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1. Alguns leitores reagindo ao meu
texto do domingo passado, disseram-me: se o panorama da família em
desconstrução e reconstrução é tão caótico, como poderão as famílias
agrupar-se para evangelizar, encher de alegria, antigos e
novos projectos familiares?
Podem. Com diferentes configurações, existem,
por todo o mundo, milhões de famílias que o amor reuniu - de avós a
netos - que sem alarido, já vivem antigos e novos processos de
alimentar e renovar a esperança das futuras gerações.
Por outro lado, a graça do Evangelho não contraria os trabalhos
escondidos da natureza e da cultura, como certa apologética pouco
católica, ignorante e sectária, insiste em proclamar.
Dito isto, para evangelizar a família importa
não esquecer o contencioso agreste de Jesus com a sua família e com
as famílias dos seus discípulos. Tão agreste que os seus familiares
o quiseram deter, julgando que ele estava doido. Quem o diz é S.
Marcos, ao descrever o entusiasmo que a sua intervenção estava a
suscitar: «Voltou para casa. E de novo a multidão se apinhou, a
ponto de não se poderem alimentar. Logo que os seus tomaram
conhecimento disso, saíram para o deter, dizendo: enlouqueceu[1]».
S. João descreve uma cena familiar de ciúmes, crueldade, troça e
desprezo, precisamente quando Jesus mais precisava de compreensão,
porque nem mesmo os seus irmãos acreditavam nele[2].
Esse contencioso é ignorado na catequese e na
pregação porque não quadra com a iconografia da exemplar família de
Nazaré! No entanto, é o desentendimento no seio da Sagrada
Família que revela, da forma mais abrangente e radical, a
essência do cristianismo: fazer família com quem não é da
família, esperança activa e horizonte da humanidade, sempre a
retomar, nos mais diversos estilos, tempos e lugares.
Por isso, é ridículo dizer que Jesus era
contra a família. Pelo contrário. Repito e voltarei a repetir: vivia
e interpretava a sua missão como a loucura de fazer família com
quem não era da família. O que ele combatia era a família como
central de egoísmo, a família fechada sobre si mesma que não se
preocupa com os de fora.
Era precisamente esse egoísmo que impedia a
sua família e a dos discípulos de entender o caminho desta estranha
criatura: «Chegaram, então, a sua mãe e os seus irmãos e, ficando do
lado de fora, mandaram-no chamar. Havia uma multidão sentada em
torno dele. Disseram-lhe: a tua mãe, os teus irmãos e as tuas irmãs
estão lá fora e procuram-te. Ele perguntou: quem é minha mãe e meus
irmãos? Percorrendo com o olhar os que estavam sentados ao seu redor
disse: eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de
Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe.»[3]
No Evangelho de S. Mateus a questão da
revolução na família alarga-se: «Quanto a vós, não permitais que vos
chamem Rabi, pois um só é o vosso Mestre e vós sois todos
irmãos. A ninguém na terra chameis Pai, pois um só é o vosso
Pai, o celeste».[4]
2. É evidente que Jesus não estava a
ditar um catecismo de pastoral familiar nem a desautorizar as
chamadas famílias biológicas e as suas múltiplas configurações
culturais.[5]
Estava a semear algo de muito mais importante e para sempre: fazer
da vida em família, o tempo e o lugar da descoberta do mundo como
família. Ao aprofundar e estreitar os laços internos, construindo a
igreja doméstica, tudo seria orientado para redes de igrejas em
saída, para usar a linguagem do Papa Francisco.
Dir-se-á que esse é o caminho
dos sonhos. Os sonhos são antecipações do futuro e o futuro é a
união na diferença.
Esta expressão está ameaçada. A UE em
vez de trabalhar pela união dos países desenvolveu um sistema no
qual os grandes comem os pequenos e ainda querem passar por
benfeitores. As fronteiras foram abolidas, mas não as fronteiras
económicas. Os pequenos enriquecem os grandes que ainda passam por
preguiçosos. Quem procura entrar na Europa encontra muros e mares de
sepultura. Perante os migrantes, quem pensará que se trata de gente
da nossa família humana? E as chamadas famílias cristãs terão
olhos, inteligência e coração verdadeiramente cristãos para alterar
as políticas que vêm nos pobres uma ameaça?
3. Seria normal procurar no Sínodo dos
Bispos orientações para responder a estas perguntas. Ainda é cedo
para essa pesquisa. Não estamos no vazio. O Papa Francisco
desenvolveu durante um ano, nas audiências gerais de quarta-feira[6],
uma reflexão sobre a família que começa em Nazaré e termina
com Os Povos. Não encontrei nada sobre a família comparável a
esses textos. Estão longe da usual e aborrecida linguagem
eclesiástica. Os diversos aspectos da vida familiar surgem a uma
nova luz e abrem brechas de esperança para as situações mais
difíceis.
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