MARIA JULIETA MENDES DIAS
& PAULO MENDES PINTO

Maria de Magdala
a Mulher – a construção
do Culto – o caminho dos Mitos

3.1. A prostituição na tradição judaica: a metáfora do mal

As metáforas da prostituição são de uma riqueza imensa na mentalidade e na teologia hebreia. Se há campo religioso onde nos podemos deliciar com uma profícua e multifacetada actividade intelectual, ele encontra-se na multitude de formulações, paralelos e aplicações da ideia de prostituição no Mundo da Bíblia.

Vimos antes que a prostituição, se ligada ao horizonte da divindade, e em certas culturas, podia não ser negativa, mas sim tomada como uma função natural dentro da sociedade. Veremos agora como essa mesma actividade, agora formulada fora ou mesmo contra a divindade, tomou foros da grande crime, de magna ideia do mal e do máximo afastamento a Deus.

Se pensarmos numa genealogia historicista da ideia, temo-la primeiramente aplicada às cidades de Sodoma (Génesis 19) e Gomorra. Cidades destruídas por Deus devido ao desregramento que nelas se vivia, a prostituição era a imagem cimeira de toda uma falta colectiva, moral e ética, que tinha nas práticas sexuais a sua maior efectivação.

Mais que Sodoma e Gomorra, a plena imagem que para sempre ficou associada à ideia de prostituição, foi Babilónia. Grande metrópole para onde parte da elite hebreia foi enviada, exilada, no século VI a.C., rapidamente ganhou foros de tudo o que de mal a humanidade tinha conseguido realizar, a começar pela sua grande zigurate, agora apelidada de Torre de Babel, a imagem da perdição da humanidade pelo pecado, pela falha, de uma vã tentativa de se igualar ao Criador.

Roma, o poder dominador durante séculos, seria a grande herdeira desta ideia de Grande Prostituta com que se apodara Babilónia. Todo o mundo judaico fracamente helenizado veria na capital do Império a cabeça de uma grande arma arremessada contra o Povo Eleito, uma arma prenhe de todos os males, de todos os vícios, tal como Babilónia. Apenas o cristianismo viria a alterar essa imagem, tornando-as no centro ocidental da sua religião.

Mas tentemos perceber mais profundamente os contornos e os significados desta imagem. Para ser aplicada metaforicamente, ela teria de reunir em si os ingredientes para a construção imagética.

Equacionemos a relação da prostituição com a noção de adultério. No Mundo Romano, o adultério é um dos campos em que coexistiram até mais tarde leis tradicionais e fortes tentativas legais de criar novas formas de punição dentro do quadro legal. A punição tradicional, nomeadamente para in flagrante delicto, podia implicar a morte sumária. A lex Julia de adulteriis coercendis cria uma clara relação entre a possibilidade de punição por adultério e o facto de a mulher em causa não estar, de facto, inscrita como prostituta - a definição judicial da condição da prática sexual era, assim, condição base para a identificação do delito: só existia adultério se a mulher não era suposto ser, oficialmente, prostituta.

No mundo hebreu, a construção de uma ideia altamente negativa, relacionada com a prostituição, encontra sempre no “outro” a sua base de argumentativa. É o fenómeno que encontramos, a nível de metáfora, na forma de indicar o culto a Acherá (2 R 23, 7):

Destruiu os lugares de prostituição idolátrica do templo do Senhor, onde as mulheres teciam véus para Achera.

Assim se passa na guerra contra os Madianitas, quando Moisés condena os seus militares por terem deixado com vida as mulheres nas cidades capturadas; teriam sido elas, por iniciativa de Balaão, a ter seduzido os homens para ao culto a Baal-Peor, através da prostituição sagrada (Num 31, 16):

Foram elas que, instigadas por Balaão, arrastaram os filhos de Israel a trocar o Senhor por Baal-Peor, o que foi causa de flagelo na assembleia do Senhor. Vamos, matai, agora, todo o rapaz e toda a mulher que tenha tido relações com homens.

Ora, a fuga de crentes para o horizonte de Baal será u dos mais ricos campos de metáforas do Antigo Testamento – a situação antes indicada de culto a Baal-Peor surgirá recorrentemente na Bíblia em diversas ocasiões: (Números 25, 9; Deuteronómio 4, 3; Josué 22, 17; Oseias 9, 10; Salmos 106/105, 28; 1 Carta aos Coríntios 10, 8).

Ora, é exactamente esta relação, entre prostituição e adultério, que encontramos na formulação teológica de Oseias, só que numa propositada confusão rica de significado: a mulher apontada em casamento para o próprio profeta é, mais que adúltera, prostituta.

Vai, toma por mulher uma prostituta, e gera filhos de prostituição, porque a nação não cessa de se prostituir (1, 2)

Oseias é central na formulação teológica da ideia de prostituição. Esta metáfora, neste profeta, mostra um “retrocesso” religioso do povo que abandonara o culto a Iavé e retomara os cultos de fertilidade dos antigos deuses de Canaã, nomeadamente o já referido Baal. Esta mesma metáfora de Oseias encontramo-la em Isaías e Jeremias, constituindo-se num dos patrimónios simbólicos mais fortes da Bíblia.

Ora, nesta relação de prostituição recorrente com Baal, a questão que seria pertinente seria a de saber se terá ocorrido um abandono do culto, ou se terá sido o "programa" de afirmação de Iavé que não foi cumprido como os seus “profissionais” (de culto e de profecia) pretenderiam. Isto é, se houve abandono, ou se, simplesmente, se deu uma adesão reduzida e ao longo do tempo, mantendo-se muita gente ainda ligada a Baal.

Para uma mais profunda compreensão do que estaria em causa, seria necessário aferir muito bem o grau em que o processo de monoteização se encontrava. De uma coisa estamos certos: uma tão profunda alteração religiosa, o nascimento, a formulação de um monoteísmo, apenas pode ocorrer num tempo longo e nunca como que por decreto.

Ora, tal realidade é-nos confirmada através das culpas lançadas por Oseias aos sacerdotes, ao seu catecumenato ...

Mas é a ti que Eu censuro, ó sacerdote.

Tu tropeças em pleno dia,

E contigo tropeçará também o profeta

[…]

porque rejeitaste a instrução,

excluir-te-ei do Meu sacerdócio.

Já que esqueceste a lei do teu Deus,

[…]

O sacerdote será tratado como o povo;

castigá-lo-ei pelos seus maus caminhos,

tratá-lo-ei segundo as suas obras

[…]

Ouvi isto ó sacerdotes,

escuta casa de Israel,

atende, gente da casa do Rei! (4: 4 a 5: 1)

De facto, é aos profissionais do culto que são apontadas muitas das culpas. O “povo” ainda não era monoteísta; o dito “povo” como que ainda não tinha “licença” para assumir responsabilidades nesta matéria. O que aqui é apresentado como um retrocesso não deve ser mais que uma imagem, posteriormente historicizada, de uma clara dificuldade em impor Iavé como deus único. O historicismo encontra-se, por exemplo, em todo o excerto dedicado à questão deste amor e da prostituição que, surgindo sob a autoria de Oseias, é posterior.

É neste contexto, perante esta situação, que é afirmada tão fortemente essa imagem da prostituição aplicada a toda a “nação”. Por esta metáfora da prostituição, encontramos o “ Mundo da Bíblia Oseiana” em forte ruptura com toda a sua envolvente religiosa, contrapondo ideias e refutando práticas instituídas. O mais normal culto ainda seria a Baal ou, no melhor dos casos, a Iavé, mas sob formas típicas a Baal.

Tornando ao capítulo anterior, em que mostrámos ser a prostituição uma prática corrente e não necessariamente negativa, este posicionamento do texto oseiano parece ser um forte elemento de afirmação de identidade, mais que teológica, étnica e proto-nacionalista, pela caracterização da negação das práticas gerais e comuns a outros cultos que não os que se pretendiam como imagem do deus específico do povo de Israel. Criando a diferença pela negação de uma realidade comum, criava-se identidade própria.

A metáfora da prostituição não é mais que um dos ingredientes ideológicos da construção do monoteísmo de Iavé, ainda em difícil enraizamento. A principal forma que a prostituição aqui toma é a da injustiça do povo ao agradecer os bens terrenos e as dádivas da natureza ao deus errado, a Baal, deus ligado à fertilidade. Vejamos melhor:

2, 7 - 10: Ela [a esposa infiel de Yahveh] disse: “Correi atrás dos meus amantes [Baal nas suas diversas formas]

que me dão o meu pão e a minha água,

a minha lã e o meu linho,

o meu azeite e a minha bebida”

[…]

Mas não reconheceu que era Eu

quem lhe dava o trigo, o vinho e o azeite

e lhe prodigalizava a prata e o ouro que gastava com Baal.

O espiritual, a construção teológica abria caminho para a construção identitária que a política e a diplomacia não tinham conseguido fortalecer aquando da existência de um reino uno (com David e Salomão).

A prostituição, como imagem de um povo que recusa, que se afasta mesmo do seu Deus, é uma das principais armas retóricas ao dispor dos profetas. Mais uma vez nos deparamos com Baal: seguindo Oseias, era a ele que o povo rendia culto. Isto é, as funcionalidades de Baal ainda não tinham sido integradas no deus que era cada vez mais único, Iavé.

Oseias repara mesmo que a imagética ligada a Iavé, o seu culto, tem como base, como matriz, Baal. Ou melhor, o profeta Oseias verifica a existência de uma roupagem baálica na definição, no rito e nas hierofanias supostamente específicas de Iavé.

Vejamos onde nos leva esta ideia de prostituição. Mais que cultuar outros deuses, Israel cultuava o seu deus como se de outro se tratasse. Obviamente, tratava-se de continuidades inevitáveis: todos os deuses, cultos e ritos vão herdar a religiosidade e, ritos, símbolos e locais das religiões suas antecedentes. Mas Oseias convive bastante mal com essa continuidade – Oseias quer uma realidade nova.

Para a criação dessa realidade nova, a metáfora da prostituição é uma arma retórica fortíssima perante uma atitude em que Iavé ainda não é, de forma clara, o único Deus. Na narrativa, o Deus que se pretende ser cada vez mais único, reunindo em si as características e funcionalidades de Baal, e perante a situação de prostituição, procede:

2, 11 - 14: Por isso, retomei o meu trigo a seu tempo,

E o meu vinho na estação adequada;

Retirarei a minha lã e o meu linho,

Com que cobria a sua nudez.

[…]

Aos seus divertimentos porei fim:

às suas festas,

às suas luas novas,

aos seus sábados

e a todas as suas solenidades.

Suas vinhas e figueiras devastarei

Ou, noutras palavras:

11, 3: Entretanto, Eu ensinava Efraim a andar,

trazia-o nos Meus braços,

mas não reconhecerão que era Eu quem cuidava deles.

No mesmo sentido, num núcleo textual diferente, temos a afirmação, agora pela positiva e não pela negação do “outro”, das capacidades de fertilidade de Iavé:

2, 23 - 24: Naquele dia, diz o Senhor,

Eu serei propício aos céus,

E os céus serão propícios à terra;

A terra será propícia ao trigo, ao vinho e ao azeite

E estes propícios a Jezrael.

Ora, outra faceta que a questão da fertilidade e da prostituição toma é a do tratamento do seu contrário, a infertilidade. Um deus da fertilidade tanto a pode dar, como retirar. É o que encontramos em diversas passagens que directamente invocam o deserto, ou a morte. Como referido no capítulo anterior, a prostituição é imagem e conduz à incapacidade reprodutiva; como se de dois oposto que se tocam nos extremos, tanto a virgindade como a prostituição apresentam uma funcionalidade semelhante: não gerar.

Interessante o quão atrás no tempo a memória colectiva e as ideologias vão buscar conteúdo. Um mito de criação sumério mostra exactamente como a deusa Ninmah criou um grupo de seis indivíduos com incapacidades e o deus Enki, ao ver esses seres defeituosos, lhes deu função. Um desses seres é a mulher estéril. Vejamos:

Ela [Ninmah] concebeu uma mulher que não podia dar nascimento.

Enki, vendo a mulher que não podia dar nascimento,

Decretou-lhe o destino, destinou-a a fixar-se na «casa da mulher»

Ela [Ninmah] concebeu um ser que não tinha órgão masculino, que não tinha órgão feminino.

Enki, vendo aquele que não tinha órgão masculino, que não tinha órgão feminino,

Decretou como seu destino permanecer junto do Rei.

A par do eunuco (o castrado, sem sexo algum), que desde a criação ficava ao serviço real, a mulher sem a possibilidade de procriar seguia para essa «casa da mulher», um possível local de prostituição.

No fundo, no aproveitamento desta metáfora extremamente antiga, reside o cerne da criação de um novo patamar de religiosidade, o monoteísmo, pela acusação de infidelidade.

É este o peso que encontramos nas costas de Maria Madalena quando ela passa a ser apodada, por confusão, de prostituta. Numa ambiguidade de textos que nunca esclareceriam claramente quem ela era, uma possível prostituta estaria sempre relegada para um mau lugar no campo de uma formulação religiosa nova. A prostituta era, nesta linha mental, a fuga ao dever e ao que estaria estabelecido.