MARIA JULIETA MENDES DIAS
& PAULO MENDES PINTO

Maria de Magdala
a Mulher – a construção
do Culto – o caminho dos Mitos

6.3. O renascimento e auge do culto em terras dos Francos
6.3.1. As lendas de Tiago e de Madalena:
uma visão do sentido do culto

No mundo medieval, um culto religioso implicava um conjunto de dimensões complementares sem as quais o seu incremento seria sempre muito difícil. Todo o culto teria de ter um lugar na liturgia e no calendário religioso; todo o culto teria de ter um lugar de festejo principal; todo o culto com um local de festejo seria mais importante se apresentasse uma relíquia inequívoca que montasse uma directa relação ao santo cultuado, funcionando taumaturgicamente como motor de peregrinação.

As primeiras indicações relativas ao incremento do culto a Maria Madalena surgem por volta do século VIII, quer nos martirológios, quer na liturgia. As primeiras menções das relíquias da santa são da Abadia de Nossa Senhora de Chelles, também no século VIII.

Na passagem do primeiro para o segundo milénio da era cristã, está em pleno crescimento o culto das relíquias. Surgem, por toda a cristandade ocidental, romarias e peregrinações a santuários onde se acreditava estarem depositadas marcas de evangelistas, de discípulos, de mártires, de santos, da cruz ou das roupas de Cristo: n uma época em que o culto às relíquias tinha ganho um lugar de destaque quase mágico no escasso horizonte teológico que os cristãos dedicavam à sua fé, ter o corpo de um dos discípulos ou algum pedaço da cruz de Cristo era tornar-se num dos locais fortes do mundo ocidental.

Santiago de Compostela é o perfeito exemplo desta religiosidade que percorre toda uma Europa sedenta de milagres, todo um mundo desejoso de uma maior proximidade ao divino. Mais que exemplo, no caso de Santiago, temos um muito importante paralelo que reproduz parte do formulário religioso do principal santuário de Maria Madalena.

Santiago do «Campo de Estelas», ou do «Campo de Estrelas», terá nascido em pleno século IX quando se reclamou ter uma das relíquias mais importantes da cristandade. Estando os locais de Cristo e das origens da Igreja nas mãos do Islão, descobria-se, num antigo cemitério tardo-romano da Península Ibérica, num «campo de estelas», o corpo de um dos discípulos, Tiago.

Conta a tradição que, decapitado por Herodes Agripa, o corpo do discípulo foi colocado, bem ao gosto das lendas de Avalon, num barco. De Jafa, na Palestina, o corpo foi levado por forças divinas até Iria Flávia, na costa atlântica, a cerca de três dezenas de quilómetros da actual Santiago de Compostela. Depois de um dia de viagem num carro de bois, o corpo foi enterrado no exacto local onde eles, por vontade própria, pararam.

Conta ainda a tradição que, em 813, Pelágio, eremita que vivia junto a Iria Flávia, foi guiado por luzes, um «campo de estrelas», até um grande túmulo de mármore. As autoridades episcopais confirmaram ser o túmulo do apóstolo.

Significativamente, fora um Pelágio, desta feita não eremita mas cavaleiro, que se opusera em primeiro lugar ao avanço das tropas islâmicas, tornando-se no primeiro rei da reconquista. Esta coincidência de nome entre o primeiro monarca e o eremita que acha a sepultura do apóstolo tem um forte significado religioso, mas sobretudo ideológico e político.

De facto, Santiago de Compostela irá mergulhar as suas origens em dados que levaram ao nascimento de um outro santuário: Covadonga. A chegada das tropas muçulmanas a território ibérico dá-se em 711. Dizem as tradições que o penúltimo rei visigodo, Vitiza, quando ainda príncipe matou o Duque de Fáfila por questões amorosas; subindo posteriormente ao trono, desterrou para Toledo o jovem filho da vítima, Pelágio, herói cantado neste santuário.

Nesta imagem de intriga e de decadência como que se justifica a chegada das tropas islâmicas que, apesar de não-crentes, serviam os desígnios de Deus ao destronar os monarcas visigodos, claramente incapazes.

Com a morte de Vitiza, os seus filhos ainda jovens não tiveram o necessário apoio para subir ao trono. Foi Rodrigo, Duque da Bética, que se apoderou do poder, proclamando-se rei. Supostamente, dando ainda um maior colorido à trama, e legitimando a acção mourisca mas, ao mesmo tempo, subalternizando-a aos cristãos, os partidários dos filhos de Vitiza juraram vingança, enviando mensageiros aos mouros apontando os pontos fracos da península, por onde poderiam invadir.

Para fazer face a este perigo, Rodrigo juntou um exército de cerca de 100 mil homens, porém, mal treinados, mal armados e pouco disciplinados. O exército invasor seria menor, mas regular, bem equipado e disciplinado. O rei Rodrigo desaparecia, deixando uma aura mítica buscada durante séculos de um D. Sebastião. Pelágio, que participou na batalha, escapou, refugiando-se nas Astúrias.

De D. Pelágio, o lendário instigador da reconquista cristã, logo em 718 ou 722, pouco sabemos. Iniciada nas agrestes montanhas das Astúrias, por muito tempo apenas por ai ficaria. Só dois séculos mais tarde se poderá afirmar que um movimento de conquista parte, de forma consistente e continuada, de Norte para Sul. Além dos mitos, até essa altura apenas se tratou de sobrevivência.

Na senda do mito, diz-se ainda que o governador muçulmano de Gijón, se terá enamorado pela irmã de Pelágio. Para concretizar a sua união à jovem cristã, terá enviado Pelágio para Córdoba como refém. Mas Pelágio terá conseguido fugir e voltar para as Astúrias, onde se opôs ao casamento da irmã com o mouro. Perseguido, exilou-se para as regiões montanhosas. Lá, em 718, reuniu um grupo numeroso de nobres cristãos e foi por eles aclamado rei.

Começada a resistência de guerrilha, Pelágio granjeia fama. Tariq, que tornara Córdoba sua capital, decide enviar um forte contingente contra o pequeno monarca cristão que começara a colocar alguns problemas na caminhada contra o reino Franco.

Pelágio refugiou-se com mil de seus combatentes numa grande gruta natural no monte Auseva, com provisões para muitos dias. O exército muçulmano sitiou o local e terá enviado o bispo metropolita de Toledo ou Sevilha, Opas, filho de Vitiza, para tentar levar os cristãos à rendição. Diz a lenda que Pelágio lhe terá respondido que os cristãos confiavam em Deus e na ajuda de sua Mãe Santíssima, pois era por eles que lutavam.

Iniciado o ataque à cova escarpada, tudo o que era arremessado pelou mouros lhes tornava a cair em cima. Com muitas baixas obtidas desta forma, os cristãos ganharam ânimo e lançaram um ataque. Terão dizimado o inimigo em fuga. O bispo Opas foi feito prisioneiro e Alcama, que dirigia as tropas muçulmanas, morto.

O herói de Covadonga faleceu, provavelmente, em 737, mas deixou um inigualável património mental numa elite guerreira e religiosa: a reconquista.

É este património que, exactamente um século mais tarde, já com parte do Norte da Península Ibérica sob domínio cristão, e isto pouco depois do reinado simbólico de Carlos Magno (coroado imperador na noite de Natal de 800), Santiago de Compostela irá desenvolver e levar a limites que Covadonga nunca ambicionou.

Após a descoberta do túmulo, de imediato, Afonso II integrou esta milagrosa descoberta na ideológica luta contra o mouro. Na batalha de Clavijo, em 844, era o próprio discípulo que aparecia num cavalo branco a comandar o exército cristão - a adopção da própria imagética islâmica resultava no facto do santo cavalgar exactamente num cavalo branco como Maomé fizera aquando da sua subida aos céus em Jerusalém, como se Tiago fosse um anti-maomé, um anti demónio, tal como o Profeta do Islão era caracterizado.

Estava inflamada a luta contra o muçulmano, com a vantagem de, com o corpo de um discípulo por perto, estar totalmente legitimada a guerra contra os reis islâmicos – era, de facto, uma “re”-conquista. Se a Ibéria tinha sido eleita como o seu local por um dos seguidores directos de Cristo, este território era, então, legalmente dos cristãos. A guerra era justa.

Em 950 já tinham lugar peregrinações estrangeiras ao local. A abadia de Cluny, que na época encetava uma profunda revitalização da vida espiritual e monástica da cristandade ocidental, apoiou este novo centro de devoção.

Local de grandes peregrinações, eram quatro os principais caminhos que traziam, e ainda trazem, peregrinos de toda a Europa Ocidental e Central a Santiago: um por Tours, um outro por Le Puy, outro ainda por Arles e, significativamente, um último por Vézelay, o centro do culto a Maria Madalena nos séculos XI, XII e XIII.

A nível de sentido, a lenda de Maria Madalena enquadra-se na mesma ideia forte da de Tiago: vir a morrer, ou, ser sepultado, no Ocidente, que antes se escolhera como local de pregação – o Ocidente, onde se põe o Sol, não é, desde tempos pré-históricos, o local de destino dos mortos? Tiago viera retomar o lugar onde antes, segundo a lenda, supostamente evangelizara; Madalena viera também evangelizar, morrendo no Ocidente, sem nunca dele se retirar.

Duas lendas correriam sobre a vinda de Maria Madalena para as costas mediterrâneas da Gália. Segundo uma, perseguidos pelos judeus, Lázaro e a família fogem para este local; segundo outra, ainda mais próxima da de Tiago, os mesmos judeus, querendo dar um mau destino a Lázaro e aos seus, colocaram-nos à deriva num barco que, pela mesma providência divina que trouxera Tiago até às costas da Galiza, os leva a aportar na Gália – o horizonte mítico usa exactamente os mesmos produtos na narrativa.

Enquanto os seus companheiros se dedicavam à evangelização da região, Maria Madalena retirara-se para uma zona florestal inóspita, percorrendo um caminho iniciático de vários anos em que expiaria os seus pecados. Recolhida no deserto-floresta que se identificou como sendo uma serra com pouco mais de mil e cem metros de altitude a cerca de 30km de Marselha, Madalena isolava-se do mundo, negando-o. A matéria-prima para a visão de uma santa dedicada à sua salvação, pelo pagamento das suas culpas, estava em plena construção.

A lenda do apostolado provençal apenas seria posta em causa no século XVII, e duramente combatida por intelectuais e padres provençais. Profundamente enraizada na identidade colectiva, ainda no século XX se deram várias duras disputas entre correntes de interpretação desta lenda; por detractores ou apoiantes, muitas páginas inflamadas foram escritas no século passado sobre a veracidade, ou não, da vinda da santa para terras francesas.

Segundo o levantamento realizado por Victor Saxer, entre os séculos VII e X existiam, na Europa Ocidental, 33 locais de culto madaleniano. Destes, dois eram nas Ilhas Britânicas e apenas um na Península Ibérica, em Córdova. Todos os restantes se situavam na actual França, mas parte significativa a Norte e não no Sul, talvez devido a uma menor organização do território, a uma necessidade mental e política de centrar a cristandade mais a Norte, na região da capital de Carlos Magno (Aix-la-Chapelle), longe das zonas problemáticas do Mediterrâneo onde mouros, vikings e hereges, como os Cátaros, tornavam tortuosos os caminhos de um cristianismo minimamente normativado e organizado.

No século XI, o número de santuários ascende, numa progressão quase geométrica, a 80. Destes, um encontra-se na Península Ibérica, em Oviedo, e quatro na Península Itálica (Albaneta, Arezzo, Messina e Modena). É neste século que surgem alguns santuários na Borgonha, nomeadamente Vézelay. Tal como o local de culto ao discípulo Tiago, Compostela, que será uma das principais armaduras teóricas para a chamada reconquista cristã na Península Ibérico, também Vézelay o será no campo mais largo das Cruzadas contra o domínio islâmico na Terra Santa: será nesta abadia que Bernardo de Claraval pregará a II Cruzada, a 31 de Março de 1146; será ainda aqui que se reunirão em 1190 o rei de França, Luís VII, e Ricardo Coração de Leão, herdeiro de Henrique II de Inglaterra, na partida para a III Cruzada, após a reconquista de Jerusalém pelos muçulmanos em 1189.

Entre os anos de 1100 e 1146 encontram-se documentados 116 santuários. O Sul das Ilhas Britânicas conta com 10. O Centro e o Norte da actual França encontram-se repletos de pequenos locais de culto, agora estendido ao Sul mediterrânico. A segunda metade do século acentua este crescimento, quer nas Ilhas Britânicas, quer no continente, apresentando-nos 125 santuários que, no século seguinte, passarão a ser 130.

O século XIV mostrar-nos-á o pleno do culto a esta santa. Numa época já profundamente marcada pelo trabalho espiritual dos mendicantes, o número de locais de culto ronda os 200, mais propriamente 196.

Nos dois séculos seguintes, os locais de culto centrar-se-ão nos dois extremos da Gália: Norte, Bretanha, e Sul, Mediterrâneo.