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1. Este Papa continua
a ser visto como um provocador na Igreja e na sociedade, a nível
local e global. Uns gostam muito, outros não gostam mesmo nada. Os
que se alegram com a sua chegada dizem que ele anda a reabrir
janelas e a arrombar portas construídas para abafar a revolução
libertadora de João XXIII e do Vaticano II. Os assustados com a sua
desenvoltura teológica e canónica esperam que a idade e o cansaço se
encarreguem de os aliviar deste pesadelo. Não podem com as suas
manias colegiais e a sistemática teimosia em interpretar os textos
dos Evangelhos em ligação com as situações actuais da vida das
pessoas e dos grupos, sejam essas situações de ordem espiritual,
social, financeira, económica ou política.
Porque não deixa ele os textos bíblicos
dormir em paz e sossego? A sua antiguidade merece e recomenda um
eterno descanso.
Bergoglio, porém, de forma muito original
e criativa, escolheu para as suas intervenções, mensagens, homilias,
discursos e encíclicas, o método teológico que tinha sido
desactivado por várias instâncias romanas. É precisamente esse
método que semeia desassossego e esperança em tudo quanto diz e faz.
Seria uma banalidade dizer que a chave do
seu pensamento é teológica e cristológica. O importante é saber que
Deus e que Cristo falam e actuam nas suas intervenções.
Para ficarmos esclarecidos, basta ouvir
o que o Papa Francisco declarou na Praça de S. Pedro, no dia 6 de
Setembro, ao comentar o texto de S. Marcos[1]:
“Deus não está fechado em si mesmo, mas abre-se e põe-se em
comunicação com a humanidade. Na sua misericórdia imensa, supera
o abismo da diferença infinita entre Ele e nós, vem ao nosso
encontro. Para realizar esse encontro com o ser humano, tornou-se
humano: para Ele não é suficiente falar connosco mediante a lei e os
profetas, mas torna-se presente na pessoa do seu Filho, a Palavra
feita carne. Jesus é o grande “construtor de pontes”, que constrói,
em si mesmo, a grande ponte de comunhão com o Pai”.
Bergoglio não ficou por aqui. “ Este
Evangelho também fala de nós: muitas vezes estamos fechados em nós
mesmos e criamos muitas ilhas inacessíveis e inospitaleiras. Até as
relações humanas mais elementares criam, por vezes, realidades
incapazes de abertura recíproca: o casal fechado, a família fechada,
a pátria fechada… Isto não é de Deus! Isto é nosso, é o nosso
pecado. Contudo, na origem da vida cristã, no baptismo, estão
precisamente aquele gesto e aquela palavra de Jesus Effata! –
Abre-te”.
2. Tenho, diante de
mim, L’ Osservatore Romano[2]
e estou espantado com um Papa que consegue ser mesmo “Sumo
Pontífice”, o homem de pontes para todos os universos e para todas
as situações! Se fossem só discursos poderia supor que dispõe de um
centro de produção literária. No entanto, tudo ou quase tudo
tem a marca, o estilo, o cunho pessoalíssimo deste argentino. É
impossível ser trabalho de encomenda.
Não posso, numa crónica, dar conta deste
vasto mundo de intervenções. Destaco que na mensagem que dirigiu
para o encontro de Tirana[3],
sobre a guerra e a paz, observa que também é violência levantar
muros e barreiras para impedir um lugar de paz. É violência rejeitar
quem foge de situações desumanas. É violência descartar crianças e
idosos da sociedade e da própria vida! É violência ampliar o fosso
entre quantos desperdiçam o supérfluo e aqueles que carecem do
indispensável.
Os cristãos, perante a tragédia de
dezenas de refugiados que fogem da morte devido à guerra ou à fome,
não podem dizer a estes abandonados: coragem, paciência! … A
esperança cristã é combativa, com a tenacidade de quem caminha rumo
a uma meta segura. Ao aproximar-se o Jubileu da Misericórdia, o Papa
dirige um apelo às paróquias, às comunidades religiosas, aos
mosteiros e aos santuários de toda a Europa a expressar o aspecto
concreto do Evangelho e a acolher uma família de refugiados, a
começar pela minha diocese e pelas paróquias do Vaticano. Dirijo-me
aos meus irmãos bispos da Europa, verdadeiros pastores, que acolham
este meu apelo.
Na preparação da viagem aos EUA, lembra
aos americanos que todos são responsáveis por todos.
3. Essa atitude do
Papa resulta do que ele pensa da própria Igreja. Nos Evangelhos, a
assembleia de Jesus tem a forma de uma família, de uma família
hospitaleira. Não de uma seita exclusiva, fechada: nela
encontramos Pedro e João, mas também o faminto e o sedento, o
estrangeiro e o perseguido, a pecadora e o publicano, os fariseus e
as multidões. Jesus não cessa de acolher e falar com todos, até com
quem já não espera encontrar Deus na sua vida. Esta é uma lição
forte para a Igreja. Os próprios discípulos são eleitos para cuidar
desta família dos hóspedes de Deus. Uma Igreja que seja
verdadeiramente segundo o Evangelho não pode deixar de ter a forma
de uma casa hospitaleira, sempre de portas abertas. As igrejas, as
paróquias e as instituições com as portas fechadas devem chamar-se
museus.
O Papa não ficou por aqui.
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