MARIA JULIETA MENDES DIAS
& PAULO MENDES PINTO

Maria de Magdala
a Mulher – a construção
do Culto – o caminho dos Mitos

2.2.3. Raquel (Génesis 29-35)

A vida de Jacob poderia, facilmente, ser incluída no género literário “Aventura”. Tem de fugir à ameaça de vingança do seu irmão Isaú; compromete-se a trabalhar sete anos para poder casar com a rapariga amada (Raquel); é enganado pelo sogro que lhe dá a mais velha e, para não renunciar à desejada, terá de trabalhar mais sete anos; luta com Deus e, finalmente, regressa à sua terra através de nova fuga. É uma “história” de fraudes, mas também a do homem que se sente protegido por Deus (28, 10ss) e que, por sua vez, se ocupa de Deus, lutando com Ele para ser abençoado. Luta que o ligou de tal modo e para sempre a Deus, a si próprio e ao povo a quem deu o nome que Deus lhe dera: Israel (32, 22ss).

Apesar de tudo isto, ou por causa de tudo isto, percebe-se que estamos perante um homem profundamente crente, cuja oração é de um grande valor teológico, valor que nunca antes tinha sido atingido. Além do valor teológico, esta oração é como que o ponto aglutinador das “histórias” dos três patriarcas: Abraão, Isaac e Jacob (32, 01-13).

Raquel é a sua amada por excelência, desde a primeira hora. No entanto, tem de pagar um alto preço para fazer dela sua mulher: é ludibriado e obrigado a dobrar o tempo de contrato (29, 18-30).

Como as suas “antecessoras”, é estéril. A sua estratégia é semelhante à de Sara, começando por dar a sua serva a Jacob para deles obter filhos (30, 1-8), passando pelo acto de pagar a sua irmã Lia para conceber mais um filho em seu nome (30, 14-15). Por fim (30, 22-24):

Iavé lembrou-se de Raquel: ele ouviu-a e tornou-a fecunda . Deu à luz José por meio do qual dizia: Deus retirou a minha vergonha... e que Iavé me dê outro.

Quando Jacob percebe que é alvo de invejas e ódios, decide fugir, depois de ouvir o Anjo de Deus (31, 11-12) e confia o seu plano a Raquel e Lia que o assumem, porque percebem que está de acordo com a Promessa de Iavé (31, 1-18).

Raquel, porém, antes de sair de casa de seu pai, rouba-lhe os “deuses domésticos”. Embora o texto bíblico seja muito lacónico, a literatura rabínica é vasta na interpretação deste episódio.

São cinco os versículos que relatam o sucedido:

Raquel roubou os ídolos domésticos que pertenciam ao seu pai (31, 19)

Labão pergunta a Jacob , porque roubaste os meus deuses? (31, 30b)

Jacob ignorava que Raquel os tivesse roubado (31, 32b)

Raquel tomara os ídolos domésticos, pusera-os na sela do camelo e sentara-se por cima (31, 34a)

Labão procurou e não encontrou os ídolos (31, 35b).

Claramente, Raquel já tinha percebido que não tinham valor perante Iavé, o “Deus dos pais” de Jacob e, por isso, quis ajudar Labão a desligar-se da idolatria, da feitiçaria e da magia. Quando aceita a saída da sua terra tem consciência que estão a obedecer à ordem de Iavé (31, 16b).

Por outro lado, também faz sentido que Raquel, mais audaciosa que Lia, roubasse o que lhe pertencia por direito – mesmo já não tendo valor religioso – dado que seu pai as tratava como estrangeiras (31, 15) e os terafim deviam ser transmitidos ao herdeiro, segundo o costume. Seja qual for a interpretação, não há dúvida que se trata de um gesto arrojado, consciente e teologicamente, e ritualmente inovador.

Graças às suas Matriarcas, Israel chega a ser um povo numeroso e abençoado. Sara assegura a herança de Isaac, face à ameaça de Ismael. Rebeca torna possível que Jacob obtenha a bênção. Raquel, rivalizando com Lia para darem filhos a Jacob, edifica a casa de Israel.

De facto, sem elas não haveria Promessa. É pelos maridos que Deus cria a relação futura de um povo, mas elas não são tornadas acessório. Elas são tão, ou mais, indispensáveis que os seus esposos. Elas participam em pé de igualdade na aliança com Iavé, elas dialogam com Deus, elas decidem o futuro, mais que eles.

Para além de todas elas serem as esposas amadas e mulheres activas que assumem a condução da família, muitas vezes sobrepondo-se aos maridos, têm ainda uma outra característica comum: são estéreis.

Nestas narrativas de origem é fundamental que a fecundidade esteja ligada à divindade. Os descendentes, os destinatários da Promessa, não podem ser engendrados pela simples vontade humana. É necessária a acção directa de Deus. Ora, é preciso que a mulher seja reconhecida como estéril – uma vida a tentar conceber – para se perceber, existencialmente, que só o poder divino seria capaz de fazer nascer o filho da Promessa.

Mas mais, não pode deixar de ser interessante que Maria Madalena, para além de se enquadrar neste quadro de mulheres que tomam iniciativa, que apresentam acções de destaque, venha a ser retratada com uma prostituta. Não se pode passar ao lado do facto de muitas vezes a prostituição ser o caminho natural das mulheres que, sendo estéreis, eram repudiadas e obrigadas ao mundo do serviço sexual para sobreviver. Mais ainda, em muitas culturas correm tradições que dizem que as prostitutas são como que mulheres incapazes de, apesar de tanto acto sexual, engravidar.

Esta ideia encontramo-la bem cimentada num importante profeta, Oseias. Vejamos apenas alguns exemplos e que, pela prostituição realizada ao prestar culto a outros deuses, Iavé afirma o seu poder:

4, 2 –3: Porque não há verdade nem misericórdia,

nem conhecimento de Deus na terra.

Juram falso, mentem, assassinam,

roubam, cometem adultério,

usam de violência e vertem sangue sobre sangue.

Por isso a terra está cheia de luto

E todos os seus habitantes desfalecem;

Os animais selvagens, as aves do céu,

E até os peixes do mar perecem.

[…]

4, 10: Comerão, mas não ficarão saciados.

Prostituir-se-ão, mas não se multiplicarão

Ou ainda:

9, 11 – 12: Não haverá nascimento nem gravidez, nem concepção.

E ainda que consigam criar alguns filhos,

Eu os privarei deles, sem deixar nenhum.

[…]

9, 14: Dai-lhes entranhas estéreis e seios secos!

[…]

9, 16: Efraim está ferido, a sua raiz secou,

não voltará a dar fruto.

E, se tiverem filhos,

Eu exterminarei o fruto querido das suas entranhas.

Da mesma forma, também esta imagem, esta imagética, será usada pelo próprio Jesus em relação a um grupo de mulheres, quem sabe se nelas a própria Maria Madalena, que o seguiam no caminho para o calvário e que choravam por si:

Lucas 23, 29:

Felizes as estéreis, os ventres que não geraram e os peitos que não amamentaram .

Enquadrada nesta funcionalidade, misto de sacralidade e de banalidade, Maria Madalena não teve uma vida longa semelhante a estas Matriarcas. Mas Madalena teve uma situação de destaque semelhante no quadro da cultura: foi a escolhida para testemunhar, em primeira-mão, a ressurreição de Jesus e para transmitir essa nova.

Tornada prostituta séculos mais tarde, a sua imagem enquadrou-se perfeitamente na mulher que não consegue concretizar a essência da dimensão feminina: dar descendência, numa proximidade simbólica e funcional entre a esterilidade e a prostituição que, veremos a seguir, está enformada desde os Sumérios, dois milénios antes.