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ANTES DA QUEDA

Esta é a morte.
Porém, desde
quando eu a vivo?

Doug Moench

1 Eu trouxe esta dor para dentro de ti. Não pude mais mantê-la afastada. A todo instante me persuadia a isto e em minha angústia boiavam as vítimas que fui asfixiando na memória. Era gente sem nome. Jamais se deu pela falta de uma. O que me consome é o anseio de não repetir-me, uma vez sequer, tornar nossos corpos íntimos antes de me despedir de cada um, roçar-lhes o pânico, com extrema dedicação. Eu sempre atalhei a dor que agora se arrasta em teu ser, cuidando daqueles resignados todos de maneira que não soubesses de nada. Mas já não suportava ler nos jornais que os crimes eram todos iguais. Eu era o único a poder provar-lhes a diferença. A dor que sentes não é maior do que a minha. Fomos traídos pela incompreensão. Este mundo já não é o nosso.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

2 Ela costumava dizer-me que gastamos a vida em suspeição: a afirmação da fé não passa de uma fragilidade. Aqui dentro convivo com vários. Não crêem em nada, mas enlouquecem ao pensar nisto. Como imaginar que uma dor intensa possa ser serenada, ao mesmo tempo, pela fé e a razão… Todo crédulo é potencialmente louco. A minha mãezinha jamais duvidou de mim. Fui buscar um a um em suas casas, três, três, eram sempre três. Não mataram somente meus irmãos, viviam por ali a se divertir em confiscos. A redondeza é o lugar onde o inferno abanca seu ninho. Foram meus únicos três mortos, mas sobrevivem em minha condenação. Já não são mais suspeitos. Todo o crime recaiu sobre mim. Este é o caminho da fé ou da razão?

3 Onde moro o tempo decai como uma saliência prevista para estar ali sempre em declínio. O que quer que aconteça, terá o mesmo saldo. Um lugar assim, onde a frustração justifica ingerência do acaso, eu o tinha como decorrência, crimes, sim, propiciados pelo ambiente. Aqueles moleques perambulavam por ali, longe da escola. Uns musculosos me fascinavam, fui pescando os que me aturdiam, mexiam comigo. Não havia como não me desvencilhar deles. Há uma relação essencialmente fortuita entre causa e efeito? Uns choravam tanto, os que mais gostei, e desde cedo percebiam o que havia de inopinado no destino. Um outro recusou tudo isto, o grande amor que eu dedicava a todos. Enquanto o castrava, me disse: tu não és nada. Não sairás daqui para parte alguma.

 

 

 

 

 

 

 

 

4 Há uma hora certa para o crime? Quando devemos confundir os tempos do verbo? Por onde voam tuas pernas, redecoradas pelo abismo? As anotações se acumulavam no livrete, manuscrito agitado, mesclado a alguns feitios, riscos de supostas vítimas, esboços de um suplício. Nenhum nome, porém clara a intimidade com os atributos. A senhora da loja de frios não ri nunca? Por que aquele garoto só manca ao entrar na escola? Quantas pernas devem ser dadas ao livreiro cego? O livrete era todo um interrogatório. Quando foi encontrado se especulava se acaso o autor não iludiria qualquer investigação com seu abuso de perguntas. Isto não se sabe. Nem mesmo se os crimes indecifrados correspondem a algumas pistas encontradas naqueles escritos. Apócrifo, o livrete foi publicado e ganhou invejável notoriedade. Até hoje não se sabe o que de fato liga a literatura à realidade.

5 Um corpo provido de línguas que abre caminho e fere tudo o que produz, irresistível forma recurvada chorando a dor chamejante da solidão. Um corpo que é o portal de todo júbilo, do fogo que se faz súplica incessante e prevalece o corte, a tempestade, a destruição. Um corpo que nos guarda de ser o que somos, que nos conhece por tantos nomes e que não pára de enganar-se. Um corpo a proferir suas chamas (enlevos, miragens) e que se sinta puro ainda que cego o espelho da pureza. Um remo recoberto de musgo em cujo corpo mutila-se a inscrição de um caminho sagrado. Um corpo que não seja mais completo que os demais.

 

 

 

 

 

 

 

6 Estavas tão linda, na maneira como te despias e te deixavas acariciar por minhas palavras, como pensar que a realidade pudesse ter algum efeito sobre nós? Evidente que a arte tem uma teimosia, a de querer se confundir com a realidade. Nossas vidas não valem nada, não haveria motivo algum para o poema querer se passar por qualquer um de nós. O abismo realça as pernas da queda e nunca põe em questão a origem da dor. E me beijas enquanto provo do vinho de teu olhar. A realidade não põe nenhuma dúvida sobre seus caprichos. Por que razão a arte se leva tão a sério?

7 O que vemos na repetição dos sonhos? Uma desventura inatingível de sombras e deuses caídos. A noite como máscara da temporalidade, uma palavra em busca de seu personagem. Somos os primeiros anciões disfarçados nas esculturas distraídas do futuro. Pela noite a arte desfalece, mosaico de efeitos grotescos. Épica do bosque: uma surda repetição de árvores até alcançar a finitude do riso. À poesia satisfazia vencer a luxuosa matéria dos lugares-comuns. O que vai nos restando então? Um exercício de elipses, um diálogo com o vazio, as velhas alianças com os hábitos perduráveis. Quem fala hoje através de seus versos? O que é a poesia? Uma sombra entre as sombras, uma inundação de falas sem gestos, a diversidade inominada do vazio. É noite em teu corpo. Após a invariável lição dos sonhos, não se sabe. A poesia tropeça em ladrilhos, farta das medidas do homem. A

noite é facilmente reconhecida por anjos extraviados. É uma feira de livros. Não gira somente o tempo. Volta-se a letra sobre si mesma, persegue então as vértebras do esquecimento. Quem buscará a representação? Meu corpo é uma esfera, com seus passos perdidos. A noite mede a altura dos pretextos. Terão caído em desuso o inefável e a artesania? A poesia repete surdamente a morte incessante de seus instrumentos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

8 Destruímos a idéia de tempo aliada à idéia de esforço. Tornou-se mecânica toda absorção de conhecimento. Ninguém mais fala de si mesmo. A humanidade gera um desinteresse processual. A imprensa nos visita com palavras descascadas, que perderam o significado por excesso de uso. Ainda vemos uma ou outra sombra vagando pelas ruas à procura de uma máscara que se adapte a seu rosto. Apavora-me o hábito, a virtuosa varanda onde a vertigem é jejuada e a sensualidade presumida. O homem não duvida mais de si. Já não prepara a madeira para manter-se no inverno. Dedica sua vida a livrar-se do que quer que tenha sido.

9 Uma noite inscrita em sua claridade irresistível. Alento do fogo além de toda metáfora. Aceita-me assim ao menos esta noite. Sentada ali ao meu lado, não era a imitação de nada. Tudo é descontínuo no desejo. Imagens não caem do texto por simples prazer. Este é o ponto em que deixamos de ser a irredutível presença que nos conforta e maltrata. Sua beleza desprendia-se de si. Gostava dos poemas repletos de singularidades palpáveis. O amor já nos parece algo tão remoto que a poesia ainda o afasta mais com seu excesso de metáforas. Nisto passava a mão em meu rosto. Estamos indo e vindo. Iludem-nos a imagem e a semelhança. O tremor de tua pele me fala mais do que o bulício da palavra. Também a pele encontra-se perdida. Desfalece à espera do amor. Guardas o nome. Conservo seu secreto zelo. De igual maneira nos ronda a inquietude. Ia falando sem que sua mão se desfizesse de meu rosto. O desejo tornou-se o anúncio do desejo. As palavras de amor perderam suas letras essenciais. Converteu-se em glamour a revelação de cada mínimo gesto. Sem que parasse de falar, ali estive por horas. Entregue ao prodígio de sua visão. Seu amor corre por mim como o tempo, pequeno buda de todas as formas e rumores. O que se passa com esta noite é que podemos assimilar sua beleza, tocá-la, queda flamejante recolhida em cada gesto. Assim é que nos equilibramos, à medida de nossa imperfeição. Disse Wallace Stevens que o homem bom não tem forma. Um homem bom em mim deseja a mão dessa mulher sempre de volta ao meu rosto. O amor é tudo? Disse-me: Irresistível tua claridade. A noite recomeça a qualquer momento. Desde que teu rosto não se arrependa de minha mão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

10Não, eu não queimaria tudo agora, há alguns papéis que poderiam ser úteis em outro momento, toda prova é circunstancial e aqui há indícios que nos valeriam em boa hora. Sim, eu sei que queres te sentir seguro, mas a evidência é cúmplice de toda falsidade, guardar algumas rasuras pode assegurar uma melhor versão dos fatos. Não, eu não as entregaria jamais, em quaisquer mãos estes documentos complicariam nossas vidas, tais trunfos não passam de resto de munição. Sim, eu sei que podemos nos arruinar um ao outro, por isto estamos unidos, nunca duvidamos disto. Ah isto nem pensar, não creio que um de nós seria capaz…

   

Poemas & colagens: Floriano Martins
2005

Floriano Martins: Index