda e o poema um código de falhas.
Na cena que se repete, o mesmo súbito relâmpago:
“O que fiz de ti?” – Livro decomposto
em repetições. Hamlet encharcado de ilusões.
Haverá sempre algo ali, impossível de se seguir.


O banho das modelos

Nudez roubada da noite mais escura.
A que espaço pertencemos?
Negras cabeleiras tomadas pelo banho.
Jazem as juras de amor como uma queda de si mesmas.
“Cuido da inocência de meu amo” – orgulhava-se
a pobre Lais a uma amiga entre bálsamos.
“Desce sobre mim seu corpo como o sonho de um deus”,
dizia Timandra, enferma de sua paixão.
“Não vejo outro verso que não seja seu ardor”, chegou
a escrever Calisto, cujo corpo jamais foi localizado.
A bela Eufrosina bebia tanto quanto Dylan Thomas.
“Onde estamos, minha alma, se não acendo
a gramática da volúpia?” Sabe-se que chorava muito
no banho com suas criadas.
Sínope em silêncio sofria
suas dores secretas como um pressentimento.
Morta no desespero do fogo, seu corpo desfigurado
gelava a noite. Lívia foi descrita
como uma mulher de inteligência invejável,
n
ão bastasse a perfeição de seu colo que despertara o interesse de
inúmeros pintores.
Quais os sacrifícios da beleza? O crime assemelha-se a uma grande visão.
Passamos pelo banho das jovens cortesãs, afeitas a uma geometria do
amor. Com suas cores essas mulheres contemplavam mais que uma
fábula ou uma parábola. Dilatavam toda simetria reinante no corpo de
seus amantes. Foram o bulício de trevas mesmo em almas afeitas à
quietude. Cobertas de crimes, jamais deram sepultura a seus profundos
ventres que abrigaram os equívocos da aventura humana.