2007, 1 de Fevereiro...............................................Maria Estela Guedes
"As saias de Elvira", de Eduardo Lourenço

Soa a can-can a temática implícita no título "As saias de Elvira e outros ensaios", de Eduardo Lourenço (Lisboa, Gradiva, 2006), mas o livro pouco aflora a cultura de divertimento. Para já, é difícil agarrar o tema das relações entre homem e mulher numa só palavra, pois são muito várias. A dificuldade traduz-se por isso em diversas situações, de que "as saias" são apenas uma delas. Sejam no entanto as saias sete ou nenhuma, é do ponto de vista da cultura ocidental que o tema é explicitamente tratado, quer dizer, no fundo da ligação amorosa o que se perfila é a cultura católica, e nesta o ponto de vista masculino, a determinarem que, se existe ligação, os intervenientes são três e não dois: ele, ela e o Diabo.

Eduardo Lourenço detecta na novelística portuguesa os modos como esse grande filão das relações (sexuais, assexuadas, erótico-místicas, castas) se comporta, mas o livro vai mais longe do que isso. Começa com Eros e Ágape da cultura clássica, passa pelas cantigas de amor e por Bernardim Ribeiro, para se deter com muitos vagares em Almeida Garrett (com o espectro de "Ninguém" a proibir a felicidade de segundo casamento a uma falsa viúva), Camilo Castelo-Branco (com as suas mulheres sem corpo), e sobretudo Eça de Queirós, nosso primeiro romancista erótico, de acordo com o autor. Atravessa com alguma velocidade os romances mais contemporâneos de João Gaspar Simões, Marmelo e Silva, Vergílio Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues e José Cardoso Pires, e termina, de novo com um ensaio moroso e muito pertinente, com o estereótipo da felicidade nos contos de fadas: "Casaram, tiveram muitos meninos, e foram muito felizes". Ou seja, o último ensaio é dedicado à instituição católica do casamento, por isso casamento indissolúvel. Cumpre entretanto advertir que o livro recolhe ensaios publicados dispersamente em anos bem transactos, e o que o fecha, sobre o casamento, data de 1968.

Muito entretanto mudou, mas precisamente mudou de acordo com a antevisão de Eduardo Lourenço, que mais não faz, ao longo do livro, do que mostrar quão na realidade é ficção, no que respeita ao enlace, em termos convencionais, a felicidade do casal. E quanto a cultura, quer no teatro, quer na literatura, quer no cinema, reflecte, de um lado, a falência da instituição do casamento, e de outro a arrancada da mulher para um destino no mesmo plano que o homem ocupa. Caminhada que vem desde a situação de vítima (em Eça), e mesmo de mártir (em Camilo), até à autonomia dos nossos dias, na qual ela tende a libertar-se da cosmovisão masculina, escriba das leis. Eduardo Lourenço só analisa a relação entre homem e mulher, com o amor-paixão, o amor louco, o (des)amor no casamento burguês, em que a personagem masculina dirá, pela pena de Vergílio Ferreira, que a companheira se lhe gastou. A este esgotamento responde Eduardo Lourenço com a descrição do destino do casamento indissolúvel : dormir com o cadáver do amor-paixão até ao fim dos seus dias.

Se o ensaio sobre o casamento não tivesse quarenta anos, e outros não fossem também já do século passado, decerto a temática das ligações mais ou menos perigosas seria ainda mais vária e complexa, pois teria de levar em conta o casal homossexual, e a legislação sobre o aborto, para dar um exemplo candente, a merecer referendo no próximo dia 11. O que vamos votar? Uma pergunta sobre o Código Penal: deve a mulher continuar à mercê de pena até três anos de cadeia se praticar aborto fora do quadro da legislação actual, ou não? Note-se que na causa do aborto está um homem a fecundar a mulher, que o homem pode ser tão ou mais responsável pelo aborto que a companheira sexual, mas só ela incorre em pena de prisão. Uma mulher a legislar, se não omitisse logo o acto, não o deixando figurar no Código, ao menos abriria ao homem o leque das responsabilidades, tanto mais que os testes de ADN permitem identificá-lo.

Por que motivos se verifica a derrocada do casamento católico, e com ele a das próprias bases da civilização ocidental? Uma das razões já foi aflorada: a promoção da mulher. Outra causa é a promoção de uma ideia ateísta mesmo no seio do catolicismo, e dos próprios clérigos: a de que o único mundo que temos é este.

Uma vez em ruína a cosmovisão masculina, enquanto visão única e dominante do mundo - aliás a crise do mundo ocidental fica mais patente no artigo dedicado aos dois fins de século -, e uma vez abalada a crença na vida eterna, resta-nos erguer uma nova sociedade, com novos padrões morais, e o mais urgente para a nossa sanidade mental e cultural: novas utopias.

EDUARDO LOURENÇO
As saias de Elvira e outros
ensaios
Lisboa, Gradiva, 2006

 

 




Eduardo Lourenço em foto de Rodolfo Begonha

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