MARIA JULIETA MENDES DIAS
& PAULO MENDES PINTO

Maria de Magdala
a Mulher – a construção
do Culto – o caminho dos Mitos

7. Nasce uma nova espiritualidade
7.1. O «dom das lágrimas»: penitência, arrependimento e pureza

A partir do século X da nossa era, surgem diversas «Vidas» de Maria Madalena. Seguindo Gregório Magno, que séculos antes confundira esta mulher com várias outras, em especial com uma prostituta, Honório de Autun, no seu Speculum Ecclesiae, coloca Madalena como uma figura paradigmática na questão de pecado, da misericórdia divina e da penitência, descrevendo-a como uma adúltera, que se tornou meretriz, sendo posteriormente salva pela clemência de Jesus. Tanto ele como Gregório Magno a descrevem como escrava da luxúria, ao contrário de Marta, sua irmã. Após a morte do Cristo, Maria passaria o resto de sua vida em penitência numa gruta junto a Marselha, segundo uns, ou ainda na num deserto na Palestina, segundo outros. Teria vivido até o fim de sua vida em penitência e adoração ao Cristo. Não se alimentando, os anjos vinham em seu auxílio, como aquando da fuga de Jesus para o deserto durante 40 dias, até que veio a falecer e sua alma foi levada, por um cortejo de anjos, para o céu. Conta a tradição que foi assistida no seu leito de morte pelo bispo Maximinus, que lhe deu a extrema-unção e a enterrou.

Os séculos seguintes ao virar do milénio são ricos em reflexão sobre essa premente questão que é a do pecado, da culpa. Pouco tempo depois da data de sagração da abadia de Vézelay, nascia o purgatório, um local de purga, possivelmente entre 1170 e 1180. Neste quadro teológico, Madalena estava pronta para encarnar a figura exemplificativa da pecadora que se entregara completa e totalmente à tarefa hercúlea de limpar a sua alma.

A onomástica mostra-nos o nascimento da piedade pessoal associada a esta nova forma de estar. Em 1084 e em 1093 existem já meninas com o nome Madalena (em Tours e Mans, respectivamente); o uso do nome, marcado sempre pelas modas, ou melhor, pelas dominantes do imaginário colectivo, mostra-nos o nascimento de uma proximidade ao culto que se revela na atribuição da designação da santa aos membros de uma geração.

Pouco depois, em 1105, Godofredo de Vandoma compõe o Em honra da bem aventurada Maria Madalena…………………………..

O século XII, o tempo das catedrais, como tão bem imortalizou George Duby, foi o tempo do grande impulso do culto a Maria. Mas tratou-se de uma afirmação de Maria neste jogo de negação de tudo o que era corpóreo, pecador. Maria tornou-se, assim, de tão perfeita e longe das mulheres, de tão a-mulher, inacessível.

É enaltecido e fomentado o casamento sem união sexual, com profunda e devota castidade. Muitas são as mulheres que recusam o sexo nupcial e assim atingem uma nova forma de santificação pelo sofrimento que lhes é infligido pelos deveres conjugais.

Plenamente esposas e plenamente santas, é o ideal de compromisso entre a natureza suposta da carne feminina e o fascínio pela santidade, pela busca do sofrimento redentor, do martírio do corpo.

Muitas são as rainhas e princesas beatificadas e canonizadas entre os séculos X e XV, como os casos das portuguesas Santa Joana Princesa (1452-1490; filha do rei Afonso V e de sua primeira mulher, Isabel de Coimbra, Joana foi regente em 1471, por altura da expedição de Afonso V a Tânger; recusou várias propostas de casamento, e professou votos no Convento de Jesus de Aveiro em 1475, tornando-se dominicana; Joana foi canonizada em 1693 pelo Papa Inocêncio XII), anteriormente, Mafalda (c. 1200-1256), Sancha (c. 1180-1229) e Teresa (1181-1250), irmãs, filhas de Sancho I, ou a mais conhecida Rainha Santa Isabel (Saragoça, 1271 - Santarém, 1336; infanta aragonesa e, de 1282 até 1325, rainha de Portugal por casamento com D. Dinis).

Numa época de nova e profunda evangelização das gentes, e com uma Virgem Maria colocada nos píncaros do que não existe, totalmente inacessível, Maria Madalena voltaria a ter os seus dias de glória, com o culto, em terrenos actualmente franceses, o atesta. Maria Madalena, pelos motivos que fizeram com que fosse arredada do protagonismo piedoso, tornava agora como aquela que se arrependera, lavara os pés do seu Senhor com as suas lágrimas, a perfeita imagem de uma das virtudes mais cantadas, o arrependimento, ou melhor, o arrependimento tido como necessidade e desejo, tão bem inscrito no chamado Dom das Lágrimas – uma atitude que vê no choro uma forma de purificação, mas mais que isso, uma limpeza espiritual, um acto que tem antes de si um desejo, um impulso que o torna uma busca: o Dom das Lágrimas procura-se, obtém-se, não é simplesmente oferecido, merece-se.

No Antigo Testamento, as lágrimas já eram tidas como uma virtude, como uma aproximação a Deus, que podemos encontrar, por exemplo, no livro das Lamentações (1, 16): Meu olho, meu olho em lágrimas se desfaz. Ah! Quem perto de mim me reanimará? Ou no Salmo 137: Junto dos canais de babilónia nos sentaremos a chorar com saudades de Sião. Ou ainda, de forma colectiva, numa situação oracular, e com singular destaque para as mulheres:

Zacarias 12, 11-14:

Naquele dia, haverá um grande pranto em Jerusalém, como o pranto em Hadad-Rimon na planície de Meguido. E o país chorará cada tribo em separado:

a tribo da casa de David à parte,

com as mulheres separadamente;

a tribo da casa de Natan à parte,

com as mulheres separadamente;

a tribo da casa de Levi à parte,

com as mulheres separadamente;

a tribo de Simeão à parte,

com as mulheres separadamente.

Todas as outras tribos,

tribo por tribo, separadamente,

com as mulheres à parte.

Desde as próprias descrições da vida de Jesus, que a questão das lágrimas era tocada e tocava fortemente os cristãos. No Evangelho de João, Jesus chorara por Lázaro ao saber da morte deste (11, 35); de forma semelhante, choraria ainda por Jerusalém ao saber do seu futuro (Lc 19, 41). Em sentido contrário, por Jesus, mas também por si, pela situação em que se encontrava, choraria Pedro após o mais famoso cantar de um galo da História da Humanidade (Mt 26, 75):

No mesmo instante, o galo cantou. E Pedro lembrou-se das palavras de Jesus: «Antes de o galo cantar, me negarás três vezes.» E, saindo para fora, chorou amargamente .

E ainda, as mulheres que o acompanhavam nos seus momentos derradeiros, antes de crucificado, a caminho do calvário – quem sabe se entre elas estaria Madalena (Lc 23, 27-28):

Seguiam Jesus uma grande multidão de povo e umas mulheres que batiam no peito e se lamentavam por Ele. Jesus voltou-se para elas e disse-lhes: «Filhas de Jerusalém, não choreis por mim, chorai antes por vós mesmas e pelos vossos filhos» .

Mas até a própria Madalena chorara numa das mais significativas passagens dos Evangelhos (Jo 20, 11):

Maria estava junto ao túmulo, da parte de fora, a chorar. Sem parar de chorar, debruçou-se para dentro do túmulo e contemplou dois anjos vestidos de branco, sentados onde tinha estado o corpo de Jesus, um à cabeceira e o outro aos pés. Perguntaram-lhe: «Mulher, porque choras?» E ela respondeu: «porque levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram».

Dito isto, voltou-se para trás e viu Jesus, de pé, mas não se dava conta de que era Ele. E Jesus disse-lhe: «Mulher, porque choras? Quem procuras?» Ela, pensando que era o encarregado do horto, disse-lhe: «Senhor, se foste tu que o tiraste, diz-me onde o puseste, que eu vou buscá-lo». Disse-lhe Jesus: «Maria!». Ela, aproximando-se, exclamou: «Rabbuni!»

Nesta situação de choro, Maria Madalena conseguira atingir o pleno conhecimento do que acontecera: Jesus era, de facto, o Cristo que ressuscitara. Mas mais, o diminutivo com que trata o Salvador mostra a clara e franca proximidade que, de forma extrapolada, nos poderia levar a muitas conjecturas para as quais não temos argumentos.

Se juntarmos a esta a situação ainda mais tida ao longo da História, que não sendo uma situação com Madalena, a ela foi atribuída, da mulher que com os cabelos e lágrimas lava os pés de Jesus, o que temos de significado em torno do culto e da imagem que desta santa se criou?

Ora, seguindo as tradições cristãs antes elencadas, aproximemo-nos de Maria Madalena através de uma lenda escrita em grego no século VI. Teófilo era intendente da igreja de Adana, na Cilícia. Aquando da morte do bispo local, ele é apontado como o futuro prelado. Teófilo recusa e é eleito um outro clérigo, caindo em desgraça. Com rancor, e sintomaticamente ajudado por um judeu, Teófilo faz um pacto com o Diabo. Posteriormente, vendo o seu erro, arrepende-se e invoca a Virgem Maria em seu auxílio.

Traduzida para latim na época carolíngia, na passagem do século VIII para o IX, este texto faria furor nos séculos XI e XII, época do crescimento acentuado do culto mariano, mostrando-se aqui uma Virgem Maria que vencia e dominava o demónio.

Vários autores citam, contam e recriam esta lenda. Uma Vida de Teófilo é escrita nos meios letrados angevinos, talvez por um tal Marbode de Rennes. Mantém-se significativamente próximo da versão grega. Coloca Teófilo perante Maria; este tem de argumentar, de se defender. Cita outros exemplos de arrependidos que conseguiram regressar ao lado correcto, ao mundo de Deus: Rahab, David, Pedro, Zaqueu, Paulo, Cipriano. O poeta segue a versão grega, apenas acrescenta entre Pedro e Zaqueu um novo nome: Maria Madalena. Justifica: ela que, chorando, conseguiu abolir as máculas dos seus crimes, doravante preciosa ao Senhor, doravante celebrada pelos séculos (PL 171, col. 1599).

Muitos serão os autores a ver na figura de Madalena a chave para a salvação dos seus pecados. Imagem desse arrependimento sincero e conseguido nas profusas lágrimas, Maria Madalena expiara ainda os seus pecados com duras provações no fim da sua vida. Marbode de Rennes, Anselmo de Cantuária, entre outros teólogos, esperam que a santa seja a máquina redentora da sua anima peccatrix - já S. Jerónimo enaltecera esse domar da carne rebelde jejuando semanas inteiras (PL 22, col. 398).

Mais uma vez o erro, a interpretação menos certa, levava Maria Madalena a uma nova fase da sua vida literária – quem, na casa de Simão, o Fariseu, banhara os pés de Jesus com as suas lágrimas, enxugando-os de seguida com os seus cabelos, fora uma mulher não nomeada, uma pecadora, não Maria Madalena. Desta vez não resultaria num afastamento, mas sim num reencontro: pelo dom das lágrimas, Maria de Magdala ascendia ao protótipo do arrependimento, à perfeita imagem de como aquele que era tido como um dos mais vis dos seres humanos, maltratado e humilhado, quando não morto publicamente, podia atingir a Deus. Os séculos dos mendicantes estavam a chegar.

Logicamente, este crescimento do culto, esta renovação e redescoberta da figura de Maria Madalena muito tem a ver com o enquadramento religioso geral dos séculos XI e XII. É por esta altura que é inventado o Purgatório, local de esperança, mas ao mesmo tempo, de temor. A imagem de Maria Madalena é esta junção entre a pecadora que pode entrar nas portas do Paraíso, mas apenas ao preço da confissão, do arrependimento e, em especial, da penitência.

Esquecido o facto de que foi ela, a Madalena, que descobriu Jesus ressuscitado e o anunciou aos restantes, a partir desta época, a santa apenas interessará na medida em que é a imagem perfeita da capacidade humana de arrependimento. Fardilha, em 1562, no seu diálogo Imagem, bem o denota de forma clara:

e ainda que todas as vidas dos santos me espantam, a da Madalena mais que a de muitos outros, em especial quando cuido com quanta vontade deixou o mundo e as riquezas e vaidades, e se veio meter nesta concavidade deste outeiro, que lhe Deus aqui deparou, tão longe de sua terra, tão diferente de suas imaginações passadas, e tão conveniente a suas contemplações presentes (………………….)

Com o seu significado centrado na questão do arrependimento, a imagem da mulher que chora e enxuga as lágrimas nos pés de Jesus com os próprios cabelos seria, por séculos, a funcionalidade da santa. Sendo as lágrimas difíceis de descrever, de fazer figuração, eram os cabelos, que agora seriam cada vez mais retratados longos, abundantes, capazes de envolver uns pés e de enxugar abundantes lágrimas, que significavam todo um arrependimento de anos de vida longe dessa nova moral religiosa.

Muitas serão, ao longo do Renascimento, e mesmo depois, as fontes onde foi colocada uma imagem de Madalena. Num misto da imagem da sua capacidade de, com o líquido dos seus olhos, expiar os seus pecados, e da pureza inerente à água de uma fonte, quase baptismal, Madalena surge representada em fontes variadas, como a que ainda hoje se pode contemplar junto ao antigo convento dos dominicanos, em S. Domingos de Benfica (Lisboa).