Apesar de altamente complexas e de credibilidade duvidosa, não podemos passar ao lado das lendas que remetem Maria Madalena para o horizonte da progenitura dos primeiros monarcas francos, a casa real merovíngia.
Sem dúvida, trata-se da parte mais polémica da vida e culto de Maria Madalena. Nada temos que nos ateste algum dado minimamente consistente. Apenas encontramos lendas e mitos actuais que, por razões variadas, nos oferecem muito pouca credibilidade. De qualquer forma, remetem-nos para um quadro muito antigo que nos pode ajudar a reconhecer algumas das validades e funções de Maria Madalena na medievalidade.
No ponto anterior, vimos como um grupo de lendas coloca Maria Madalena a chegar ao território gaulês. Sabemos, seguindo esses textos da tradição, que veio para a actual França. Seguindo esses mesmos textos, ficamos ainda com um outro dado: teria vindo acompanhada.
Ora, é neste facto que assenta a base de uma ideia que tem feito vender milhões de livros nos últimos anos: com Madalena teria vindo uma sua filha. Mais, essa menina era, também, filha de Jesus.
De facto, nenhuma fonte, nem sequer posterior, nos relata ou foca esta questão. Mesmo os evangelhos gnósticos, que em alguns casos colocam Madalena em situações eventualmente mais próximas de Jesus, nada nos mostram. Nem de forma indirecta as fontes nos dão dado algum.
A argumentação entra no campo da ideia de textos escondidos, verdades secretas e tradições orais e iniciáticas. Como se compreende, não existindo fontes, nem sequer uma tradição cimentada e comummente aceite, esta questão desagua nos mais vistosos e polémicos, mas mais mal fundamentados, mitos da actualidade: a descendência de Jesus.
Os autores que apresentam a questão falam, entre outras entidades, no Priorado de Sião e na defesa, por parte de um grupo iniciático, dos descendentes desse casal sagrado que era Madalena e Jesus. Desse grupo teriam feito parte nomes, obviamente sonantes, como Da Vinci, Isaac Newton e Jean Cocteau - e não poderia ter sido de outra forma.
Leonardo Da Vinci teria sido, mesmo, um autor que, decifrando mensagens antigas, teria transmitido, de forma encriptada, esse conhecimento antigo através da sua pintura - por exemplo, na Última Ceia, os traços femininos de uma das personagens permitir-nos-ia identificá-la como a companheira de Jesus, isto é, Maria Madalena: nesta leitura, não só ela estaria junto do Mestre na chamada Última Ceia, como, a ela se poderia identificar, por leituras simbólicas, o próprio cálice onde pela primeira vez se tinha ritualizado o sangue de Cristo. Maria Madalena era o “cálice”; Maria Madalena era o repositório do sangue de Cristo, o Graal.
Ora, nesta metáfora, nesta imagem, a gravidez resolve e dá solução à eterna questão do Graal: onde se encontra este cálice perdido? A resposta passava a ser simples, alucinante, tentadora e subversiva: o Graal era a descendência de Jesus e de Maria Madalena.
Dessa descendência teria resultado a casa real que originaria o Reino Franco. A linhagem teria sido perseguida pela Igreja, afirma quem se diz ter debruçado sobre a questão. Se as fontes para chegar a estes dados já eram nenhumas, o romanceado que desta conjectura parte é ainda mais duvidoso e, por vezes, de simplismos um pouco boçais.
O único dado certo, e de interesse no campo do estudo do fenómeno religioso, é que em torno dos monarcas merovíngeos se criou uma imagem de sacralidade e de posse de dons de cura que os torna próximos de uma ideia lata de sagrado.
Mas, donde nasce esta casa real que, realmente, tem na sua origem um interessante grupo de mitos e lendas?
Os Merovíngios reinaram sobre parte significativa da actual França, Alemanha, Suíça e Países Baixos entre os séculos V e VII; isto é, na época de charneira entre o chamado fim do Império Romano e o início da Idade Média. Correspondem a uma das mais bem conseguidas organizações ditas de bárbaras que atacaram e tomaram conta de uma parte significativa do mundo latino.
De facto, e após mais de um século de franca instabilidade entre povos invasores e tentativas, muitas vezes vãs, por parte das tropas imperiais, os monarcas merovíngios conseguem alguma eficácia no domínio e controlo de um território por um período largo de tempo.
Os Merovíngios devem o seu nome a Meroveu, rei semilendário a quem se atribui a fundação da dinastia. Sobre este mítico primeiro monarca, ainda pagão, não temos dados concretos. Apenas um grupo de lendas nos aponta algumas linhas de significação. Apenas sabemos que se terá aliado ao general romano Aetius para combater Átila, o Huno.
O neto de Meroveu, Clóvis de seu nome, foi o responsável pela conversão dos Francos ao Cristianismo (baptizando-se simbolicamente no Natal de 496), e pela unificação territorial dos reinos francos, derrotando os Burguinhões, os Alamanos e os Visigodos (estes últimos na Batalha de Vouillé, em 507).
Foi complexa e nada simples a vida deste poderoso reino. Por um lado, encarando o reino como um bem pessoal, não fazendo distinção entre direito público e privado, os monarcas foram-no repartindo pelos herdeiros: com o tempo, voltaram a formar-se vários reinos, todos eles cada vez mais fracos: a Austrásia, a Nêustria, a Aquitânia e a Borgonha. Por outro lado, e com a evolução da própria noção e forma de efectivação do poder, bem como da estrutura administrativa da casa real, os monarcas merovíngios foram delegando os seus poderes no prefeito do palácio (ou mordomo do palácio), a figura que foi reunindo em si a governação de facto do reino.
Criou-se uma verdadeira dinastia de prefeitos do palácio, estirpe esta legitimada miticamente pela vitória de um deles, Carlos Martel, em Poitiers, em 732, local e data onde as tropas muçulmanas foram finalmente, e a muito custo, repelidas. Reduzidos a um simples papel honorífico, pois a cristandade havia sido salva por Mardel e não pelo monarca, pouco tempo seria necessário esperar para que fossem destituídos do poder: Pepino, o Breve, escreve ao Papa, colocando-lhe uma questão simples, mas ardilosa: quem deve exercer o poder no Reino dos Francos; este, responde que à função de governar deve corresponder o título de rei. Assim, valida as pretensões do prefeito do palácio que, em 751, derruba o último soberano merovíngio, Childerico III.
Apodados de preguiçosos, estes reis de longas cabeleiras eram substituídos pela dinastia chamada de Carolíngia. Pepino, o Breve (o pai de Carlos Magno), ao depor o último merovíngio, e antes de o enviar para um mosteiro, ordenou que as suas longas barbas fossem cortadas, como sinal de humilhação e destituição do poder que detinha.
É interessante que, qual Sansão, tenha sido necessário cortar as barbas ao rei deposto. De facto, um dos atributos destes monarcas eram as pilosidades da sua cabeça: imagem da sua divindade, não cortavam cabelo e barba em toda a sua vida. Várias eram as marcas sagradas que neles estavam inscritas, começando pela própria concepção de Meroveu; tinha dois pais: um, o seu progenitor natural, outro, uma divindade marinha, o Quinotauro, que não resistira à beleza da dama grávida ao banhar-se no mar e com ela acasalara.
Nas veias de Meroveu corria o sangue franco misturado com o de uma figura mítica aquática. Os reis merovíngios eram, por esta forma, considerados reis-sacerdotes, nunca cortando o cabelo, e, de nascença, tinham uma cruz vermelha entre os ombros. Os seus trajes reais eram ornamentados com pendões que tinham poderes mágicos e curativos.
Outras supostas tradições dizem que a família real era descendente de Jesus e de Maria Madalena. Haveria, então, uma linhagem que ia de Jesus até à dinastia dos Merovíngios, os célebres reis taumaturgos que precederam Carlos Magno e a sua dinastia.
Por qualquer que fosse a razão, os monarcas desta casa reinante, que termina os seus dias em meados do século VIII, eram tidos como divinos curadores através do simples toque, isto é, taumaturgos. Carlos Magno e os monarcas seus sucessores vão catalisar, desenvolver e manter esta linha de alguma sacralidade aliada à função régia.
Muito de continuidade existe entre as figuras cimeiras destas duas dinastias, a merovíngia e a carolíngia. Clóvis, o primeiro monarca cristão merovíngio, baptiza-se no Natal; Carlos Magno, a figura mais marcante dos carolíngios, é coroado Imperador exactamente na noite de Natal do ano 800. Clóvis, o mais famoso dos reis merovíngios, fez, por volta de 496, um pacto com a então enfraquecida Igreja católica, para construção de um novo Império Romano, como se fosse um novo Constantino - submeteu à fé católica, além dos próprios francos, tornados cristãos no exacto momento em que o monarca se baptizara, os visigodos e os lombardos; a conversão de Clóvis ao catolicismo e não a uma das heresias então reinantes, marca o início de uma nova fase de segurança para o centro da cristandade normativa, Roma, agora percebendo a necessidade de manter sempre um braço secular activo e eficaz; Carlos Magno redefinirá essa relação, criando fraudulentamente a famosa Doação de Constantino que, séculos depois da morte do Imperador que supostamente a redigira, atribuía ao Bispo de Roma uma série vasta de territórios que o Papado manteria até à segunda metade do século XIX.
Carlos Magno apoia-se no que de positivo encontrou da formulação e práticas merovíngias. A apropriação do sagrado, que implicará disputas longas e ferozes com o Papado e demais poderes até, pelo menos no que respeita ao seu auge, à chamada Reforma Gregoriana no século XIII, ou mesmo até à Revolução Francesa já em pleno final do século XVIII, será uma forte linha de continuidade dos monarcas carolíngios em relação aos merovíngios: essa noção estaria profundamente enraizada nas ideias e práticas de poder, na forma como as gentes viam os seus suseranos.
Dinastia após dinastia, surge sempre visível esta não delimitação entre o espiritual e o secular, entre homem de armas e sacerdote que, no caso do monarca, encontra fundamentação no acto de cura régia. O monarca recebe consagração eclesiástica (principalmente com a unção), reforçando a ambivalência sagrado/profano.
O rito de cura régia durante a Baixa Idade Média seria simples. O rei levava as mãos às partes enfermas dos doentes e, logo após o toque, fazia o sinal da cruz. Eram estas, com pequenas variações, as acções básicas do rito. Ao que tudo indica, a crença no poder taumatúrgico dos reis passaria ilesa pelos tempos conturbados dos séculos XIV e XV.
Marc Bloch, já em pleno século XX, observou que na cerimónia de coroação de Luís XVI, em 1774, o número de inválidos e doentes que esperavam a bênção real para aliviar seus males havia diminuído sensivelmente em relação à coroação anterior, a de Luís XV. Apenas no fim do Antigo Regime a tradição e a crença milenar se começava a esvair. A ideia mantinha-se quase inalterada da mais longínqua medievalidade até ao Iluminismo.
Ora, e apesar de interessantes e ricas as tradições em torno dos monarcas francos, os problemas que surgem ao tentar relacionar essas dinastias com Maria Madalena são por demais complexos. Nem mesmo os textos apócrifos falam de algum relacionamento sexual entre Jesus e Maria Madalena. Mas, mais que provas de um relacionamento, é toda a ideia de salvação que seria posta em causa se este facto fosse verdadeiro.
Seria possível ver em Jesus, o Cristo, o Salvador, se ele tivesse descendência? Toda a sua dimensão de salvação por dádiva e sacrifício do seu corpo para redenção poderia cair pela base se existisse uma família, um filho, um grupo de mais eleitos, mais próximos, seus familiares.
Mas mesmo que eles existissem, qual seria a função desses seus filhos? O que seriam os netos de Deus? Ou melhor, os netos e, ao mesmo tempo, filhos, pois o Filho de Deus, Cristo, também é Deus? No horizonte teológico onde Jesus se enquadra, essa suposição não tem sequer lugar porque destruía a face divina do Jesus, impossibilitando-o de ser o Cristo, o Messias.
Qual retoma das ideias antigas de casamento sagrado, de hieros gamos , entre Deus, Jesus, e uma prostituta sagrada, Madalena, esta situação é de uma profunda paganização que, logicamente, nenhuma estrutura cristã alguma vez poderá aceitar ou sequer equacionar.
O que temos, de forma clara, é o resvalar da religião para a magia. Estamos, sem dúvida, num campo onde se situou um dos últimos e mais fortes campos de afirmação de religiosidades sincréticas: o poder de um salvador e os desejos de uma religiosidade profundamente ligada à magia. Não será por acaso que este mito encaixa exactamente na família de reis “bárbaros”, nos primeiros desses reis a abraçar o cristianismo, mas muito pouco cristãos.
Dan Brown, o autor mais famoso destas leituras, não faz mais que actualizar esse mito no sentido de lhe dar essa vertente de esoterismo que o Cristianismo tanto tentou lançar fora do seu mundo. O interessante neste fenómeno é, realmente, usar-se como ferramenta de construção do mito, as próprias bases da construção da religião.
De resto, nada aponta, de forma alguma, mesmo que leve, para alguma parcela de verosimilhança nesses textos. Pura imaginação, nem sequer especulação.
Quanto aos merovíngios, não há ninguém que consiga provar que é seu descendente. Da mesma forma, nenhum indivíduo consegue entroncar a ascendência da sua família no casal Jesus e Maria Madalena.
E mesmo os próprios monarcas merovíngios, saberiam que viriam a ser vistos como descendentes de Cristo? |