As três mulheres cientistas de que vos vou falar pertencem a épocas diferentes. A primeira, Sara Manaças, trabalhou no Centro de Zoologia do Instituto de Ciências Tropicais, em Lisboa, em meados do século passado. Publicou vários artigos sobre répteis e anfíbios de Angola, Guiné, São Tomé e Príncipe, e Timor. Os artigos foram redigidos após estudo, no laboratório, de animais em frascos enviados pelos exploradores do século XIX, ou por naturalistas seus contemporâneos como Fernando Frade e Amélia Bacelar. Vale a pena dizer duas palavras sobre Amélia Bacelar: ela também trabalhou com animais diabolizados, era uma especialista em aranhas. Percorreu, com o marido, Fernando Frade, todas as antigas colónias portuguesas.
As explorações científicas de Portugal ocorrem de forma mais significativa em três momentos: século XVIII, no reinado de D. Maria I, e no século XIX, depois de perdidas as colónias americanas, quando a Europa se vira para África e se delimitam as fronteiras políticas do continente. O terceiro momento da ocupação científica do Ultramar teve lugar em torno dos anos quarenta, em pleno Estado Novo, quando Salazar governava o país. Em vez de várias equipas de exploração, como no século XVIII, ou de muitos exploradores solitários, como no século XIX, no século XX o governo optou por enviar uma equipa única a todas as colónias. Os líderes dessa empresa foram dois zoólogos, Fernando Frade e a esposa, Amélia Bacelar. Amélia, em diversas publicações, aparece referida como chefe do pessoal. Ela é a primeira exploradora que conheço em Portugal. Partiu para longe, com pequena equipagem, correndo riscos em travessias perigosas de territórios mal conhecidos. Cem anos depois de Serpa Pinto, Capelo, Ivens, Francisco Newton, a proeza de Amélia Bacelar, ao percorrer a Guiné, Angola, Moçambique, a Índia portuguesa e Timor, ainda é significativa. Por isso, e pelo contributo científico que nos deixou, merece visibilidade.
O material estudado por Sara Manaças resultou então em boa parte das colheitas de Amélia Bacelar e de Fernando Frade no Ultramar português. Diferentemente dela, temos Rolanda Maria Albuquerque. A Drª Rolanda, que tenho o prazer de conhecer pessoalmente, já tem formação mais dirigida à biologia. Trabalhou com um importante geneticista, José Antunes Serra, e com ele assinou o catálogo “Anfíbios de Portugal”, nos anos sessenta.
Mais jovem, Margarida Pinheiro é outra exploradora, como Amélia Bacelar. Tal como a predecessora, também ela se ocupa da fauna dos antigos territórios portugueses em África, dando assim continuidade aos estudos herpetológicos de gabinete de J.V. Barboza du Bocage e de Sara Manaças. Porém, hoje, a aventura africana já não oferece os riscos e pioneirismo que experimentaram Francisco Newton, José de Anchieta ou Serpa Pinto. E algo mudou já muito na ciência, entre o trabalho de Sara Manaças e o de Margarida Pinheiro, justamente porque a as ciências que praticam se hibridaram e aprofundaram no domínio biológico, o dos genes, da composição do sangue, do ADN, etc.. Se Sara Manaças precisou dos animais íntegros para os identificar, Margarida Pinheiro, até por motivos de protecção à fauna, não utiliza exemplares inteiros, conservados em álcool ou formol. Em Cabo Verde, território da sua eleição, ela captura os sáurios mas liberta-os depois de lhes ter amputado a ponta da cauda. Basta isso para depois em laboratório obter resultados que lhe permitem avançar no estudo e alcançar resultados novos para publicação.
Se muito mudou nas técnicas e nos modelos empregues, algo nos trabalhos destas herpetologistas se mantém idêntico: a falta de reflexão teórica. A nudez é típica das publicações científicas na área da zoologia, botânica e geologia, e não apenas destas três mulheres. Realmente a falta é só formal, a teoria está implícita, por detrás das observações científicas. Quando o investigador procede a uma análise de sangue, procura estes e não aqueles dados que lhe permitem erguer um quadro interpretativo consentâneo com a teoria dominante, que, no caso, se pode considerar um paradigma: o evolucionismo, de raiz darwiniana. Não pode entrar em guerra com ele, ou a Universidade não legitimará o seu discurso. Ora o investigador é professor, precisa de legitimação para conservar o emprego e progredir na carreira. Só os mártires e heróis da ciência se podem dar ao luxo de ter um olhar livre. Mas os mártires existem, e os loucos, também. É graças à sua acção subversiva do paradigma dominante que muitas vezes a ciência dá um salto e se verifica uma revolução no conhecimento.
Os catálogos faunísticos, por muito esquemáticos que pareçam aos leigos, remetem para uma multiplicidade de ciências e derivam da assimilação de doutrinas que representam espinhas dorsais de outras tantas ciências, no perímetro da biologia. Supondo que num deles se escrevesse que dado exemplar de sardão tinha sido remetido de Angola, isso era suficiente para provocar um colapso teórico à zoogeografia. O mais natural era o cientista omitir essa informação, excluir o estudo desse exemplar, ou interpretá-los como erro. Este facto levanta o problema de muitas vezes a garantia de autenticidade dos objectos de ciência não pertencer à ciência, sim à religião. A garantia de fiabilidade consiste na fé que os cientistas depositam na honestidade uns dos outros.
Os cientistas não teorizam nas centenas de textos que publicam, porque a teoria já foi enunciada por outros, é a casa de discurso que todos habitam. Quando enumeram as peças de mobiliário, o inventário cola-se a um discurso anterior, digamos que a um testamento.
Para fechar o meu discurso novamente com Karl Popper, meu filósofo favorito, as experiências científicas não só são guiadas pela teoria como muitas vezes o investigador é movido por “palpites teóricos”. É a teoria que orienta o laboratório, derrubando preconceitos. Gosto muito de ver um programa da rede TV Cabo em que dois jovens cientistas se propõem testar a veracidade ou falsidade daquilo a que chamam mitos. Depois, no laboratório ou na oficina, inventam maquinetas e métodos para verificarem se o mito, ou “ídolo”, como dizia Francis Bacon, se aguenta de pé. Eles são dois simpáticos fabricantes de problemas e parece até que o seu programa de televisão nasceu nestas palavras de Karl Popper: “A ciência […] começa quando um mito é posto em causa e derrubado – ou seja, quando algumas das nossas expectativas se não verificam. Mas isto significa que a ciência começa por problemas, problemas práticos ou problemas teóricos” (“O mito do contexto”, pág. 123). |