1.
Nada mais irritante, no plano religioso,
do que a invocação da vontade de Deus para justificar situações,
acontecimentos trágicos, doenças, injustiças e misérias. Essa
invocação é um insulto à inteligência humana e ao mistério
insondável da divindade e da natureza. A laicização dessa
mentalidade justificou a imoralidade de medidas de ordem económica,
financeira e política, repetindo, anos a fio, que não havia
alternativa à austeridade. Austeridade que, segundo outros,
colocou milhares de pessoas na zona do insuportável e paralisou as
energias criadoras de vastos sectores da sociedade.
Seja como for, Thomas Piketty, o celebrado
autor de O Capital no século XXI, veio agora dizer ao
Público[1]
que há sempre alternativas: ”O que é realmente dramático
é que transformámos uma crise que nasceu no sector financeiro
privado americano numa crise de dívida pública, apesar de,
inicialmente, a zona euro não ter mais dívida pública do que os EUA,
o Reino Unido ou o Japão. Conseguimos, apenas por causa das nossas
más instituições e más decisões macroeconómicas, criar uma crise a
partir de nada”.
Este investigador mostra-se interessado em
transformar a opinião pública, acabando com a sacralização da
economia como conhecimento de um pequeno grupo de iluminados, que
difunde a ideia de um universo “demasiado complicado”.
Vem isto a propósito de uma conferência,
realizada em Tomar. Estava inscrita numa série destinada à
preparação das festas do Espírito Santo que, nesta cidade, se
exprime no exuberante “cortejo dos tabuleiros”. O tema que me foi
atribuído - a dimensão social dessas celebrações – obrigou-me ao
cruzamento do religioso, do económico, do social e do político,
procurando não diluir nem separar esses diversos planos.
2. Na origem de tudo – para lá da
festa agrária das colheitas - está a narrativa dos Actos dos
Apóstolos[2],
sobre uma comunidade de partilha integral dos bens, consequência do
Pentecostes cristão: tinham tudo em comum, entre os seus membros
não havia indigentes e cada um recebia conforme a sua necessidade.
O Abade Joaquim de Flora[3],
da Calábria, viu nessa experiência do passado, em pequena escala, o
futuro, a última era do mundo. Mediante uma original teologia da
história, distribuiu o tempo por cada uma das pessoas da Santíssima
Trindade. A era do reinado do Divino Espírito Santo superava e
tornava caduca a época do Pai e a do Filho. Inaugurava o reinado do
puro amor, da liberdade e da alegria, cume insuperável da história
humana, sem contradições nem mediações[4].
Este visionarismo teve uma posteridade,
sempre renascente, desde a Idade Média, passando pela modernidade
até aos nossos dias, em diversas versões, de modo original, na
cultura portuguesa[5].
3. O percurso inaugurado pela Rainha
Santa Isabel, dentro de uma espiritualidade franciscana, desde
Alenquer, Sintra e outras localidades teve, nos Açores, um lugar
privilegiado e, através da sua imigração, alcançou uma difusão
imparável para o Brasil, EUA, Canadá, etc.
Já no século XVI esta festa era celebrada a
bordo das Naus do Brasil e das Armadas da India. Em carta enviada
para Itália, desde Goa, o missionário jesuíta, Fúlvio de Gregori,
comunica o seguinte: Costumam os portugueses eleger um imperador
pela festa de Pentecostes e assim aconteceu também nesta nau S.
Francisco. Com efeito, elegeram um menino para imperador, na vigília
de Pentecostes, no meio de grande aparato. Vestiram-no depois muito
ricamente e puseram-lhe na cabeça a coroa imperial. Escolheram
também fidalgos para seus criados e oficiais às ordens, de modo que
o capitão foi nomeado mordomo da sua casa, outro fidalgo foi nomeado
copeiro, enfim, cada um com o seu ofício, à disposição do imperador.
Até entraram nisto os oficiais da nau, o mestre, o piloto, etc.
Depois, no dia de Pentecostes (ou Páscoa do Espírito Santo),
trajando todos a primor, fez-se um altar na proa da nau, por ali
haver mais espaço, com belos panos e prataria. Levaram, então, o
imperador à missa, ao som de música, tambores e festa e ali ficou
sentado numa cadeira de veludo com almofadas, de coroa na cabeça e
ceptro na mão, cercado pela respectiva corte, ouvindo-se entretanto
as salvas de artilharia. Comeram depois os cortesãos do imperador e,
por fim, serviram toda a gente ali embarcada, à volta de trezentas
pessoas[6].
O recurso à entronização de uma
criança-imperador, com todas as insígnias imperiais, assim como a
partilha da mesma mesa, é uma subversão política, económica e
social. Pode alimentar o desejo de um mundo às avessas do actual,
mas ao acontecer uma vez por ano, em versão folclórica, pode
reforçar o conformismo.
Prefiro, por isso, o
carácter imperativo da posição de S. Paulo sobre o Espírito Santo,
pois é este mundo que geme e sofre a dores de parto até ao presente,
que é preciso transformar: