Se do peso teológico da figura de Maria Madalena se quisesse falar, o episódio escolhido para o retractar seria, inevitavelmente, o da ressurreição de Jesus. Em todos os Evangelhos canónicos é a Maria Madalena que Jesus aparece em primeiro lugar. Quem primeiro sabe que Jesus já não se encontra no mundo dos mortos e, assim, é o Cristo, o Salvador, aquele que venceu a morte e ressuscitou, é esta mulher e não nenhum dos apóstolos, nenhum dos homens.
Mateus 28, 9-10:
Jesus saiu ao seu encontro e disse-lhes [a Maria Madalena e a outra Maria]: «Salvé!» Elas aproximaram-se, estreitaram-lhe os pés e prostraram-se diante dele. Jesus disse-lhes: «Não temais. Ide anunciar aos meus irmãos que partam para a Galileia. Lá me verão.»Mais, quem fica junto à cruz quando a morte atinge Jesus, quando Ele se entrega nas mãos de seu Pai? Também aqui encontramos as figuras femininas que acompanhavam Jesus e os seus discípulos, em especial Maria Madalena.
João, 19, 25:
Junto à cruz de Jesus estavam, de pé, sua mãe e a irmã da sua mãe, Maria, a mulher de Clopas, e Maria Madalena.
Sem contar com outras passagens, sem ligar a outras situações descritas nos Evangelhos e, em especial, sem ler os textos apócrifos, estes simples dois trechos já nos remeteriam para uma situação de grande destaque de Maria Madalena no seio do grupo que acompanharia Jesus.
Maria Madalena é comum em ambos os episódios. No primeiro deles acompanha a sua família. Mais, estamos perante o centro da função e da teologia do Salvador, do Cristo: a sua morte e ressurreição. Não estamos perante episódios correntes do dia-a-dia de Jesus.
Ora, esta centralidade de uma figura feminina na morte e ressurreição do Deus feito Homem não é minimamente nova no espaço e nas culturas da região.
Talvez a situação mais conhecida seja a da deusa Ísis, esposa de Osíris. Estas personagens mitológicas do Antigo Egipto condensam em si muito da formulação teológica que relaciona personagens de sexo oposto em situações de morte. Falamos em especial da dedicação, do amor levado ao limite na morte, da relação na morte, da ressurreição.
O culto a Ísis era importante para o Cristianismo em duas vertentes distintas e complementares. Por um lado, na sua construção mitológica, Ísis e Osíris são das divindades egípcias mais “exportadas” para fora das margens do Nilo, verdadeiro património cultural de toda uma região muito mais vasta que o Egipto Antigo. Por outro lado, Ísis estava no centro de uma das mais populares religiões de salvação do século I d.C., altura em que o Cristianismo nasce e se constrói.
O centro deste mito que dá corpo ao culto, encontra-se na forma como a deusa Ísis não deixa de ter o seu esposo como constante horizonte, mesmo quando ele se encontra morto. Vejamos um trecho de um hino a Osíris onde a figura de Ísis é central:
A sua irmã foi a sua guardiã,
ela que se livrou do seus adversários,
que impede os actos de malvadez
pelo poder da sua palavra.
Que tem voz discernente, cujo discurso não falha,
eficaz na voz de comando,
poderosa Ísis que protegeu o seu irmão,
que o viu inerte e já sem vida,
que atravessou a terra lamentando-se,
não descansando enquanto não o encontrou,
que fez uma sombra com a sua plumagem,
criando uma brisa com as suas asas.
Osíris fora morto pelo seu irmão Set. Este irmão assassino viria a transformar-se na imagem do mal, ao mesmo tempo que Osíris, o que seria, depois, o rei do mundo dos mortos, aquele que dava a vida do além a todos os defuntos, seria a imagem do bem, o estereótipo do monarca vigilante, do efectivo rei. Osíris era, para além da simples figura que reinava sob o mundo dos mortos, o deus que possibilitava a todos, numa verdadeira democratização dos direitos após-morte, uma vida feliz nos campos paradisíacos do além.
O primeiro ponto de contacto com o mundo de Maria Madalena reside no facto de, também Osíris, ser morto após um banquete. De facto, Set coloca o seu irmão num sarcófago, o primeiro sarcófago, no final de uma refeição em comum e mata-o.
Tal como Madalena, Ísis não desiste após a morte do seu amado. Ísis enceta uma longa e penosa jornada em busca do seu esposo, então retalhado pelo seu irmão. Recolhidos todos os pedaços do seu corpo, cria a primeira múmia, reconstruindo o corpo.
Por fim, depois de ter novamente o corpo do seu amado, consegue, por artes mágicas dar novamente vida a esse corpo. Mas mais, para além de lhe dar novamente vida, consegue dele ficar grávida, apesar de não ter recolhido todas as partes do seu corpo – a única que lhe escapara fora exactamente o falo.
Ora, o paralelo normalmente criado entre esta deusa e as personagens do cristianismo antigo encontram-se especialmente na Virgem Maria: concepção sem relação sexual; e, mais tarde, na economia do mito, a forma maternal como trata o filho nascido dessa relação milagrosa entre ambos, Hórus – muitas são as representações de Ísis com o seu filho Hórus ao colo, tal como Nossa Senhora.
Mas o lugar de Madalena não pode ser deixado de lado. Toda a relação entre Ísis e a morte de Osíris é profundamente apelativa quando olhamos para a forma como Maria Madalena foi a primeira personagem a ir ao encontro do seu defunto companheiro e, mais que isso, foi ela que o descobriu, afinal, com vida.
São as mulheres, e Maria Madalena entre elas, que recolhem o corpo e, a um jeito que tanto nos faz lembrar Ísis a criar a primeira múmia, o enfaixam para o depositarem no seu local de repouso eterno.
Mas a proximidade entre dados culturais vai ainda mais longe. Tal como Ísis procura desesperada o corpo de Osíris, também Madalena e as restantes mulheres pensam que o corpo de Jesus fora roubado. Ora, por detrás desta acção existe um móbil, como que uma justificação inerente a este tipo de figuras mitológicas ou religiosas: uma imanente, inata, a priori, vontade e desejo de estar próximo do que de divino é essencial, nomeadamente das figuras que o representam. Vejamos um interessante trecho de Plutarco exactamente sobre Ísis (Ísis e Osíris, 53):
Sente amor inato pelo primeiro princípio, pelo princípio que exerce sobre tudo o supremo poder, e que é idêntico ao princípio do bem; deseja-o, persegue-o, fugindo e recusando qualquer participação com o princípio do mal. [...] oferece-se a ele [ao princípio do bem] para que a fecunde, para que semeie no seu seio o que dele emana.
Obviamente, tal como Ísis, também Maria Madalena o encontraria e seria a primeira a vê-lo novamente com vida. |