Para além de Ísis e Osíris, a par de Iavé e Acherá, outro caso nos pode ajudar a chegar a modelos de linguagem cultural e literária onde uma figura feminina estava próxima de um deus cimeiro no panteão. A situação que iremos agora tratar retoma a linguagem mitológica apontada para o casal divino egípcio, centrando-se a nossa análise na proximidade ao deus, especificamente quando este morria e posteriormente ressuscitava. Falaremos, pois, de Baal e Anat.
Estamos, logicamente, no tempo longo das estruturas de mentalidade, numa dinâmica de cronológica onde a estaticidade e a estabilidade são as ideias centrais a reter. Tal como verificamos que, no caso do matrimónio entre Acherá e Iavé, podemos estar perante uma herança secular de um outro casamento, também a situação de Baal e Anat se revela, nas religiões que se seguirão, no mesmo espaço ao longo de séculos.
No segundo milénio antes de Cristo, Baal é o deus que reina sobre o mundo no espaço cultural de Canaã, isto é, no espaço onde depois se desenvolve a História do povo hebreu. Na dupla Baal/El, está definida a quase totalidade da própria noção de divino para este espaço, e que em muito iremos herdar no Cristianismo. El é o deus criador, mas ausente, que se afastou do devir do mundo; Baal, não sendo o deus supremo, é aquele a quem foi entregue a governança, a senhoria, a realeza desse mundo criado por El.
A primeira porta de acesso ao mundo teológico em que se moveriam Baal e Anat é, logicamente, o grupo de textos mitológicos onde a sua acção conjunta é mais significativa, isto é, o Ciclo de Baal, constituído por 3 mitos: A Luta entre Baal e Yammu; O Palácio de Baal; e A Luta entre Baal e Motu, que datarão de c. 1500- 1370 a.C.
É exactamente neste conjunto mitológico que encontramos, não só a acção que nos interessa para caracterizar a relação entre Baal e Anat, como também encontramos o centro da definição, do que se entenderia por Baal.
O vocábulo «baal», tal como o correspondente ao deus Ilu, já aqui referido, para além de constituírem os nomes dos deuses homónimos, eram também usados como palavras normais no discurso corrente. O que queriam dizer? Simples e, ao mesmo tempo, significativamente avassalador: «baal» era uma das palavras normalmente usadas para dizer «rei» ou «senhor», ao passo que «ilu» era o vocábulo comummente usado para dizer «divino», «divindade» ou «deus».
Ora, pelos mitos em causa, verificamos exactamente, quer seja pelas formas de nomeação usadas, quer pelo texto em si, pela leitura da narrativa, que estes dois deuses são exactamente o que os seus nomes indicam: um é a própria noção de divindade, de «deus», por natureza, o outro a ideia de senhoria, de realeza, o «senhor» por definição.
Desta forma, neste dois deuses, como que temos um depurar de tudo o que seria acessório. Apenas o essencial, expresso nos seus nomes, aqui se encontra. Podemos afirmar que, no Ciclo de Baal, encontramos uma síntese teológica do espaço de Canaã em meados do segundo milénio a. C.
Remetendo-nos para uma muito longa duração, esta relação de horizontes de divino presente em Canaã, no segundo milénio antes da era de Cristo, será integrada aquando do processo de construção de uma divindade única em Israel: Iavé.
Nas formas de nomeação do Deus de Israel, Eloim e Adonai, as duas mais correntes no Antigo Testamento, verificamos a integração funcional desta herança milenar: «eloim» é o plural do mesmo sentido semântico de «ilu», ao passo que «adonai» é um sinónimo de «baal».
Mas, mais próximo de nós, também o mundo do nascente Cristianismo irá integrar esta noção dupla de divindade. Um milénio e meio depois, aquando do primeiro grande esforço de uniformização do cristianismo em Niceia (primeiro concílio de Niceia), o chamado Credo de Niceia mostrará, na formulação da distinção entre as entidades Pai e Filho, a duplicidade entre uma noção do divino profundamente enraizada na noção de senhoria, e outra que se confunde com o próprio vocábulo usado para exprimir a dimensão de divindade: a velha complementaridade entre «senhor» e «deus», vista com os casos de «Baal» e «Ilu», presente nos nomes do deus de Israel através de «Adonai» e «Eloim», aparece agora no nascente cristianismo.
Vejamos quer o chamado Símbolo dos Apóstolos, como o Credo de Niceia-Constantinopla - o segundo caso apresenta de forma clara a dualidade Creio em um só Deus [Pai] e Creio em um só Senhor [Jesus Cristo]:
SÍMBOLO DOS APÓSTOLOS :
Creio em Deus Pai todo-poderoso, Criador do Céu e da Terra;
e em Jesus Cristo, seu único Filho, Nosso Senhor;
que foi concebido pelo poder do Espírito Santo;
nasceu da Virgem Maria;
padeceu sob Pôncio Pilatos;
foi crucificado, morto e sepultado;
desceu à mansão dos mortos;
ressuscitou ao terceiro dia;
subiu aos céus;
está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso;
de onde há-de vir a julgar os vivos e os mortos.
Creio no Espírito Santo;
na Santa Igreja Católica;
na comunhão dos Santos;
na remissão dos pecados;
na ressurreição da carne;
na vida eterna.
Ámen.
CREDO DE NICEIA-CONSTANTINOPLA
Creio em um só Deus , Pai todo-poderoso, Criador do Céu e da Terra;
de todas as coisas visíveis e invisíveis.
Creio em um só Senhor, Jesus Cristo,
Filho Unigénito de Deus,
nascido do Pai antes de todos os séculos:
Deus de Deus, luz da luz,
Deus verdadeiro de Deus verdadeiro;
gerado, não criado, consubstancial ao Pai.
Por Ele todas as coisas foram feitas.
E por nós, homens, e para nossa salvação desceu dos Céus.
E encarnou pelo Espírito Santo,
no seio da Virgem Maria,
e se fez homem.
Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos
padeceu e foi sepultado.
Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras;
e subiu aos Céus, onde está sentado
à direita do Pai.
De novo há-de vir em sua glória, para julgar os vivos e os mortos;
e o seu Reino não terá fim.
Creio no Espírito Santo,
Senhor que dá a vida,
e procede do Pai e do Filho;
e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado:
Ele que falou pelos profetas.
Creio na Igreja una, santa, católica e apostólica.
Professo um só Baptismo para a remissão dos pecados.
E espero a ressurreição dos mortos,
e a vida do mundo que há-de vir.
Ámen.
E depois de criada esta relação entre Jesus e Baal, ambos os «senhores» que governam o mundo, que com ele interagem, quem é a figura de Anat?
Seguindo uma evolução comum a quase toda a vasta região do Médio Oriente Antigo, na qual os mitos referentes a Baal se integram, também Baal morre.
Ora, quem vai em socorro de Baal em ambos os mitos? Mais, quem vai resgatar o corpo quando, no terceiro mito, Baal é morto? Quem faz tudo o que é necessário para que Baal torne ao mundo dos vivos? Uma deusa, Anat.
Muito há de comum com o caso do mito de Ísis e Osíris. Lembremos apenas que, em ambos os casos, estas deusas, próximas da morte e ressurreição dos deuses em causa, são suas irmãs.
Na narrativa da morte e ressurreição de Baal, é Anat que conduz toda a acção para o trazer de novo à vida e ao reinado sobre o mundo. É Anat que luta, que busca, que decide, que toma a iniciativa. Tal como é Maria Madalena que vai apregoar a boa nova da ressurreição de Jesus, aqui é Anat que cantará a ressurreição de Baal.
Neste caso, quem é Anat? Ora, esta deusa é, francamente, um misto de companheira e de irmã. Familiarmente, ela é sua irmã; afectivamente, ela é a sua companheira. Tal como no caso de Maria Madalena, as proximidades são muitas: para além de toda a proximidade e quase cumplicidade em tudo o que tem a ver com a morte, Madalena é também essa figura ambígua entre a companheira dedicada, a irmã, e a apaixonada.
Anat é das poucas divindades que se apresentam nos três mitos. A sua acção no ciclo mitológico não se reduz a um nicho específico, a uma funcionalidade própria de uma situação ou de uma luta, mas sim a um postura recorrente no todo da narrativa.
Mas o centro da sua função encontra-se, sem sombra de dúvida, no facto de ser ela a divindade que vai colocar tudo a funcionar para que Baal, depois de morto, retorne à vida.
É esta deusa que, através de longas invocações, irá proferir as palavras mágicas que o conduzem à vida e que levam o supremo deus Ilu a tomar verdadeira consciência do que será o mundo sem a mão de Baal.
Qual Maria Madalena, ela será a primeira e mais interessada testemunha do regresso do seu senhor à vida.
Como ponte de ligação às ideias que noutros capítulos desenvolveremos, interessa ainda lembrar que Anat é, acima de tudo, a Virgem Anat. Isto é, o nome que mais vezes é usado para designar esta deusa faz apelo à ideia de virgindade, mas também, por relação directa, à de incapacidade para procriar. |