O LIVRO INVISÍVEL DE WILLIAM BURROUGHS
FLORIANO MARTINS

INDEX

Livro invisível
When you hear sweet syncopation
Pode repetir?
O que estamos fazendo aqui?
O que sente pelas mulheres?
That's the way

O que estamos fazendo aqui?

BURROUGHS 1 – O que estamos fazendo aqui? Qual a continuidade disso?

BURROUGHS 2 – Que merda é essa?

BURROUGHS 3 – Possessão é como isso é chamado. Algumas vezes, uma entidade salta dentro do corpo. Os contornos estremecem em uma geléia amarelo-alaranjada, e mãos se movem para estripar a prostituta que passa ou estrangular a criança do vizinho, na esperança de amenizar uma crise habitacional crônica. Como se eu estivesse normalmente aqui, mas sujeito a sumir de vez enquanto. Mentira! Eu nunca estou aqui!

BURROUGHS 1 – Vocês nunca estão em parte alguma…

BURROUGHS 3 – Escritores mencionam o doce-doente cheiro da morte, enquanto qualquer viciado poderá dizer que a morte não tem cheiro. Ao mesmo tempo, um cheiro que corta a respiração e detém a circulação do sangue. Incolor não-cheiro de morte. Ninguém pode respirá-lo e cheirá-lo através de róseas circunvoluções e filtros de sangue negro. O cheiro da morte é definitivamente um cheiro, e a completa ausência de cheiro… A ausência de cheiro fere o olfato em primeiro lugar, porque toda a vida orgânica tem cheiro. Sente-se a suspensão do cheiro como os olhos sentem a escuridão, os ouvidos, o silêncio, o sentido de equilíbrio e de orientação, o cansaço e a falta de peso.

BURROUGHS 2 – Que merda é essa?

BURROUGHS 3 – Eu cuspo em cima do Deus dos Cristãos. Quando o Deus Branco chegou à América trazido pelos espanhóis, os índios acorreram com oferendas de fruta e bolos de milho e chocolate. Em retribuição, o Deus Branco decepou-lhes as mãos. Não foi Ele o responsável pelas ações dos conquistadores cristãos? É claro que foi! Todo o Deus que se preza é responsável por aquilo que fazem seus adoradores e fiéis.

(Acende-se a luz da luminária. Enquanto Conferencista lê essa primeira fala, Burroughs 1 segue apagando todas as velas. Em seguida, retorna a seu lugar indefinido na platéia. Durante esse primeira fala, Burroughs 3 se agita em sua cadeira, como se fosse ele que estivesse falando.)

CONFERENCISTA – (Afinal foi descoberto que Deus não queria que nós fôssemos todos iguais.

Estas foram más notícias para os governos do mundo que pareciam em oposição à doutrina da servidão separada e controlada. A humanidade deveria ser feita mais uniformemente. Se o futuro funcionasse.

Vários caminhos foram procurados para que ficássemos todos ao mesmo nível. Mas infelizmente a igualdade não foi conseguida.

Foi por esta altura que alguém veio com a idéia da criminalização total, baseada no princípio de que se todos nós éramos delinqüentes poderíamos finalmente ficar iguais, até um certo grau, aos olhos da lei.

Os nossos legisladores calcularam sagazmente que a maioria das pessoas era demasiado preguiçosa para praticar um verdadeiro crime. Por isso, novas leis foram feitas para tornar possível a qualquer um violá-las a qualquer hora do dia ou da noite, e uma vez desrespeitadas todas as leis nós seríamos todos do mesmo grande e feliz clube, ali mesmo, junto ao presidente, os mais glorificados industriais e as grandes cabeças do clero de todas as vossas religiões preferidas.

Criminalização total foi o maior ideal do seu tempo e foi grandemente popular, exceto para aquelas pessoas que não quiseram ser delinqüentes ou criminosas.

Por isso, naturalmente tinham de ser todos levados a isso por truques… O que é uma das razões pela qual a arte foi finalmente declarada ilegal.)

(Todas as velas já se encontram apagadas. Tem início a segunda parte da conferência.)

CONFERENCISTA – Burroughs defendia não haver uma descrição acurada de um livro. Sempre há maneiras diferentes de olhar a mesma coisa, justificava. Um prova disto é que as críticas feitas a The naked lunch, de que se trata de uma escritura pornográfica, jamais se aplicariam à obra de Hieronimus Bosch, embora o próprio Burroughs considere íntima a similitude entre o que descreve em seu livro e o que pinta Bosch. Além disso, não julgava demasiado importante o tema ou as condições em que se escreve. Ou se tem êxito ou não se tem. O produto artístico, como dizia, sustenta-se ou não tão-somente por aquilo que é. Escrever sob o efeito de drogas não deve ser motivo de julgamento acerca do valor de uma obra. O mesmo em relação ao assunto de que trata. Certa vez declarou que jamais escreveria em função do leitor, e que continuaria a escrever mesmo diante da absoluta certeza de não haver leitor. Continuaria a escrever por companhia, por estar criando um mundo imaginário – sempre imaginário – no qual gostaria de viver.

(Breve silêncio. Burroughs 2 se levanta, e se dirige ao Conferencista, pondo-lhe seu chapéu na cabeça e postando-se de pé, às suas costas. Um gemido distorcido da guitarra acompanha esse movimento. Ao cessar, Conferencista retoma sua fala, sempre antecedido de um grito da Burroughs 1, vindo de várias partes do palco.)

BURROUGHS 1 – Junky (1953).

CONFERENCISTA – Viciados adoram ver televisão. Billie Holiday disse que sabia que estava largando as drogas quando deixou de gostar de ver TV. Ou então eles se sentam e lêem um jornal ou uma revista e, por Deus, o lêem de ponta a ponta. Conheci um velho drogado em Nova York que costumava sair e comprar um monte de jornais e revistas, alguns doces e vários maços de cigarro. Daí ele se sentava em seu quarto e lia todos aqueles jornais e revistas de uma só vez. Indiscriminadamente. Cada palavra.

BURROUGHS 1 – The Naked Lunch (1959).

CONFERENCISTA – Na verdade, ele foi escrito principalmente em Tânger, depois de eu haver me curado com o dr. Dent, em Londres, em 1957. Voltei a Tânger e comecei a trabalhar sobre um monte de anotações que tinha feito em um período de anos. A maior parte do livro foi escrita nessa época. O submundo marginal foi exatamente o que pretendi criar. Um tipo de folclore bunda, de botequim, de cidade pequena, do meio-oeste, muito a minha própria formação. Esse mundo era uma parte integral da América e não existia em nenhum outro lugar, pelo menos não da mesma forma.

BURROUGHS 1 – Minutes to go (1960)

CONFERENCISTA – Minutes to go, que incorporou pela primeira vez os experimentos de cut-ups, converteu-se em um livro profético. É evidente que há algo de errado com o próprio conceito de dinheiro. Cada vez custa mais comprar menos. O dinheiro é como a droga. A dose que basta para a Terça não será suficiente na Quarta. Uma vez, o herdeiro de uma conhecida estirpe de banqueiros me contou um segredo de família. Quando um jovem banqueiro alcança certo estado de responsabilidade e conhecimento, é conduzido a um quarto tomado de retratos familiares em cujo centro há um banheiro dourado. Terá que ir ali todos os dias para defecar até que se dê conta de que o dinheiro é merda. E o que come a máquina monetária para transformá-lo em merda? Come a espontaneidade, a vida, a juventude, a beleza, e sobretudo come a capacidade de criar. Come qualidade e caga quantidade. Houve um tempo em que a máquina comia com moderação de uma despensa bem surtida, e o que comia era substituído. Agora a máquina devora mais depressa, e muito mais depressa do que se pode substituir o que come. Esta é a razão porque o dinheiro, por sua própria natureza, vale menos cada dia. Chegará um dia em que o dinheiro não será nada, porque não restará nada para que o dinheiro compre. O dinheiro eliminará a si mesmo.

BURROUGHS 1 – The Soft Machine (1961).

CONFERENCISTA – O corpo humano, na realidade, tem duas metades. As duas metades não são iguais. O lado esquerdo e o direito não são iguais, não somente porque a maioria das pessoas utilize mais a mão direita. O lado direito do cérebro, se a pessoa é destra, está praticamente em desuso. Os personagens partidos ao meio e combinados para formar duas novas pessoas não compreendem nenhum simbolismo especial. É uma mera possibilidade que, imagino, com o tempo estará ao alcance da ciência médica. Também em The soft machine propus que os sexos deveriam separar-se, que todas os meninos fossem educados por homens, e todas as meninas por mulheres. Quanto menos tenha que ver um sexo com o outro, tanto melhor, penso eu.

(Burroughs 2 toma seu chapéu da cabeça do Conferencista e retorna a seu lugar. Um gemido distorcido da guitarra acompanha esse movimento. Ao cessar, Burroughs 1 irrompe com uma pergunta.)

 
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