O cristianismo antigo está recheado de personagens com um lugar claramente ambíguo, de santos e de santas de quem se sabe muito pouco e que foram, e são, alvo de um importante culto.
Um desses casos, talvez o mais famoso de todos, é o de Maria Madalena, a Maria de Magdala que surge em alguns trechos muito próxima de Jesus.
Quem foi Maria Madalena? Poderíamos perguntar na ânsia de encontrar nos dados relativos à sua vida a chave da sua figura. Poderia parecer ser esta a questão mais correcta. Mas não. Maria Madalena não se encerra na figura histórica que terá vivido junto, perto, de Jesus. Não se pode perguntar «quem foi», mas sim «quem é» e «quem foi sendo», diluindo-a no tempo que foi percorrido pelas suas imagens ao longo dos dois milhares de anos de história do Cristianismo.
É exactamente deste facto que advém a sua referida ambiguidade: a Maria Madalena cultuada e referida em tradições diversas tem muito mais a ver com um conjunto de heranças religiosas que se apoderam da sua figura que da sua figura em si. Madalena é despedaçada num processo em que nela desaguam muitos dos mais importantes dados teológicos das religiões do espaço de Israel e de todo o Ocidente Europeu.
Um dado base devemos ter em conta quando desta figura de proa do cristianismo falamos: no que vocabularmente designamos por «Maria Madalena» encontram-se várias outras figuras e diversas tradições religiosas. Os pequenos e poucos trechos que os Evangelhos nos fornecem sobre esta mulher encaixaram perfeitamente em medos e sonhos carburados ao longo de séculos, como o recente, e não menos famoso, Código Da Vince nos mostrou na forma como foi avidamente lido e relido.
É neste sentido que, antes de levarmos o leitor ao retrato da Maria Madalena, existente nos Evangelhos, lhe vamos mostrar alguns pontos fortes que, sendo-lhe anteriores, irão formatar a visão que dela se vai ter. Falamos, é claro, da ideia de prostituição e da ideia de virgindade, mas também do peso quase mítico que algumas matriarcas tiveram na construção do imaginário hebreu, assim como no forte lugar mitológico de algumas deusas “consortes”. O conjunto de imagens que se vão forjar em torno desta santa encontra ecos seculares noutras figuras que estavam plenamente estereotipadas no mundo que a acolherá.
Os evangelistas referem-na não muitas vezes. Desde cedo que se terá criado uma insolúvel confusão entre algumas mulheres que em certas alturas acompanharam Jesus. Que trecho corresponde a qual Maria? Para lá de uma clara confusão, há todo um inevitável e conjuntural processo de branqueamento, de esquecimento, de afastamento de que a figura real terá sido alvo: estranhamente, Maria Madalena desaparece do livro Actos dos Apóstolos. Terá falecido? Demitiu-se da sua figura destacada?
O próprio silêncio dos textos em muito ajudou a que nessa figura pouco definida se fosse encaixando muito do imaginário religioso antigo. Neste pântano em que seria difícil vislumbrar a verdadeira Maria Madalena, e em que se deu, de facto, uma progressiva luta contra o lugar da mulher nas comunidades cristãs primitivas, não é com espanto que se verifica que foi “decidido” que, afinal, todas as mulheres que acompanharam Jesus eram uma só: na Maria Madalena recaíam oficialmente, nesta Maria foram cumuladas, todas as manchas negativas das restantes mulheres, exceptuando a Virgem Maria, existentes nos relatos evangélicos.
Ora, esta resposta “oficial”, por parte de um dos Padres da Igreja, de um Papa, veio afastar Maria Madalena do topo da hierarquia dos próximos de Jesus, tornou-a pecadora, prostituta, mas, ao mesmo tempo, deu-lhe um conjunto de facetas novas que vieram ao encontro das crenças das pessoas comuns, dos que nada sabiam de teologia, dos que ainda viviam, em pleno século V/VI, as tradições locais pagãs.
Maria de Magdala será durante vários séculos o resultado da síntese de várias “divindades”: Maria Madalena, Maria de Betânia, Maria Egipcíaca, Lady Godiva, entre outras. Em todas, a tónica é a da mulher que, pelo seu esforço e piedade, expiou os seus pecados. A Maria Madalena elaborada na Idade Média é a filha pródiga reencontrada, a virtude, a imagem perfeita de uma cristianização total da Europa. No fundo, uma não teóloga que se liga às populações, sentindo e concretizando os seus anseios.
Ao passo que a Virgem Maria será caracterizada com uma anti-Eva, a que, sendo concebida sem pecado, redime essa falta original da primeira mulher; Maria Madalena é uma segunda Eva. De facto, até a iconografia medieval de ambas é semelhante. Mas mais que a iconografia, o que interessa ressaltar é a humanidade das figuras: a Virgem Maria é um modelo inatingível por definição; Maria Madalena é um modelo que, tendo sido recheada com tudo o que de mal havia nas várias mulheres dos Evangelhos, é acessível a todos.
Longe do que viria a ser o cânon do lugar da mulher na Igreja, Maria Madalena ocupa, ao lado de Maria, um lugar de grande proximidade a Jesus. Se uma era a mãe, a outra participava da mais velha profissão do mundo. Se em relação a uma viria a ser criada uma aura de imaculação, para a outra era forjado um denso fumo de pecado apenas superado por uma forte entrega à expiação.
Atirada para fora dos discursos dos teólogos, Maria Madalena preenche uma religiosidade plena das falhas dos humanos – as lágrimas são a sua mais forte imagem; uma religiosidade que os mendicantes no século XIII irão redescobrir: não será por acaso que os Dominicanos vão eleger esta figura como uma das suas padroeiras.
Pior currículo não poderia ser apresentado para almejar um lugar no seio do grupo do Messias. Mas, todavia, tinha-o.
Não foi banida da história, foi afastada dos lugares de destaque e usada em fases muito específicas em que a sua duplicidade trazia francas vantagens. O desprezo medieval pela sexualidade feminina é compensado pela crescente valoração de Maria Madalena, a prostituta arrependida, aquela a quem Cristo primeiro aparecera depois de ressuscitado, aquela que de meretrix passara a co-redentora.
A piedade medieval, do fim da Idade Média, fez de Maria Madalena a Santa mais popular da história. Em Portugal são 67 as paróquias que têm esta santa como orago. A origem do culto em Portugal deve ter origem em dois santuários franceses muito em voga nos séculos XI e XII. Fora lá que a Santa, pela tradição, evangelizara, e se tornara eremita.
Se tomarmos atenção à distribuição dessas 67 paróquias, vemos que o culto se localiza quase exclusivamente acima da linha do Tejo, mesmo as excepções não estão abaixo da linha da foz desse rio (Monforte e Portalegre). Verificando as várias levas, fases, de forais atribuídos durante a chamada Reconquista Cristã, há uma clara coincidência entre a estratégia de organização do espaço de D. Afonso Henriques e de D. Sancho I, e a implementação do culto a Maria Madalena; ou melhor, até à descida para a linha do Tejo, a implementação do culto de Maria Madalena pode ter acompanhado a geral organização do território conquistado, uma organização muito próxima dos espaços sob especial influência de Claraval.
Há uma coincidência cronológica e de implantação no terreno com os dois primeiros reinados portugueses. O apoio que o Papado dá ao nascente reino português coincide com o crescimento do culto desta santa em França, com o nascimento das ordens mendicantes e com o nascimento do seu culto em Portugal.
Tão útil para cristianizar em tempo de reconquista, de evangelização, Maria Madalena continuou a marcar a nossa cultura com a marca acintosa de sempre: o pecado. No Concílio de Trento a figura de Madalena é afastada das unções, uma acção que cada vez mais está sacramentalmente forte.
Mas o século XVIII, e o seu gosto pelo erotismo, pela sensualidade, redescobre Maria Madalena e torna-a personagem de muitos contos francamente afastados da moral e dos ditames católicos. Em Portugal, por exemplo, em 1768 era lançado um edital que proibia o livro Madalena, pecadora, amante e penitente. O campo da pecadora, da amante era o que dava mais frutos no mundo moderno e contemporâneo.
Ambígua, rica de interpretações, fugidia aos cânones, rebelde, humana, é esta a Maria Madalena que fomos construindo ao longo de dois mil anos de personagem. Será atrás dela que percorreremos as páginas deste livro.
Quando nos parecer que a estamos a encontrar, já ela estará diferente.
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