Uma segunda vertente devemos explorar com base na centralidade do feminino que apontámos no ponto anterior. Mesmo se nos abstrairmos da proximidade de Maria Madalena em relação ao núcleo funcional e teológico da figura messiânica que é Jesus, facilmente constatamos que o mundo hebreu era propício a figuras históricas e literárias semelhantes: grandes mulheres por detrás de homens marcantes para a religião e identidade do colectivo.
Na sua auto-imagem, Israel encontra o ponto genealógico do seu devir nas figuras dos Patriarcas: Abraão, Isaac e Jacob. Numa breve imagem, estes homens muito deveram às suas espoas: Sara, Rebeca e Raquel. Em muitas situações, foram elas que lhes indicaram o que deviam fazer. Estamos a falar nas “Matriarcas”.
A Bíblia, nomeadamente no Pentateuco – conjunto dos primeiros cinco livros: Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio – oferece um quadro de história, completamente delineado pela fé e, por isso, de índole marcadamente confessional.
O modo como a fé entende os acontecimentos históricos tem características próprias: uma grande parte destas tradições de Israel deve ser considerada poética, sendo, assim, produto de uma clara intenção criativa, metafórica e alegórica. No entanto, para os povos antigos, a poesia é muito mais do que um simples jogo estético: é a expressão de um desejo insaciável de conhecer os acontecimentos históricos, naturais e divinos do mundo circundante.
Só a poesia se prestava a falar das experiências da história de forma a actualizar, plenamente, o passado. Em algumas culturas e movimentos do Mundo Antigo, a poesia era considerada resultado, fruto, mais que de inspiração, de encarnação de uma divindade no poeta que a transmitia. É poeticamente que os oráculos de Apolo em Delfos são transmitidos pela Pitonisa; é pela poesia que muitos dos profetas do Antigo Testamento transmitem a mensagem de Deus.
A declamação da poesia, nomeadamente a dos textos sagrados, era um novo e constante vivenciar histórico dos acontecimentos narrados. A historicidade estava plenamente marcada no dia-a-dia, nos ritos e nas formas de piedade.
Logicamente, constatamos a dificuldade em distinguir, através dos conceitos actuais de história e de teologia, onde termina uma e começa a outra. Pelo contrário, estão de tal maneira entretecidas que, facilmente, as imiscuímos.
Discurso poético - mítico, mesmo - as narrativas dos Patriarcas são parte do mais profundo caldear de várias tradições regionais diferentes numa única identidade colectiva.
Actualmente, mediante o contexto cultural marcado nestas narrativas, remetemos uma datação do meio em que se movem estes Patriarcas para a primeira metade do segundo milénio antes de Cristo, por volta dos séculos XIX/XVIII, num horizonte de semi-nomadismo e transumância. No que diz respeito à redacção destes capítulos da Bíblia, ela coloca-se actualmente numa época bastante tardia, em relação à possível datação das suas personagens, isto é, por volta dos séculos VI-V a.C.
Para a cultura hebreia, este horizonte, que no Génesis é colocado logo após todas as vicissitudes da criação do mundo e dos primeiros problemas que os humanos criam a Deus, é o início da sua própria história. Até Génesis 11 temos uma História Universal, a partir do capítulo 12 encontramos a História dos Patriarcas, uma história já restringida aos antepassados directos de Israel.
Já plenamente introduzidos na imagem literária e religiosa que um colectivo, o hebreu, escolheu para si, vejamos agora com que foi recheado.
Genericamente, o tempo dos Patriarcas é um tempo de promessa, é o Tempo da Promessa. Esta Promessa materializa-se em três ideias míticas desta cultura: uma terra, uma aliança, uma posteridade.
Em termos de narrativa bíblica, de literalidade do texto, a origem do povo de Israel assenta na história de um homem – Abraão – que obedece à ordem de Iavé para sair da sua terra. No seguimento dessa ordem será cumprida uma promessa:
- a paternidade de um povo (Génesis 12, 2)
- uma nova relação com Deus (aliança / bênção: Génesis 12, 3)
- uma terra dada à sua descendência (Génesis 12, 7).
A Promessa faz da época dita patriarcal a instituição destinada a preparar, cuidadosamente, o nascimento e a vida do povo de Deus. Neste conjunto de promessas encontramos, na prática, uma trilogia que equivale ao nascimento de uma entidade administrativa autónoma, um colectivo independente: um povo, um Deus, um território.
Vejamos, agora, depois de caracterizada a época e a identidade hebreia e judaica em relação a essa época, a forma como as mulheres foram determinantes na concretização dos passos necessários para a efectivação dessa Promessa. |