1. O regresso a este espaço pede-me alguns parágrafos de
introdução. Começo por destacar o trabalho exemplar de
reconstrução de uma muito original, eficaz e clandestina
“devoção”, a dos Terceiros Sábados, lançada pelo casal
Natália Duarte Silva – Nuno Teotónio Pereira, nos anos 70 do
séc. XX. Ignorada nas investigações sobre a relação dos
grupos católicos com o Estado Novo e com a guerra colonial,
foi agora tirada do limbo da memória de muitos participantes
pelo esforço de António Marujo [1].
A
pertinência do texto “Dói-me Portugal”, de Pacheco Pereira,
não se vai esgotar na presente conjuntura política [2].
Clara Ferreira Alves, com As lágrimas de crocodilo [3], não
permite esquecer que os EUA e a Europa foram e são parceiros
na sementeira e na teia das loucuras cujas consequências, só
em parte, estão à vista de todos, na tragédia dos fluxos
migratórios. Se ninguém se lembra de perguntar aos países
ricos do Golfo, irmãos da mesma fé, quantos refugiados
sírios receberam, é porque os negócios sujos exigem
silêncio. Em 2014, a Alemanha e os Estados Unidos bateram
recordes na venda de armas no Golfo.
António
Guterres, Alto Comissário das Nações Unidas para os
Refugiados, espera que, nesta emergência, o crescimento da
onda de solidariedade entre os cidadãos europeus se imponha
aos seus governos. Mas que fazer, na Europa e nos EUA, para
vencer a persistente cegueira que prepara sempre novas
asneiras?
Foi muito citado o sintético
e eloquente discurso de Barack Obama: “Mais seca. Mais
inundações. Níveis do mar a subir. Maior migração. Mais
refugiados. Mais escassez. Mais conflito. Um líder que trate
este assunto como uma piada não tem qualidades para
liderar”. É verdade. Mas será necessário repetir que esta
civilização se autodestrói, nas suas próprias conquistas, se
continuar a ser guiada pelo império do dinheiro? As
organizações e práticas políticas que ignoram o bem comum de
toda a humanidade, em todas as suas dimensões, acabam por se
tornar organizações criminosas, assassinas, impondo uma
economia que mata. Como diz o Papa Francisco, “se queremos
realmente alcançar uma economia global saudável, precisamos,
neste momento da história, de um modo mais eficiente de
interacção que, sem prejuízo da soberania das nações,
assegure o bem-estar económico a todos e não apenas a
alguns” [4].
2. É verdade que as
ousadias de Bergoglio nem na própria Igreja Católica têm
sempre bom acolhimento. Anselmo Borges [5] pensa que a
oposição e as manobras de 17 cardeais talvez não sejam
suficientes para manter, no Sínodo sobre a Família, a recusa
da comunhão aos católicos divorciados que voltaram a casar.
Veremos.
O papa Francisco esteve presente, mediante
uma vídeo-mensagem, no Congresso Internacional de Teologia
sobre o tema “O Concílio Vaticano II – memória, presente e
perspetivas”, promovido entre 1-3 de Setembro para celebrar
os 100 anos da Faculdade de Teologia da Universidade
Católica da Argentina e os 50 anos do encerramento do
Concílio Vaticano II. Assumiu a revolução desencadeada por
João XXIII e apresentou o método do seu próprio discurso
teológico que não dissolve as tenções nem paira na
abstracção totalizante, em nome da ortodoxia. Quem se
deleitava a denegrir a sua ligeireza doutrinal, vai ter
muito que engolir.
3. Hoje, tenho de me limitar
apenas a transcrever alguns parágrafos dessa longa mensagem.
Esta pressupõe um árduo trabalho para distinguir a mensagem
de Vida da sua forma de transmissão, dos elementos culturais
em que foi codificada, num determinado tempo.
(…) Não
fazer este exercício de discernimento conduz, com toda a
certeza, a trair o conteúdo da própria mensagem. A Boa Nova
deixa de ser nova e, especialmente, boa, tornando-se uma
palavra estéril, vazia de toda a sua força criadora, que
cura e ressuscita, pondo em perigo a fé das pessoas do nosso
tempo. A falta deste exercício teológico eclesial é uma
mutilação da missão que estamos convidados a realizar. A
doutrina não é um sistema fechado, privado de dinâmicas
capazes de gerar interrogações, dúvidas, questionamentos.
Pelo contrário, a doutrina cristã tem rosto, tem corpo, tem
carne, chama-se Jesus Cristo e é a sua vida que é oferecida
de geração em geração a todos os seres humanos. A fidelidade
a esta doutrina, a esta herança, exige o conhecimento e amor
daqueles a quem é proposta, o nosso próximo.
O
encontro entre doutrina e pastoral não é opcional, é
constitutivo de uma teologia que pretenda ser eclesial.
As perguntas do nosso povo, as suas angústias, os seus
combates, os seus sonhos, as suas lutas, as suas
preocupações possuem valor hermenêutico que não podemos
ignorar se queremos levar a sério o princípio da encarnação.
As suas perguntas ajudam-nos a perguntar, os seus
questionamentos questionam-nos. Tudo isto nos ajuda a
aprofundar o mistério da Palavra de Deus, Palavra que exige
e pede diálogo, entrar em comunicação. Daí que não possamos
ignorar a nossa gente na hora de fazer teologia. Como?
É assunto para as próximas crónicas.