Sara é apresentada como uma mulher muito bonita e Abraão tem consciência disso, o que o leva, por duas vezes (Génesis 12, 11-13; 20, 1-13), a pedir-lhe que se faça passar por sua irmã. Teme pela sua vida, se os outros com quem se iria relacionar soubessem que era sua mulher.
Sara aceita, sem reservas, ser o garante da sobrevivência do seu marido, logo, de uma possível linhagem. Estará ela de tal maneira possuída pela fé na Promessa que não hesita em ser o escudo do eleito de Deus?
O certo é que não só lhe salvou a vida como foi causa do seu enriquecimento material, podendo, assim, voltar para a terra que Deus lhe indicara (Génesis 12, 16ss; 20, 14ss).
Mas não devemos encarar o compromisso apenas entre Deus e Abraão. De facto, são ambos os esposos que estão implicados num compromisso para com a divindade.
A fé de Abraão não visa o seu presente, mas uma realidade futura. No entanto, para que haja futuro, é imprescindível que algo aconteça já. Algo que demora a chegar: um filho.
Sara é estéril e Abraão nada faz senão questionar Iavé (15, 2-5) e esperar. É ela que toma a iniciativa de “apressar” o cumprimento da promessa de uma descendência (16, 1-4):
Vê, eu te peço: Iavé não permitiu que eu desse à luz. Toma, pois, a minha serva. Talvez, por ela, eu venha a ter filhos. E Abraão ouviu a voz de Sara .
Perante a sobranceria da serva grávida, Sara sente-se humilhada e acusa o marido pela injúria de que é alvo e convoca Iavé como juiz entre eles (16,5). Abraão dá-lhe liberdade absoluta para fazer o que bem entender. Sara de mais nada precisa: maltrata a serva a ponto de a “obrigar” a fugir (16, 6), embora regresse mais tarde.
Entretanto, Iavé reforça a Promessa, a promessa de fazer de Abraão o pai de uma multidão, o destinatário da aliança e da sua descendência, o possuidor da terra que habita (17, 1-14). Sara é envolvida, explicitamente, neste reforço. Na economia da aliança entre o então Abrão e Deus, um dado é fulcral: farei de ti o pai de inúmeros povos (Génesis 17, 5b).
Ora, e seguindo uma lógica mínima no esquema familiar, esta aliança implicava não só Deus e Abrão, mas também a necessária parceira sexual para despoletar todo o processo de procriação. Desta forma, não é só Abrão que é re-nomeado. Também o é a sua esposa: Abrão passa a chamar-se Abraão (Génesis 17, 5), e Sarai passa a ser Sara (Génesis 17, 15).
Teria de ser de dois novos seres, com novos nomes, que teria de ser concebido o filho de Abraão que realizaria os desígnios de Deus. Já existia Ismael, mas era o ainda não concebido Isaac o desejo e o móbil desta nova nomeação.
Aquele de quem descenderiam povos seria filho de Abraão, mas também de Sara. Abençoa-a e renova, mais uma vez, a Promessa a partir dela (17, 15-16):
dela te darei um filho... ela se tornará mãe de nações... dela sairão reis e povos .
Este envolvimento só podia provocar riso, pois Iavé estava a revelar-se como um Deus cheio de humor: um homem velho, uma mulher velha, conceberem?
Aliás, Sara tem a mesma reacção quando se apercebe, também, como alvo de eleição, como destinatária e veículo da Promessa. Desta vez, para cúmulo, o seu cumprimento não é apresentado num futuro indeterminado, mas em data marcada: no próximo ano (18, 9-15).
A promessa cumpriu-se no tempo previsto (21, 1-3):
Iavé visitou Sara, como dissera, e fez por ela como prometera. Sara concebeu e deu à luz um filho a Abraão já velho, no tempo que Deus tinha marcado... Isaac .
Ao ver crescer seu filho juntamente com o da sua serva, novos receios a invadem. Serão os dois herdeiros da Promessa? Mas só ela e não a serva foi abençoada e escolhida para dar início à sua realização. Não pode ficar de braços cruzados. Vê, apenas, uma solução: expulsar a serva com o filho. Em Sara, a acção acompanhava sempre o pensamento e isto mesmo pediu a Abraão que ficou muito infeliz (21, 8-11). Iavé, no entanto, tranquilizou-o, pois o que parecia, à primeira vista, uma desgraça não o era. Sara tinha razão. Ele não tinha mais do que fazer tudo o que ela lhe pedisse porque ela via para além dos acontecimentos (21, 12-14).
Neste quadro em que é de Sara que nasce o povo que se multiplicará como a areia das praias, encaixaria plenamente o paralelo que afirma ter dado Maria Madalena descendência a Jesus, em que seria ela, o seu corpo, o Santo Graal, na medida em que fora nele que Jesus deixara o seu sangue.
Não nos parece que essa linha seja fundamentada em dados minimamente credíveis, mas o que miticamente, lendariamente, se cria em torno da família reinante na Gália, os Merovíngios, tem pleno enquadramento e paralelo no caso desta matriarca. Não é por acaso que muitas dessas genealogias lendárias, que são montadas em torno de algumas casas reinantes europeias, fazem descender os seus membros dos Patriarcas.
Assim como Sara fora a mãe dos filhos inumeráveis de Abraão, também Madalena poderia ter sido, literariamente, a mãe da descendência de Jesus, o centro de uma outra inumerável família, os cristãos.
Os autores das genealogias lendárias dos monarcas medievais conheciam bastante bem o Antigo Testamento … |