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1. Não tive condições para
seguir as cerimónias que envolveram a nomeação dos novos “príncipes
da Igreja”. Um amigo, pouco dado a críticas à hierarquia
eclesiástica, manifestou-me, no entanto, o seu desapontamento.
Daquilo tudo, só as palavras do Papa estavam ajustadas a um programa
de reforma da cúria e da Igreja. Seria arcaico exigir dos novos
cardeais vestes parecidas com as do carpinteiro de Nazaré. Mas
aquele espectáculo era a reprodução de sempre do mau gosto
purpurado. As delegações portuguesas, ao convidar o Papa para vir a
Fátima, revelaram pouca imaginação e, até parece, uma oposição ao
seu programa.
Seja como for, importa redescobrir
o papel das religiões no mundo, na Europa e em Portugal. O que as
terá anestesiado para que, durante estes anos todos de miserável
humilhação dos povos do Sul da Europa e de transformação do
Mediterrâneo num cemitério medonho, não tenham suscitado um imenso
movimento de resistência não violenta?
Sobre o papel das religiões existem
as posições mais desencontradas. Comecemos por uma das mais
negativas:
“Os três monoteísmos,
animados pela mesma pulsão de morte genealógica, partilham uma série
de desprezos idênticos: ódio da razão e da inteligência; ódio da
liberdade; ódio de todos os livros em nome de um só; ódio da vida;
ódio da sexualidade, das mulheres e do prazer; ódio do feminino;
ódio dos corpos, dos desejos, das pulsões. Em lugar de tudo isso,
judaísmo, cristianismo e islão defendem: a fé e a crença, a
obediência e submissão, o gosto da morte e a paixão do além, o anjo
assexuado e a castidade, a virgindade e a fidelidade monogâmica, a
esposa e a mãe, a alma e o espírito. Em suma: a vida crucificada e o
nada celebrado.”
2. Não podemos avaliar o
alcance da revolução teológica do Vaticano II sem saber de onde
viemos, como instituição.
Não há prestidigitação hermenêutica
engenhosa que possa transpor o hiato que separa os ensinamentos
oficiais sobre as religiões não cristãs dos dois concílios
ecuménicos ou gerais, o de Florença (1438-1445) e o Vaticano II
(1962-1965). A mudança é de 180º.
No Concílio de Florença, depois de
se mostrar a superação do judaísmo com o advento de Cristo,
resume-se a sua posição no axioma bem conhecido e muitas vezes
repetido - extra ecclesiam nulla salus – fora da Igreja não
há salvação. A explicitação não pode ser mais radical nem mais
assustadora: “A Igreja crê firmemente, confessa e anuncia que nenhum
dos que estão fora da Igreja católica, não só os pagãos, mas também
os judeus, os hereges e cismáticos, poderão chegar à vida eterna,
mas irão para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus
anjos [Mt 25,41], se antes da morte não tiverem sido a ela
reunidos.”
A partir do Vaticano II, o
ecumenismo, a liberdade religiosa e o diálogo inter-religioso passam
a fazer parte da doutrina oficial da Igreja, dentro de uma concepção
plural da própria teologia católica, embora com diversas
interpretações e muitos ziguezagues.
A verdade no diálogo exige o
reconhecimento do pluralismo religioso como um valor, um novo
paradigma para o pensamento e para a prática pastoral. Se tomarmos a
sério a diversidade religiosa não pensaremos em anexar nem em
dominar os outros. A prática da hospitalidade religiosa é o caminho
para evitar o proselitismo e a violência ou a mera tolerância. Os
caminhos de Deus não se podem confundir com os de uma só religião.
Seria impor-Lhe as nossas concepções de vida e de salvação. As
religiões só têm a ganhar deixando-se interpelar mutuamente em ordem
a uma aliança para a abertura ao mistério divino que nenhuma pode
abarcar e para se colocarem ao serviço de todos os seres humanos,
sobretudo dos excluídos.
3. Nada disto é possível sem
que as próprias religiões consintam em entrar num processo de
conversão. Se persistirem na ideologia de que são elas a salvação e
que Deus só passa por ali, estão condenadas, por mais que julguem
que estão a aumentar a sua influência. Como dizia Jesus Cristo,
são meras associações de cegos a conduzir outros cegos. Diante
da loucura assassina da ideologia religiosa,
o presidente egípcio Al-Sisi, em Al-Azhar e perante as
autoridades religiosas, teve a coragem de dizer, alto e bom som: nós
devemos mudar radicalmente a nossa religião.
O Papa Francisco assumiu o programa
do Vaticano II e em vez de atenuar a urgência e a profundidade que
ele implica, venceu 50 anos de hesitações e descaminhos para o
radicalizar a partir do cimo da pirâmide, socavando-lhe os falsos
alicerces, para que o governo da Igreja veja o mundo a partir dos
excluídos, dos habitantes de todas as periferias. Com um critério: não
se sintam tentados a estar com Jesus, sem quererem estar com os
marginalizados, isolando-se numa casta que nada tem de
autenticamente eclesial.
Terei de voltar a esta espantosa
homilia do Domingo passado, dia 15.
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