Num mesmo movimento religioso, Vézelay desenvolve-se, centralizando o culto a Maria Madalena, como um dos locais de mais devotas e numerosas peregrinações cristãs. Em 1050, quando as peregrinações a Santiago estão a iniciar a sua época mais importante, a abadia de Vézelay é colocada sob a protecção de Maria Madalena (começando-se a construir uma nova em 1096), ao mesmo tempo que uma miríade de locais de culto dedicados à santa nasce por quase toda a actual França, mormente na Borgonha.
Vários santuários reclamaram ter as suas relíquias. Desde o século VIII, altura do renascimento do culto, que se multiplicaram os locais do descanso eterno da santa. O que recolherá primeiramente, e durante alguns séculos, mais visitantes e mais respeito na cristandade ocidental é, sem dúvida, Vézelay. Pela mesma época, mas no Oriente, em Jerusalém, nascia o mosteiro de Maria Madalena, junto à Porta de Herodes, a norte da Via Dolorosa, um dos locais então mais procurados pelos peregrinos.
Segundo os hagiógrafos, o corpo de Maria Madalena fora levado para Vézelay a 19 de Março de 749, ou no mesmo dia de 745, segundo outras fontes. Teria sido na década de 1uarenta do século VIII que, por iniciativa do Conde de Girard e do abade de Vézelay, Eudes, Badilon teria ido a Aix-en-Provence (onde posteriormente se desenvolverá o culto a Maria Madalena no santuário de Saint- Maximin) resgatar as ossadas da santa – significativamente, o ataque muçulmano tinha destruído tudo em torno do local, excepto o mausoléu de Madalena.
Badillon confirmou estar perante o local de depósito do corpo da santa através deste milagre, coadjuvado pelo facto dele exalar um suave perfume. Era Maria Madalena. A 19 de Março o corpo ia para Vèzelay, consumando-se o furtum sacrorum, justificado pela necessidade de manter intactas as relíquias nesse contexto de luta contra o infiel.
Esta lenda, agora conhecida como translatio posteriori, terá sido escrita muito depois. Mesmo a data para o início do culto necessita, obviamente, de cuidados importantes; voltando ao caso do culto composteliano ao apóstolo Tiago, este nascerá apenas cinquenta anos mais tarde, integrado numa mesma forma de religiosidade. Tudo aponta que o culto a Maria Madalena nasça nesse período.
Historicamente, os dados que temos sobre o culto cristão na região afiguram-se-nos de uma significativa incerteza, cobertos de algumas especificidades que merecem a nossa redobrada atenção. Entre o mito e a realidade que a ele terá dado corpo, podemos lançar o nascimento de todo o processo conducente à abadia de Vèzelay para Girard de Roussillon, duque de Lyon e familiar dos condes de Autun, regente da Provença e herói famoso das canções de gesta. Terá sido ele a fundar, entre 855 e 859, um mosteiro feminino junto à actual aldeia de Saint-Père. Girard de Roussillon terá, ainda, fundado, junto ao seu castelo, um outro local agora dedicado a acolher monges– rapidamente o local acolheria exclusivamente religiosos. Em 863, o papa Nicolau I atribuía uma bula aos dois locais, colocando-os directamente sob a sua guarda.
Aquando das ofensivas normandas, em 887, os monges terão fugido para uma floresta vizinha onde, num ponto alto, se encontrava um antigo oppidum, organizando-se em torno de Eudes, o abade de então. Não abandonando o local, no século X, a comunidade atingia uma significativa riqueza e opulência.
O mosteiro primitivo deve ter sido fundado sob a invocação de Santa Maria. Contudo, na passagem do século X para o XI, profundas alterações se verificam na orientação religiosa do espaço. O abade Geoffroy (1037-1051) deve ter lançado fortemente uma política de novo direccionamento da abadia. O fenómeno de aproximação a Maria Madalena deve ter tido base num sermão atribuído a Odon de Cluny (879 - †942) em que Maria Madalena era apelidada de «Estrela do Mar», numa clara aproximação à sua vinda da Palestina para a Europa, usando uma imagética em tudo semelhante à encontrada para localizar o túmulo de Tiago em Compostela, «Campo de Estrelas». Neste sermão, Odon fazia uma interessante e importante junção entre os dois opostos que iriam fraccionar muita da piedade pelos séculos seguintes: Maria Madalena, pecadora como Eva, Maria como a Virgem.
Ora, esta história piedosa deve ter ganho algum destaque, alguma circulação, no início do século XI. O culto ganha folgo em vários locais: Verdun (1024), Bayeux (1027), Reims (1034), Besançon (1050).
Victor Saxer nota que, o arcediago de Verdun, Ermenfroi, o arcebispo de Besançon, Huguen, e Geoffroy, abade de Vézelay, eram muito próximos. Este último, como reformador cluniacense, conheceria as obras que em Cluny tinham sido redigidas sobre Maria Madalena. Mais, pela época, corria na Borgonha uma crónica anónima que dizia que, por intercessão de Maria Madalena, toda a região iria entrar, em 1040, numa paz de Deus, terminando, assim, todas as guerras a contendas existentes.
Os frutos deste trabalho de Geoffray, cimentado ou alicerçado no recrudescimento da piedade em trono da santa, dava frutos. A 25 de Abril de 1050, o papa Leão IX assinava uma bula em que colocava Maria Madalena como um dos santos com invocação em Vèzelay, acima de S. Pedro, de S. Paulo e da Virgem Maria – os seis meses anteriores passara-os, significativamente, Geoffray em Roma.
A 6 de Março de 1058, o Papa seguinte, fazia de Maria Madalena a única patrona da abadia, confirmando a presença das suas ossadas no local.
Para além deste elenco de aspectos soltos e algo intrigantes, as fontes escritas que temos para compreender a história da abadia de Vézelay são escassas, viciadas, lacunares e imprecisas. Trata-se de dois textos, duas crónicas: a Crónica Breve e a Grande História. Parte da primeira deve ser um resumo da segunda. Quer o texto maior, quer o texto menor, no que concerne aos dados até 1167, devem ser de redacção de Huges le Poitevin.
Os dados anteriores a 1167, redigidos com uma letra uniforme, de uma mesma mão, são cronologicamente muito pouco precisos, devendo ser aferidos em cerca de trinta anos - por exemplo, o papa Nicolau III é colocado a receber a dedicação da abadia em 828, quando ele é Papa, apenas mais tarde, entre 858 e 867. Entre 1176 e 1216, nenhum dado é referido, talvez devido às lutas entre a abadia, a comuna de Vézelay e os condes de Nevers. Os conteúdos apresentados na Grande História estão mesmo significativamente comprometidos com as facções e abades que, supostamente, melhor defenderam os interesses da abadia.
DE facto, no século XII, o poder de Vézelay era enorme e complexo nas suas relações institucionais e religiosas. Cluny dominava a abadia e a escolha dos respectivos abades. Monarcas convivem e vivem neste espaço. As lutas de poder são bastante grandes. No cisma de 1159, a abadia fica ao lado do papa Alexandre III, contra o anti-papa Victor IV, que fora reconhecido por Cluny.
Vézelay irá ser um dos centros simbólicos mais fortes no contexto das cruzadas. Tal como Compostela, o local onde se encontrava depositado o corpo de outro dos próximos de Jesus, também Vézelay será central na luta contra o Islão. É aqui, em Vézelay, que Bernardo de Claraval, a pedido do papa Eugénio III, centrará parte da sua pregação apelando à II Cruzada, será ainda aqui que se reunirão em 1190 o rei de França e Ricardo Coração de Leão, herdeiro de Henrique II de Inglaterra, na partida para a III Cruzada. Mais uma vez, Compostela e Vèzelay estavam significativamente próximas no ideário – não seria por acaso que um dos mais populares caminhos para Santiago, por terras francas, partia exactamente de Vézelay.
Bernardo de Claraval segue exactamente o mesmo modelo de milagres que podemos encontrar descritos para Maria Madalena em Vézelay. Conta a tradição que, na Alemanha, em Mayence, curou, num só dia, nove cegos, dez surdos ou mudos e dez mancos (terá sido tão grande a afluência de doentes, que o santo foi “salvo” da multidão pelo próprio monarca, o rei Conrado. Ora, é este o campo de milagres apontado à santa: dar a vista a cegos, dar a fala a mudos, o ouvido a surdos, e o movimento a quem não o tinha.
Posteriormente, em 1217, os franciscanos instalam-se numa colina sobranceira à abadia: as alterações religiosas da época fazem-se sentir profundamente no primeiro quartel deste século. São Luís (1214-1270) viria ao santuário madaleniano vinte e quatro vezes. Mas o incremento da piedade em torno da santa daria o pior golpe ao seu culto.
A decadência da peregrinação a Vèzelay era já significativa em 1267, ano em que se realizara a relevatio das relíquias, isto é, o ano em que as relíquias foram consideradas verdadeiras e, posteriormente, divididas, compradas, ofertadas, esvaziando de sentido o até então local de peregrinação.
A época a que correspondem estes acontecimentos é profundamente marcada na abadia por revoltas constantes dos monges. Quer o monarca, quer o papado, mantiveram duras lutas na gestão dos equilíbrios de força entre as autoridades eclesiásticas regionais, os nobres locais e os monges, ávidos de manter todo o seu poder inalterado. A mais dura revolta teria lugar em 1258; um ano depois, o papa Clemente IV manda realizar um inquérito no terreno; São Luís faz a gestão possível no plano militar.
Mais, a abadia tornara-se local de fácil asilo, numa época em que o poder real e os poderes senhoriais se tentam afirmar fortemente no campo da aplicação da justiça.
Quer, talvez decorrente de uma visão negativa da abadia, dos seus monges e dos problemas constantes por eles criados, quer pela piedade que na época elevava o valor mágico das relíquias a um patamar bastante elevado, no ano de 1267 reúnem-se em Vèzelay várias altas personalidades. O resultado desta peregrinação será o fim do lugar de destaque do santuário.
A 11 de Setembro, Simon de Brion era enviado pela Santa Sé a Vèzelay. Nesse momento, dois outros inquiridores de Roma já se encontravam na abadia. Perante a tarefa requerida pelo Santo Padre, os monges preferem que a condução seja dada a Guilherme de Mello, um antigo visitante regular.
Na noite de 4 para 5 de Outubro, a cerimónia tem lugar. O túmulo da santa é aberto para se verificar da autenticidade das relíquias nele contidas. O corpo encontrava-se dentro de um cofre de bronze, apresentando longos cabelos, lembrando e colando Madalena às figuras da mediterrânica Santa Egipcíaca e da bretã Lady Godiva.
Para além de um corpo, claramente feminino pela marca da longa cabeleira, encontrava-se no cofre um bilhete, uma carta, assinada pelo já então mítico Carlos Magno.
Em nome da Santa e Indivisível Trindade, Carlos, rei pela Graça de Deus.
Compete à majestade real dar satisfação aos pedidos justificados e autenticar com a nossa assinatura e nosso selo aquilo que convém transmitir à memória da posteridade. Em consequência, saibam e sejam informados todos os fiéis que neste santo túmulo jaz o corpo da muito santa Maria Madalena.
Apesar de, diplomaticamente, este texto conter alguns traços dos documentos exarados pela chancelaria imperial de Carlos Magno, a verdade é que hoje em dia a sua datação é considerada significativamente posterior. Mas, desta forma que hoje nos pode parecer algo simplista, apenas com um bilhete supostamente assinado por um monarca anterior, se validava uma das mais importantes relíquias da cristandade. Previa e cuidadosamente colocada no cofre, a pseudo missiva carolíngia dava a Vèzelay uma validade santa que implicaria rapidamente a trasladação dos restos mortais de Madalena.
Comprovada a veracidade do corpo de Maria Madalena, a 24 de Abril de 1267, um domingo, dava-se a cerimónia da trasladação solene do corpo. Presidida por São Luís, rei de França, nela compareceram enviados papais, familiares do monarca francês, o Bispo de Auxerre, Guilherme de Mello, o Conde de Poitiers, o Conde da Champagne e Rei de Navarra, o Duque da Borgonha, o Conde de Der, entre muitos outros notáveis. A turba de peregrinos sem nome era inúmera.
Nesta cerimónia, Vèzelay via desaparecem muitas das partes da ossatura santa. O Rei, por exemplo, ficava com um braço, um maxilar e ainda três dentes. Muitos dos outros presentes seriam agraciados com relíquias que iriam ser depositadas em muitos dos restantes santuários dedicados a Maria Madalena e que, pela época, pululavam pelo Norte e Centro da actual França. A atomização do culto era inevitável, em desprimor para com o grande centro de peregrinação.
O poder simbólico da abadia desaparecia, assim, disseminado por um sem número de belas peças de ouro e prata, relicários tão ao gosto da época, exemplos pios de uma religiosidade que tinha agora o seu auge no culto das relíquias.
Por fim, para a vida da abadia e do próprio culto europeu a Maria Madalena, o ano de 1279 seria fulcral. Numa outra região de França, agora no Sul mediterrânico onde a santa teria inicialmente aportado, em Saint-Maximin, descobriam-se novas relíquias. Estava criado o novo folgo do culto. Estava findo o ciclo de Vèzelay. |